O impacto da recente decisão do STF nas operações de M&A


O impacto da recente decisão do STF nas operações de M&A


Por Ana Carolina Veloso Ferreira e Carolina Alves Dias de Souza 

As operações de fusões e aquisições movimentam bilhões de dólares ao redor do mundo. Estima-se que em 2022, operações dessa natureza movimentaram em média R$ 214 bilhões1 no Brasil. Além da movimentação financeira, tais operações envolvem várias partes e assessores, que trabalham em conjunto, por longos períodos de tempo, para negociar e formalizar toda a documentação envolvida no processo. 

Normalmente, quando o assunto é operações de M&A o termo “due diligence” surge mais cedo ou mais tarde. Esse procedimento é uma medida de prudência e diagnóstico que auxilia a garantir, principalmente, que a parte adquirente e/ou investidora consiga mapear e quantificar as principais contingências, passivos e/ou riscos envolvendo o objeto da operação. “A due diligence, quando realizada de forma cuidadosa e abrangente, pode se tornar a chave para o sucesso de um processo de fusão, incorporação, cisão ou aquisição, mensurando os riscos efetivos e potenciais2.” 

Diversas áreas e aspectos devem ser investigados durante um processo de due diligence, os quais envolverão, sem dúvidas, diferentes tipos de profissionais, análises e áreas, principalmente: contábil-fiscal, técnicas e a auditoria legal.  

Durante uma due diligence legal ou jurídica os advogados possuem a missão de auxiliar o seu contratante a entender os riscos legais do negócio em andamento, os impactos financeiros, reputacionais e operacionais que estes riscos podem gerar, bem como refletir o que for identificado na estrutura da operação e nos documentos definitivos. O trabalho dos advogados nesses processos de investigação consiste, principalmente, em analisar documentos, processos e contratos da target e, a partir dessa análise, identificar os pontos de vulnerabilidades no negócio, que possam impactar na operação de M&A e trazer algum risco.  

Com o resultado das auditorias, as partes envolvidas passam a negociar valores, indenização e outros termos comerciais, operacionais e jurídicos que serão refletidos nos documentos da operação. Essa negociação é necessária para ajustar todos os termos da operação e alinhar pontos relevantes identificados por meio das auditorias que sejam controversos ou que necessitem de algum tratamento específico. Nesse momento, uma das principais discussões que domina a mesa de negociações é, sem dúvidas, acerca da cláusula de indenização. O comprador e/ou investidor busca se resguardar para que não seja responsabilizado ou sofra perdas decorrentes de passivos que possuam fatos geradores anteriores a consumação da operação3.  

Um aspecto fundamental a ser considerado durante essas discussões é o tratamento de passivos que possuam probabilidade de perda remota, os quais, provavelmente, não estarão lançados ou contingenciados nas demonstrações financeiras da target com base na CPC nº 254. Passivos relacionados a uma matéria na qual a target já obteve uma decisão favorável transitada em julgado é um exemplo dessa prática. 

Contudo essa realidade e prática foram colocados a prova pela decisão mais recente decisão do STF, que determinou que a coisa julgada nos casos de decisões que sobre tributos recolhidos de forma continuada5 poderá ser desconsiderada se o Supremo entenda e se pronuncie ao contrário. Dessa forma, empresas que possuem decisões transitadas em julgado as isentando da cobrança de determinado imposto recolhido de forma continuada, terão que passar a recolhê-lo se assim vier a entender a Corte. Especificamente no caso da CSLL (Contribuição Social Sobre o Lucro Líquido) existe uma decisão de 2007, do próprio STF, reconhecendo sua constitucionalidade, de forma que o tributo poderá ser cobrado retroativamente, respeitada a decadência, mesmo que diversas empresas possuam decisões individuais, transitadas em julgado, com entendimento oposto.  

Tal decisão tomou uma enorme proporção, principalmente para as empresas que possuíam decisão individual afastando a CSLL, afinal a proteção do instituto da coisa julgada está prevista no Art. 5º, inciso XXXVI6 da Constituição Federal de 1988 e, com base nisso, tais empresas que não contingenciavam passivos em seus balanços, agora estão em situação de potenciais devedoras; ou, caso já houvesse lançamento constituído, se antes classificavam a contingência como perda remota, terão que passar a classificá-la como perda provável..  

Portanto, após a referida decisão do STF, alguns aspectos da condução das operações de M&A deverão ser ainda mais reforçados visando maior segurança jurídica. No âmbito da due diligence, por exemplo, será crucial verificar se a target possui algum benefício tributário obtido judicialmente, por decisão transitada em julgado, mais especificamente em que tenha sido decidido sobre qualquer imposto de recolhimento contínuo. Será importante uma avaliação dessas decisões e benefícios, caso existam, bem como se há lançamentos da Receita Federal (e desde quando) para aquela empresa mesmo após a obtenção do trânsito em julgado da referida decisão, o que poderá indicar até onde o imposto poderá ser cobrado retroativamente. 

Além disso, mais do que nunca, do lado do vendedor/fundador, as declarações e garantias terão que ser ainda mais minuciosas, para que não exista risco de se tornarem inverídicas em caso de desconstituição dos benefícios fiscais existentes. Ainda, caso exista a possibilidade de reversão de algum benefício, será crucial avaliar o risco e o impacto que tal reversão poderá causar na operação da target, bem como ponderar como este risco deverá ser endereçado durante as negociações. Dentre algumas opções de endereçamento deste aspecto podemos citar a possibilidade do compartilhamento do risco entre as partes; ou a negociação de uma garantia por um período (como a criação de uma conta Escrow7); ou o desconto no preço do valor referente à possível contingência; ou o detalhamento de um procedimento de reembolso de perdas futuramente, entre outras.  

Importante ressaltar que due diligences de operações já concluídas antes da decisão do STF podem ter classificado tais passivos com uma menor representatividade no que tange a probabilidade de êxito e o impacto financeiro que poderiam gerar para a target. Usualmente, os assessores realizam a avaliação de passivos da target e, a partir disso, aplicam uma taxa de êxito para aumentar ou diminuir o possível impacto financeiro e exposição daquele ponto em específico nas operações da empresa. Essa avaliação é utilizada como base pelas partes e seus respectivos administradores para tomar suas decisões nas negociações, bem como para definir quais riscos assumirão ou não durante esse processo. Entretanto, anteriormente à decisão da Corte deste ano, tínhamos um cenário de dualidade de entendimentos sobre o assunto. Dessa forma, a probabilidade de êxito pode ter sido classificada diferentemente do que seria atualmente, após a decisão do STF. 

Nesse sentido, as operações de M&A que já tenham sido concluídas deverão ter seus documentos revisitados com o intuito de analisar minuciosamente como estes foram redigidos e, portanto, definir de quem será a responsabilidade pelos pagamentos dos valores devidos nos casos que se aplicarem a modulação dos efeitos da decisão do STF, como por exemplo no caso da CSLL. Dependendo do ano de conclusão da operação e do prazo para indenização, os valores referentes à cobrança retroativa da CSLL, juntamente com demais encargos, por exemplo, poderão ser cobrados dos vendedores/fundadores. Por outro lado, caso o prazo para indenização já tenha terminado e/ou a operação em questão tenha sido negociada no formato de “porteira fechada”, ou seja, sem indenização, a perda deverá ser assumida pelos compradores/investidores. Independentemente do responsável pelo pagamento, os valores são tão altos que podem ultrapassar o valor das operações em si, fazendo com que operações que ainda estejam em andamento sejam revistas e/ou até interrompidas em razão dessa decisão. 

Para operações de M&A em andamento ou prestes a se iniciar que tenham como target sociedades que possuíam decisão individual afastando a CSLL, o impacto poderá ser imediato e até mesmo impedir o prosseguimento da operação. Isso porque o valuation destas sociedades poderá apresentar uma redução considerável em decorrência (i) do aumento dos valores dos passivos (valor de perda antes não contabilizada, com encargos aplicáveis); e (ii) da alteração nos custos destas, uma vez que passarão a ter que recolher impostos que antes não eram recolhidos, gerando uma nova despesa que irá impactar no seu resultado, ainda que não seja necessário o pagamento retroativo.  

Tendo em vista todo o cenário e variáveis apresentados, a assessoria por profissionais capacitados e especializados torne-se ainda mais crucial em operações de fusões e aquisições, tanto para identificar casos em que tais riscos existam, como para endereçar quaisquer possíveis riscos nos documentos definitivos, trazendo segurança para os negócios e partes envolvidas. 

Referências:

1 Este valor consiste na soma das operações acima de R$ 50.000.000,00, de acordo com o M&A Brazil Report de 2022 publicado pelo RGS Partners. Disponível em https://materiais.rgspartners.com.br/rgs-partners-ma-brazil-report-fy2022. Acesso em 19/03/2023.  

2 Correspondente a nota [2] acima. 

3 KALANSKY, Daniel; SANCHEZ, Rafael Biondi. “Earn Out nas Operações de Fusões e Aquisições (M&A). In: BARBOSA, Henrique; BOTREL, Sérgio (Coord). Finanças Corporativas – Aspectos Jurídicos e Estratégicos. São Paulo: Altas, 2016, p.154). 

4 Comitê de Pronunciamento Contábil – Pronunciamento nº 25, item 23.  

5 Sobre a referida decisão confira nosso artigo “STF finaliza julgamento e define entendimento pela cessação automática da coisa julgada em matéria tributária”, no link https://www.azevedosette.com.br/noticias/pt/stf-finaliza-julgamento-e-define-entendimento-pela-cessacao-automatica-da-coisa-julgada-em-materia-tributaria/6879. Acesso em 19/03/2023.  

6 “Art. 5º. XXXVI - lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada” 

7 Conta Escrow também conhecida como conta garantia, normalmente é administrada por uma instituição financeira, que poderá fazer a restituição dos valores ao Comprador ou a liberação dos valores ao Vendedor, a depender da verificação das condições estipuladas em contrato.