Serviços de Telecomunicações x SVA x SMP x MVNO – Contencioso Administrativo na Anatel


Serviços de Telecomunicações x SVA x SMP x MVNO – Contencioso Administrativo na Anatel


Tendo por pano de fundo as dificuldades impostas pela pandemia de Covid-19, o governo brasileiro promulgou a Lei nº 14.172, de 10 de junho de 2021 (Lei nº 14.172/2021), que dispôs sobre a garantia de acesso à internet a alunos e professores da educação básica pública, em uma iniciativa que visou a promoção do desenvolvimento econômico e social, a qual foi posteriormente regulamentada pelo Decreto Federal nº 10.952, de 27 de janeiro de 2022. 

No âmbito desta iniciativa, foram disponibilizados mais de R$ 3,5 bilhões para utilização em ações que beneficiassem alunos membros de famílias inscritas no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal (CadÚnico) e matriculados em escolas da rede pública de ensino estadual, distrital e municipal, alunos de escolas de comunidades indígenas e quilombolas, além de professores do ensino básico da rede pública de ensino. 

O montante foi destinado à contratação de soluções de conectividade móvel para realizar e acompanhar atividades pedagógicas não presenciais com o uso de tecnologias da informação e comunicação (TICs), priorizando, nesta ordem, alunos do ensino médio, fundamental, professores do ensino médio e fundamental; bem como à aquisição e cessão temporária ou permanente de terminais portáteis com acesso à rede de dados móveis para alunos e professores do ensino médio (para este objetivo específico, podendo ser despendidos até 50% do valor citado anteriormente). Outras possibilidades de contratação de serviços de acesso à internet também foram previstas pela Lei nº 14.172/2021.

Importante, em um primeiro momento a mencionada lei determinou que a aplicação dos recursos disponibilizados deveria ocorrer até 31 de dezembro de 2021. Caso não houvesse utilização até tal data, ou se a aplicação ocorresse em desconformidade com os termos da lei, os valores deveriam ser restituídos aos cofres da União até 31 de março de 2022. Contudo, estes prazos foram prorrogados para 31 de dezembro de 2023 e 31 de março de 2024, respectivamente, por força da Lei nº 14.351, de 25 de maio de 2022.

Vários processos licitatórios foram então conduzidos para contratações em linha com a Lei nº 14.172/2021. Nestes, figuraram como licitantes não somente prestadoras de serviços móveis pessoais (SMP), como também empresas que não eram prestadoras de serviços de telecomunicações, ou que à época não detinham licença da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) para a prestação de SMP. Algumas destas licitações, vale mencionar, foram impugnadas.

No Estado do Amazonas, por exemplo, o pregão foi suspenso em decorrência de um pedido apresentado pela Claro S.A. (Claro) com base no fato de a empresa vencedora não possuir licença da Anatel para a prestação de SMP naquela oportunidade, o que estaria em desacordo com a Lei nº 14.172/2021, posto que, como mencionado, esta lei estabelece que a contratação deve ser voltada a soluções de conectividade móvel.

No Estado da Bahia, a Telefônica Brasil S.A. (Telefônica) impugnou edital de licitação alegando que o seu objeto se referia à prestação de SMP. Neste caso, o ente público defendeu que partes do edital poderiam ser subcontratadas e que, desta maneira, uma empresa não detentora de autorização para prestar serviços de telecomunicações poderia se sagrar vencedora no certame. Sobre isto, a Telefônica, em manifestação posterior, afirmou que de acordo com os termos da regulamentação do setor de telecomunicações, haveria revenda de SMP, que é ilegal.

A Base Serviço de Integração Móvel Ltda. (BM), prestadora de serviços de valor adicionado (SVA), não prestadora de serviços de telecomunicações, foi uma das participantes em processos licitatórios cujos objetos, em suas próprias palavras, seriam soluções de conectividade móvel. Conforme afirmado pela BM, a empresa foi declarada vencedora em certames realizados nos Estados do Amazonas e de Alagoas e, no âmbito destes, deve fornecer plataformas de conectividade por ela desenvolvidas, correspondentes a TICs que constituem meramente SVA, estando tudo em conformidade com as necessidades e os objetivos estabelecidos pela Lei nº 14.172/2021.

Ainda de acordo com o mencionado pela empresa, em virtude de não ser prestadora de serviços de telecomunicações, para poder prover os SVA para os quais foi contratada nas licitações vencidas, a BM precisa contratar SMP de operadoras que detenham autorização para a prestação destes serviços. Segundo o seu entendimento, os SMP de que necessita constituem tão somente insumos da plataforma de conectividade que desenvolveu. 

Com o intuito de contratar tais serviços, a BM teria então entrado em contato com as operadoras de telecomunicações brasileiras Telefônica, Claro e Tim Brasil Serviços e Participações S.A. (Tim). Entretanto, segundo mencionou a BM, tais tentativas de contratação restaram frustradas. 

Em virtude do alegado insucesso na contratação dos serviços móveis de telecomunicações, a empresa considerou ser cabível mover processos administrativos no âmbito da Anatel contra as citadas operadoras, que, afirma a BM, teriam se recusado a disponibilizar “perfis elétricos”, o que consequentemente impede que a BM preste os pertinentes SVA objetos das licitações em que saiu vencedora. 

“Perfil elétrico de SIM Card”, segundo esclarece a Telefônica em documento contido em processo administrativo movido contra si pela BM, consiste em uma especificação técnica do que deve estar contido nos diretórios e arquivos de um SIM Card, sendo identificado por dois caracteres. Os perfis elétricos “são padronizados e interoperáveis a todos os fabricantes de SIM Cards, redes e aparelhos” e utilizam as normas do European Telecommunications Standards Institute (ETSI) do 3rd Generation Partnership Project (3GPP), prossegue a operadora. Já de acordo com esclarecimentos publicados na imprensa especializada, o “perfil elétrico é tão somente um código, comandos que precisam estar programados no SIM e que permitem a ativação em uma operadora. O perfil é por operadora, e não por usuário”. Por sua vez, a BM também expressou seu entendimento acerca dos perfis elétricos, afirmando serem estes “configurações técnicas que permitem a ativação de uma linha de voz, voz e dados, ou só dados” de operadoras diversas. 

Vale citar que no modelo de negócio da BM, segundo especificou a empresa, há a operação de um eSIM Card em que são pré-instalados os perfis elétricos negociados com as operadoras de telefonia móvel detentoras de autorização da Anatel, possibilitando o uso de suas redes, mas que igualmente possibilita a migração entre as prestadoras de SMP de maneira remota, por exemplo, em caso de oferta de condições comerciais mais favoráveis. No Brasil, este modelo tem sido denominado coloquialmente “chip neutro”. 

Desta maneira, a mera disponibilização dos perfis elétricos pretendida pela BM não implica que os SVA possam ser prestados de imediato; é necessária uma negociação entre a BM e as operadoras para que os SMP sejam ativados, mediante remuneração. De acordo com a BM, além do eSIM Card, a solução desenvolvida pela empresa compreende também um filtro de conteúdo na Internet, “com o qual o gestor educacional indica quais endereços da web podem ser acessados por estudantes e professores”, além de “ferramentas de monitoramento individual de cada chip utilizado”.

Assim, no início de 2023, a BM apresentou reclamação administrativa com pedido de medida cautelar em face da Telefônica, “com a indicação de suposta negativa em contratar elemento essencial de acesso às redes móveis, especificamente no tocante à aquisição de perfis elétricos”, nas palavras da Anatel. Ainda de acordo com a mesma Agência, fazendo menção às informações trazidas pela BM, no contexto das contratações a que se referiram os processos licitatórios aplicáveis, “o acesso à internet seria um insumo e não o objeto principal da contratação, visto que a solução de conectividade agrega diversas ferramentas e funcionalidades necessárias ao atendimento da necessidade em questão”. A BM também apresentou reclamações administrativas semelhantes em face da Tim e da Claro, nestas afirmando, novamente, que a disponibilização de internet configuraria somente um dos insumos dos SVA prestados pela empresa. 

A reivindicação da BM trazida perante a Anatel, vale dizer,  foi no sentido de ser determinado a cada uma das prestadoras de SMP citadas o fornecimento, ao preço de mercado, de ao menos 650.000 perfis elétricos, insumos dos SVA, para que a empresa pudesse prestar os SVA por ela desenvolvidos, bem como de impedir que as operadoras de telecomunicações tomassem medidas para que os órgãos públicos interessados adjudicassem os objetos das licitações tão somente a prestadoras de SMP, com o descumprimento das determinações sujeito a multas diárias estipuladas pela Anatel. 

A Anatel decidiu por acatar as alegações trazidas pela BM, considerando cabível a concessão de medida cautelar e, no início de março de 2023, determinou, dentre outros itens, que as operadoras assegurassem à BM até 650.000 perfis elétricos relativos às obrigações da BM contratadas com os Estados de Amazonas e Alagoas, tendo fixado multa diária de R$ 50.000,00 por descumprimento desta ordem, limitada ao montante de R$ 2 milhões; e que BM e as prestadoras de SMP conduzissem negociações para estabelecer uma relação contratual em conformidade com a regulamentação, objetivando o adequado provimento dos serviços aos citados Estados.

As operadoras anteriormente mencionadas apresentaram suas defesas contra as decisões da Anatel emitidas em seu desfavor. Exemplificativamente, em sua defesa, a Telefônica afirmou que os processos relacionados à Lei nº 14.172/2021 deveriam ter por objeto a necessária contratação de solução de conectividade móvel, o que implicaria ser a vencedora das licitações prestadora de SMP, e que isto erroneamente não teria ocorrido nos Estados do Amazonas e Alagoas. A empresa trouxe ainda argumento no sentido que, em participando dos certames, a BM estaria ciente de que a prestação de SMP seria necessária para o atendimento das obrigações editalícias, bem como que a referida empresa não possuía autorização para prestar os SMP. Tais fatores, conforme alegou, levariam à necessidade de contratar os serviços de prestadoras de telecomunicações ou, alternativamente, à celebração de parcerias (p. ex., MVNOs, que exploram SMP por meio de rede virtual, mobile virtual network operators, na sigla em inglês). Adicionalmente, defendeu que nenhuma norma legal ou regulatória obriga as prestadoras de SMP a ofertarem perfis elétricos a terceiros, e que o fornecimento dos referidos perfis não comporia o portfólio de produtos da Telefônica. Isto posto, solicitou a negativa de concessão de medida cautelar, improcedência dos pedidos da BM, sanção da BM por litigância de má-fé e o direito de apresentar informações complementares sobre a matéria discutida no processo administrativo.

Não obstante as defesas apresentadas pelas operadoras, a Anatel manteve as decisões em favor da BM, tendo apenas estendido o prazo inicialmente concedido às prestadoras de SMP para o atendimento das determinações da Agência. Adicionalmente, enfatiza-se que desde que estas decisões da Anatel foram proferidas, as partes interessadas têm adotado diversas medidas, tanto administrativas quanto judiciais, para solucionar a questão.

A Telefônica, por exemplo, apresentou recurso administrativo com pedido de efeito suspensivo em que argumentou não ser possível fornecer os pretendidos perfis elétricos de SIM Cards em virtude de questões técnicas, tampouco o quantitativo determinado pela Anatel cautelarmente, mas que poderia apresentar orçamento para fornecimento de SIM Cards ou eSIMs juntamente com soluções de conectividade disponíveis em seu portfólio de produtos. Adicionalmente, a empresa afirmou que a oferta de perfil elétrico de SIM Card caracterizaria revenda de SMP, sem que a BM possua a autorização necessária para a prestação deste tipo de serviço. Mais ainda, conforme relatado pela própria Anatel, a Telefônica argumentou que “a decisão recorrida está em desacordo com o princípio da segurança jurídica seja (i) ao tratar conectividade como SVA e não como serviço de telecomunicações, conceitos que já foram discutidos e já haviam sido consolidados por esta Agência, seja (ii) por criar obrigação regulatória complexa aos provedores de SMP por via de decisão administrativa de caráter não definitivo”. 

Vale ressaltar, atualmente está em andamento no âmbito da Anatel um processo administrativo que busca a resolução dos conflitos entre BM e Telefônica, porém ainda sem uma composição definitiva.

A relevância do assunto envolvido nos processos administrativos em trâmite na Anatel também despertou o interesse de terceiros, como, por exemplo, da Associação Brasileira de Prestadoras de Serviços de Telecomunicações Competitivas (TelComp), constituída por prestadoras de SMP e MVNOs. Esta associação se manifestou nos autos dos processos reconhecendo que a ampliação da conectividade, assim como a inclusão digital, é essencial para o país, mas deve ocorrer em conformidade com os ditames legais, a regulação do setor e regras negociais aplicáveis para que a segurança jurídica e a isonomia sejam asseguradas. O entendimento da TelComp acerca do modelo de negócios da BM condiz com aquele da Telefônica, Claro e Tim, ou seja, que haveria revenda serviços de telecomunicações. A Associação Brasileira de Operadoras Móveis Virtuais e Empresas Prestadoras de Serviços de Valor Adicionado aos Serviços de Telecomunicações (Abratual) e outras empresas também se manifestaram nos processos administrativos, igualmente afirmando que a BM, provedora de SVA, não poderia prestar SMP. Importante dizer, contudo, que a Anatel negou o pedido de ingresso destas entidades nos processos administrativos, na qualidade de terceiros interessados, tendo havido apresentação de recurso à decisão, por exemplo, por parte da TelComp. 

Como se verifica do anteriormente exposto, a divergência de entendimentos entre as partes envolvidas na discussão diz respeito a alguns pontos bastantes relevantes.

Primeiramente, engloba a questão dos serviços de telecomunicações e dos SVA. Neste sentido, os respectivos conceitos foram estipulados pela Lei nº 9.472, de 16 de julho de 1997 (Lei Geral de Telecomunicações, LGT). De acordo com os termos da LGT, serviço de telecomunicações corresponde ao conjunto de atividades que possibilita a oferta de telecomunicação. Telecomunicação, por sua vez, foi igualmente definida pela LGT como a “transmissão, emissão ou recepção, por fio, radioeletricidade, meios ópticos ou qualquer outro processo eletromagnético, de símbolos, caracteres, sinais, escritos, imagens, sons ou informações de qualquer natureza”. Serviço de valor adicionado, ainda conforme o texto da LGT, “é a atividade que acrescenta, a um serviço de telecomunicações que lhe dá suporte e com o qual não se confunde, novas utilidades relacionadas ao acesso, armazenamento, apresentação, movimentação ou recuperação de informações”. É oportuno ressaltar que a própria LGT esclarece que os SVA não são serviços de telecomunicações, bem como que os provedores de SVA são usuários de serviços de telecomunicações e, como tal, têm direitos e deveres. 

Contudo, a LGT estipula ainda que os provedores de SVA têm garantido seu direito ao uso de redes de serviços de telecomunicações. E a BM busca ver este direito assegurado ao promover os processos administrativos, visto que, neste sentido, a Anatel tem não somente competência para regular os condicionamentos dos serviços de telecomunicações, como também para regular as relações entre os provedores de SVA e as operadoras de telecomunicações. 

Por outro lado, conforme exposto anteriormente, tem sido alegado no âmbito dos processos administrativos que a BM pretenderia realizar a revenda de serviços de telecomunicações, o que é vedado pela LGT. Sobre o assunto, a LGT determina que a exploração de serviços de telecomunicações no regime privado depende de prévia autorização da Anatel, que acarreta no direito de uso das radiofrequências necessárias. Adicionalmente, a LGT estipula serem clandestinas as atividades de telecomunicações desenvolvidas sem “concessão, permissão ou autorização de serviço, de uso de radiofrequência e de exploração de satélite”. As atividades clandestinas, enfatize-se, constituem crimes de ação penal pública, puníveis com detenção de 2 a 4 anos (pena que sofre majoração em caso de dano a terceiros), além de multa de R$ 10.000,00, sanções às quais estão sujeitos aqueles que concorrem direta ou indiretamente para o crime.

Outro ponto que deve ser apreciado diz respeito à pretensão da BM de ofertar a conectividade em sua plataforma mediante contratação com todas as três operadoras de SMP mencionadas anteriormente. Conforme pontuou a TelComp em sua manifestação nos processos administrativos, a oferta de telecomunicações pela BM, “mediante acordo com todas as prestadoras móveis com SMP, requer que sejam celebrados contratos concomitantemente com todas, o que atualmente é uma barreira para as MVNO visto que as ORPA [ofertas de referência de produtos de atacado] impõem exclusividade”. Também segundo a TelComp, a decisão da Anatel estabeleceu tratamento diferenciado para a BM, “em detrimento de todas as demais MVNO do mercado que se vinculam a uma única prestadora SMP com radiofrequências na mesma área geográfica”.

Contudo, segundo noticiado na imprensa à época em que as decisões preliminares da Anatel foram emitidas, por meio de suas determinações a Agência estaria buscando manter a possibilidade de entrada de novos modelos de exploração de telefonia móvel no mercado, o que seria relevante em um momento em que o respectivo mercado de telecomunicações está fortemente concentrado nas três operadoras mencionadas. Mais recentemente, a Anatel se referiu ao assunto mencionando que ao conferir a cautelar, a Agência não chancelou o modelo de negócios da BM, "não disse se pode operar, se é revenda, se pode ser MVNO ou qualquer outra manifestação do compliance regulatório do modelo de negócios específico”.

Em vista das alegações trazidas nos processos administrativos, a decisão da Anatel a respeito da controvérsia deve implicar uma análise aprofundada do modelo de negócio da BM e suas características, ao final da qual a Agência deverá pronunciar seu entendimento acerca da natureza da plataforma desenvolvida pela empresa, seja ela de serviço de valor adicionado ou serviço de telecomunicações. Do resultado desta avaliação poderão decorrer diferentes vertentes de direitos e obrigações, não somente para as partes que compõem os processos administrativos, como também para os usuários dos serviços prestados. Assim sendo, a relevância da atuação da Agência e de sua decisão final sobre o assunto é indiscutível.

Para receber as principais notícias e posicionamentos legislativos sobre este e outros temas relacionados a telecomunicações, acompanhe a equipe de Tecnologia, Mídia e Telecomunicações (TMT) do Azevedo Sette Advogados.