Coisa julgada em matéria tributária: o cenário após julgamento do STF


Coisa julgada em matéria tributária: o cenário após julgamento do STF


Por Clarissa Viana e Mariana Santos 

Em um sistema tributário marcado por alta carga tributária, arcabouço normativo formado por leis e normas complementares complexas e esparsas, com cobranças de tributos muitas vezes em desconformidade com a Constituição Federal, que obrigam os contribuintes a recorrerem constantemente ao Poder Judiciário, a recente e polêmica decisão do STF quanto aos efeitos da coisa julgada em matéria tributária trouxe dúvidas e insegurança aos contribuintes. 

Até então, entendia-se que, uma vez transitada em julgado uma decisão judicial favorável, eximindo o pagamento de um tributo por determinado contribuinte, os efeitos se perduravam no tempo das relações tributárias de trato continuado, ainda que, posteriormente, esse entendimento viesse a ser alterado pela jurisprudência superveniente. Ou seja, a coisa julgada não era automaticamente desconstituída, dependendo, para tanto, do ajuizamento de ação rescisória nos prazos previstos na lei processual civil, com ressalva do entendimento da PGFN que, no Parecer n.º 492/2011 – ou seja, há mais de uma década –, já assinalava que, na relação de trato continuado em havendo precedente definitivo/objetivo do STF (Controle concentrado, Repercussão Geral ou oriundo do Plenário, confirmado em julgados posteriores da Suprema Corte) em sentido contrário à decisão individual existente e já transitada em julgado, esta deixaria de produzir efeitos dali pra frente. 

Em fevereiro deste ano, analisando a alteração da coisa julgada relativa à CSLL – Contribuição Social sobre o Lucro Líquido nos Recursos Extraordinários nº 955.227 e n° 949.297 (Temas de repercussão geral 881 e 885), o Plenário do Supremo Tribunal Federal seguiu a linha há muito aplicada pela PGFN e consagrou o entendimento no sentido de que os efeitos da coisa julgada nas relações jurídicas tributárias de trato sucessivo, independente do tributo que se esteja discutindo, cessam quando o STF se manifestar em sentido oposto, em sede de controle concentrado ou difuso na sistemática da repercussão geral. Ou seja, a produção de efeitos das decisões do Supremo tomadas em controle concentrado ou difuso na sistemática da repercussão geral em face de relações tributárias de trato continuado seriam automáticas e interrompem automaticamente os efeitos temporais das decisões transitadas em julgado de forma individual, respeitadas a irretroatividade, a anterioridade anual e a noventena ou anterioridade nonagesimal, conforme a natureza do tributo, independentemente do ajuizamento de ação rescisória. 

O entendimento fixado foi no sentido de que a decisão do STF, tomada em controle concentrado ou em recurso extraordinário com repercussão geral, produz norma jurídica nova e possui o condão de modificar o estado de direto então existente (coisa julgada individual), consistindo em direito superveniente, à luz do efeito vinculante e da eficácia erga omnes (frente a todos) produzidos pelas decisões definitivas de mérito, assemelhando-se à criação de novo tributo. E foi por isso que os Ministros decidiram que deverão ser observadas, de acordo com a espécie tributária envolvida, a irretroatividade, a anterioridade anual e/ou a noventena para sua cobrança, assim como ocorre quando um tributo é criado mediante lei. 

Diante dessa decisão, e considerando que a Corte afastou a modulação dos efeitos da decisão, muitas dúvidas surgiram para os contribuintes que obtiveram decisões transitadas em julgado eximindo o pagamento de algum tributo, com o receio de que toda e qualquer decisão transitada em julgado perderia automaticamente seus efeitos, de que a coisa julgada seria flexibilizada e de que poderia haver cobrança retroativa dos tributos. 

Contudo, o primeiro ponto a ser devidamente compreendido é que o entendimento adotado pelo STF nos temas 881 e 885 definiu que apenas as decisões do STF proferidas em sede de controle concentrado (ADI, ADC e ADPF) e em recurso extraordinário com repercussão geral são aptas a fazer cessar automaticamente os efeitos da coisa julgada em sentido oposto, não se aplicando a toda e qualquer decisão da Suprema Corte ou a decisões tomadas por outros Tribunais, como o STJ, ainda que proferidas no julgamento de recursos especiais repetitivos. 

Outro ponto importante é que os efeitos da coisa julgada permanecem hígidos enquanto não for alterado o entendimento por decisão do STF em sede de repercussão geral ou controle concentrado, não podendo alcançar o período anterior à prolação desta norma jurídica nova. 

Uma questão muito negativa quanto ao afastamento da modulação dos efeitos do referido julgado foi que aquele contribuinte cujo tema da sua coisa julgada individual já tenha decisão vinculante, contrária do STF ulterior, a qual não tenha sido por ele observada por confiar na sua decisão individual, sofrerá efeitos pretéritos nefastos, alguns inclusive já autuados pelo Fisco. 

Contudo, há que se fazer uma distinção técnica: a cessação automática dos efeitos da coisa julgada não implica cobrança retroativa, pois a retroatividade significaria exigir o pagamento do tributo não recolhido durante a vigência da coisa julgada individual, ou seja, antes da decisão vinculante do STF em sentido oposto à coisa julgada individual, o que não ocorrerá. 

Repita-se, a não modulação dos efeitos dessa decisão do STF significa que o entendimento deverá ser aplicado inclusive para situações anteriores ao julgamento dos efeitos da coisa julgada (Tema 881 e 885) naqueles casos que já exista julgamento do STF em sede de repercussão geral ou de Controle de Constitucionalidade Concentrado contrário e ulterior à coisa julgada individual favorável ao contribuinte. 

Em suma, é a partir da decisão vinculante do STF que cessar os efeitos da coisa julgada que o contribuinte ficará obrigado a recolher o tributo, observadas a anterioridade anual e/ou a anterioridade nonagesimal. Se ainda não existir decisão do STF alterando a coisa julgada, essa permanece hígida até que seja eventualmente modificada. E se a decisão individual se der mediante aplicação do resultado obtido em sede de repercussão geral ou controle concentrado (o que é muito comum, na atualidade), a decisão individual não correrá risco de sofrer qualquer impacto futuro. Por outro lado, se a decisão vinculante alterando a coisa julgada individual já tiver ocorrido e tiver sido ignorada, o contribuinte pode se ver em duas situações: 1) se já existir cobrança constituída pelo Fisco abarcando período posterior à decisão do STF, esta será mantida; 2) se o Fisco não procedeu ao lançamento, a cobrança pode retroagir em até 5 anos, limitada à data do julgamento vinculante posterior do STF. 

Não são tantos os temas que já tiveram decisões do STF em sede de repercussão geral ou controle concentrado modificando entendimento anterior que estaria consagrado em coisas julgadas individuais. Alguns exemplos: (a) inconstitucionalidade da CSLL, (b) Contribuição previdenciárias sobre o terço constitucional de férias, (c) IPI na revenda de produto importado, (d) ISS na atividade de franquia, (e) COFINS para sociedade civil profissional. 

Para tentar minimizar os impactos do novo cenário quando à eficácia da coisa julgada, alguns caminhos já começaram se desenhar no Congresso Nacional, através da elaboração de projetos de lei relacionados ao tema. Em alguns desses projetos, os parlamentares propõem a aplicação da modulação negada pelo STF e estabelecem ressalvas aos contribuintes afetados até o dia 10 de fevereiro deste ano. Em outro projeto, propõe-se a criação de transação tributária excepcional para saldar as dívidas surgidas a partir da decisão do STF, com possibilidade de abatimento de juros, multas e encargos legais. 

Mesmo com essas possibilidades em vista, a principal crítica que se faz a esse julgamento é que, numa alteração de entendimento dessa magnitude - com a capacidade de modificar a interpretação do instituto (a coisa julgada) que, até então, era considerado um dos mais confiáveis no sistema jurídico brasileiro, inclusive cláusula pétrea - o mínimo que se esperava era a modulação dos efeitos do julgado, de forma que a sua aplicação se valesse apenas para situações futuras, preservando a segurança jurídica daqueles que confiaram na aplicabilidade de decisões transitadas em julgado.  

Contudo, o que se nota é que a ausência de modulação de efeitos em decisões em matéria tributária que afetam os contribuintes tem sido uma praxe adotada pelo STF e o contrário também é verdadeiro, ou seja, a modulação dos efeitos quando as decisões prejudicam o Fisco, com impacto na arrecadação do Estado. Isso tudo, aliado a uma crescente adoção de decisões de mérito com cunho político e uma diminuição das decisões puramente técnicas, gera para os contribuintes em geral, e em especial para os investidores estrangeiros, uma enorme insegurança no sistema jurídico-tributário brasileiro, pois a falta de confiança, que antes ficava circunscrita ao âmbito fazendário, passa a alcançar também a estabilidade das decisões do Poder Judiciário.