Teoria do Desvio Produtivo: Projeto de Lei


Teoria do Desvio Produtivo: Projeto de Lei


Em março deste ano publicamos artigo de nossa autoria a respeito da Teoria do Desvio Produtivo e o dano ao consumidor que teve seu tempo desperdiçado para a solução de problemas geradas pela má-prestação de serviços ou fornecimento de produtos.  

De lá para cá, diversas decisões foram proferidas pelos Tribunais do país tomando como fundamento o desvio produtivo; muitas decisões apontam, referendando entendimento da Corte Superior, de que o desperdício, à definição quanto à aplicação ou não da teoria, aponta à necessidade de gasto de tempo exagerado, que fuja à normalidade:

“AÇÃO INDENIZATÓRIA - DANOS MORAIS PELA PERDA DO TEMPO ÚTIL - TEORIA DO DESVIO PRODUTIVO DO CONSUMIDOR (...) Não comprovação dos danos propalados, porquanto, ausente situação que fuja a normalidade da vida cotidiana moderna – Ausência de descrição, de forma pormenorizada, de qual teria sido o tempo útil perdido – O ingresso de demanda judicial para solução de conflitos decorre do direito de ação e não enseja dano moral por desvio produtivo ou perda do tempo útil – Sentença mantida – Recurso não provido.” (TJSP; Apelação Cível 1005911-79.2021.8.26.0344; Relator (a): Mario de Oliveira; Órgão Julgador: 38ª Câmara de Direito Privado; Foro de Marília - 3ª Vara Cível; Data do Julgamento: 28/04/2022; Data de Registro: 28/04/2022)

“Por outro lado, respeitado o entendimento do r. Juízo a quo, comporta acolhimento o pedido de afastamento da condenação ao pagamento de indenização por danos morais, posto que a situação por si só não é capaz de gerar danos aos direitos da personalidade das partes recorridas, tratando-se de questão decorrente de relações massificadas de consumo, inexistindo provas nos autos que conduzam à aplicação da tese de desvio produtivo do consumidor, já que deixaram as partes recorridas de demonstrar nos autos terem empreendido esforços na busca de solução administrativa para a questão posta em Juízo.” (TJ-SP - RI: 10000058720218260642 SP 1000005-87.2021.8.26.0642, Relator: Fábio Bernardes de Oliveira Filho, Data de Julgamento: 07/04/2022, Turma Recursal Cível e Criminal, Data de Publicação: 07/04/2022)

“(...) Ausência de demonstração de que a autora tenha desperdiçado tempo para resolver a questão na esfera administrativa ou que tenha sofrido qualquer outro empecilho em exercer regularmente suas atividades habituais - Incômodos ou dissabores de natureza como esta em exame não caracterizam o dever de indenizar - Precedentes desse E. Tribunal de Justiça.” (TJ-SP - AC: 10010157420218260414 SP 1001015-74.2021.8.26.0414, Relator: Lavínio Donizetti Paschoalão, Data de Julgamento: 06/04/2022, 14ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 06/04/2022)

“(...) Ademais, esta Corte de Justiça vem reconhecendo, para a imposição do dever de reparação moral, a aplicação da Teoria do Desvio Produtivo do Consumidor, em casos semelhantes ao que se aprecia, quando o consumidor necessita recorrer ao Judiciário para obter o reconhecimento do seu direito, ante as recusas injustificadas da fornecedora de serviços a solucionar a demanda na via administrativa.” TJ-RJ - APL: 00061433720208190054, Relator: Des(a). JUAREZ FERNANDES FOLHES, Data de Julgamento: 22/06/2022, DÉCIMA TERCEIRA CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 24/06/2022. 

(...) Quanto aos danos morais, releva ressaltar que do acidente de trânsito, por si só, não induz a caracterização de dano moral, senão quando do sinistro decorrem maiores consequências que importem em violação aos atributos da personalidade. Na hipótese narrada, o autor buscou em diversas oportunidades o ressarcimento. De início, aguardou longo período para ser atendido minutos após a ocorrência do sinistro, na própria praça de pedágio próxima ao local. Buscou atendimento através de e-mails com a ouvidoria da ré, solicitando inclusive novas avaliações, diante das negativas de ressarcimento dos prejuízos. Essas circunstâncias, aliadas à própria ocorrência do acidente, caracterizam desvio produtivo do consumidor.

Neste caso, a angústia sofrida pelo reclamante é inquestionável, já que percorreu longas tratativas com a ré a fim de obter ressarcimento dos danos causados em seu veículo, sem êxito, o que transborda do mero aborrecimento para o fim de caracterizar o dano moral indenizável, restando configurado o desvio produtivo decorrente da perda de tempo útil. (TJ-GO 50046277920208090051, Relator: ÉLCIO VICENTE DA SILVA, 3ª Turma Recursal dos Juizados Especiais, Data de Publicação: 02/05/2022). 


Muito recentemente, aliás, o Superior Tribunal de Justiça afastou a aplicação da Teoria do Desvio Produtivo a caso regido pelo Código Civil, ie, não relacionada à temática consumerista, apontando a vulnerabilidade e desigualdade que são inerentes a este tipo de relação: 

RECURSO ESPECIAL. CIVIL E CONSUMIDOR. OMISSÕES. AUSÊNCIA. TEORIA DO DESVIO PRODUTIVO DO CONSUMIDOR. RELAÇÕES JURÍDICAS NÃO CONSUMERISTAS REGIDAS PELO CÓDIGO CIVIL. INAPLICABILIDADE.

2- O propósito recursal consiste em dizer se: a) a Teoria do Desvio Produtivo aplica-se às relações jurídicas não consumeristas reguladas exclusivamente pelo Direito Civil; e b) a demora na transferência definitiva da propriedade ou na expedição da carta de adjudicação compulsória em virtude do não encerramento de processo de inventário é causa de danos morais em razão da aplicação da referida teoria. (...) 

4- A Teoria dos Desvio Produtivo do Consumidor, como se infere da sua origem, dos seus fundamentos e dos seus requisitos, é predisposta a ser aplicada no âmbito do direito consumerista, notadamente em razão da situação de desigualdade e de vulnerabilidade que são as notas características das relações de consumo, não se aplicando, portanto, a relações jurídicas regidas exclusivamente pelo Direito Civil.

5- Não é possível, no âmbito do presente recurso especial, examinar eventual tese, calcada exclusivamente nas disposições gerais do Código Civil, relativa à indenização pela "perda do tempo útil", pois a argumentação desenvolvida no recurso é excessivamente genérica para este fim e os dispositivos legais apontados como violados não conferem sustentação à referida tese, sequer relacionando-se com a temática da responsabilidade civil, o que atrai a incidência da Súmula 284 do STF.

6- Na hipótese dos autos, restando incontroverso que a relação jurídica estabelecida entre as partes é estritamente de Direito Civil, não merece aplicação a Teoria do Desvio Produtivo do Consumidor.

7- Recurso especial não provido. REsp n. 2.017.194/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 25/10/2022, DJe de 27/10/2022


Nessa toada, forte na ideia da proteção ao consumidor e no sentido de estimular as boas práticas por parte dos fornecedores, em 23/11/2022, o Senador Fabiano Contarato (PT-ES) apresentou Projeto de Lei n.º 2.856/22 (PL), que tem por objetivo destacar o tempo como bem jurídico a ser reconhecido e protegido, e considerado como essencial "para o desenvolvimento das atividades essenciais do consumidor” (texto do art. 2º do PL) a ponto de garantir-lhe a indenização cabível em case de lesão.

O PL em comento tem redação objetiva, e denota alinhamento com questões atuais vivenciadas, a exemplo do texto sugerido ao novo art. 25-C, caput e parágrafo único da Lei 8.078/90:

Art. 25-C As condutas do fornecedor que impliquem perda indevida do tempo do consumidor são consideradas práticas abusivas. Parágrafo único. Considera-se também abusiva a prática de disparar, reiterada ou excessivamente, mensagens eletrônicas, robochamadas ou ligações telefônicas pessoais para o consumidor sem o seu consentimento prévio e expresso, ou após externado o seu incômodo ou recusa.

Na apuração dos danos, aponta o PL, devem ser considerados: (i) a extrapolação do tempo máximo para atendimento presencial e virtual ao consumidor; (ii) o descumprimento do prazo legal ou contratual para sanar vício do produto ou serviço, e envio de eventual resposta ao consumidor (iii) a desconsideração, pelo fornecedor, de prazo compatível com a essencialidade da providência dele esperada (iv)  a desconsideração do tempo em que o consumidor ficou privado do uso de determinado produto e, (v) o tempo total gasto pelo consumidor na resolução de demanda apresentada ao fornecedor, sendo certo que a partir daí, o PL determina que a reparação pelos danos deverá ser quantificada “de modo a atender às funções compensatória, preventiva e punitiva da responsabilidade civil”, como apontam as redações sugeridas aos novos arts. 25-D e 25-F. este último, inclusive aponta a majoração da indenização quando o caso envolver (i) produto essencial, (ii) consumidor hipervulnerável, (iii) fornecedor de grande porte ou (iv) demandas repetitivas conta o mesmo fornecedor ou sua indicação em cadastro de reclamações mantidos pelos órgãos consumeristas. 

Em suma, o PL, conforme mencionado, visa positivar a reconhecida e solidificada Teoria do Desvio Produtivo, clareando hipóteses de aplicação, justamente, como aponta a Justificação do PL, a diferenciá-la das corriqueiras afirmações de "mero aborrecimento".     

Evidente, assim, que o tempo útil do consumidor vem ganhando força e maior tutela por parte tanto do Judiciário quanto do Legislativo, podendo, a depender da circunstância concreta e desde que comprovado o prejuízo, ensejar o dever de indenizar o consumidor pelos valiosos momentos perdidos na tentativa de solucionar problemas causados por falhas na prestação de serviços/fornecimento de produtos. O PL segue em tramitação, e aguarda despacho, sendo válida, desde logo, a adequação à legislação consumerista e procedimentos daí decorrentes, evitando-se, sempre que possível, danos desta espécie e condenações desnecessárias, não só, mas especialmente quando da aprovação do PL em referência.