Muito além das roupas: as operações de M&A na indústria da moda e os mecanismos para manutenção da identidade criativa da marca


Muito além das roupas: as operações de M&A na indústria da moda e os mecanismos para manutenção da identidade criativa da marca


Por Gabriela Lima Nogueira e Larissa Vargas de Carvalho Pereira

Ao desejar e comprar determinada peça de roupa, muitas vezes nos esquecemos de todo o processo industrial e produtivo que antecede a chegada do produto na loja. Muito além de lançar tendências, a indústria têxtil e de confecção do Brasil representa um pilar da economia nacional, que, mesmo no cenário pós pandêmico de 2021, registrou faturamento de R$ 194 bilhões e recebeu investimentos de R$4,9 bilhões, segundo a Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção (Abit)¹. 

Para além do reflexo econômico, o setor também cumpre um importante papel na sociedade como um dos maiores empregadores na indústria de transformação, sendo responsável por cerca de 1,34 milhão de empregos formais registrados em 2022². Este breve levantamento já evidencia a razão pela qual o mercado da moda segue aquecido, atraindo diversos movimentos de investimento em todo o mundo através de operações investimento ou mesmo de fusões e aquisições (“M&A”). 

Frequentemente, percebemos a aquisição de empresas de porte pequeno ou médio por empresas maiores e já consolidadas no mercado da moda (Grupo LVMH e Grupo Kering, no exterior, e Grupo Soma e Grupo Inbrands, no Brasil, por exemplo), com o intuito de aumentar a eficiência, o ganho de escala e o poder de mercado dessas empresas, bem como de reduzir a competição no mercado da moda. São justamente nestes movimentos mercadológicos que surgem os desafios – jurídico, econômico e publicitário – de estruturar um modelo de negócios que respeite as peculiaridades do setor. 

Pela própria natureza, o mercado da moda tem um caráter personalíssimo na medida em que as empresas sobrevivem e têm sucesso pela identificação de seus consumidores com a marca, designs e/ou com a personalidade que representa a identidade criativa da marca. Trata-se de um segmento no qual o padrão de escolhas da marca, desde o design, fabricação e até a comercialização são fatores determinantes para tornar os produtos únicos e desejados por determinado grupo de consumidores, que consome as peças e mantém a estrutura lucrativa e o sucesso da marca. 

Em termos práticos, o valor de uma empresa do segmento da indústria têxtil não se limita a ativos tangíveis. O valor mais relevante está intimamente ligado à marca, à identidade criativa vinculada à empresa e à relação criada a partir disso com o consumidor. Nesse sentido, as operações de M&A no setor da moda somente terão como resultado um aumento do desempenho financeiro das empresas envolvidas e a manutenção dos valores da empresa, caso os valores próprios da identidade criativa da marca, que pode ser representada por estilistas e designers, sejam mantidos.

Pesquisas indicam que a importância da imagem da marca e do papel desempenhado pela identidade criativa dentro da empresa tornam complexa a avaliação financeira das empresas do setor da moda³. Por esta razão, um dos pontos mais sensíveis em operações de M&A no mercado da moda é, certamente, garantir a efetiva transferência e a manutenção da identidade criativa da marca, de modo que não haja qualquer impacto negativo para os consumidores ou redução do valor de mercado da empresa e da marca, tendo em vista que parte relevante do preço pago pela aquisição de uma empresa no setor da moda foi definida com base no valor econômico da identidade criativa da marca e de outros ativos intangíveis, que, conforme o caso, podem ter a proteção garantida através dos direitos de propriedade intelectual.

Neste contexto, buscamos apresentar aqui, de maneira sucinta, alguns dos mecanismos contratuais que trazem maior segurança jurídica para quaisquer operações que envolvam a aquisição de participação societária em empresas do setor da moda.

Em primeiro lugar, devemos mencionar um dos pontos mais relevantes no âmbito de operações de M&A na indústria da moda: a transferência dos direitos de propriedade intelectual (marcas, marcas de posição, patentes, desenhos industriais, etc.) – e até mesmo dos ativos intangíveis que não são protegidos, mas que possuem valor econômico – envolvidos na operação. Isto porque como a moda se baseia justamente no trabalho de criação desenvolvido pelos estilistas e designers, responsáveis pela identidade criativa da marca, a criatividade se torna um ativo intangível indissociável da marca, dos produtos e da empresa, bem como do sucesso entre os consumidores. A identidade criativa de uma empresa determina a distinção da marca perante o mercado, além de conferir valor à empresa. 

Assim, visando a perpetuar o uso e o valor da marca após uma operação de M&A, é de suma importância garantir a efetiva transferência da identidade criativa da marca e dos ativos intangíveis da empresa, sejam eles protegidos, ou não, pela propriedade intelectual. 

Com o intuito de garantir expressamente que a identidade criativa e o sucesso da marca sejam transferidos para empresa adquirente, é possível manter os responsáveis pela direção criativa da marca na empresa, ainda que na forma de prestadores de serviço ou empregados, o que pode ser operacionalizado juridicamente através de contrato de prestação de serviços ou de trabalho, os quais podem prever expressamente que as criações intelectuais, ainda que realizadas pelo responsável pela identidade criativa da marca, na qualidade de  empregado ou prestador de serviços, serão de propriedade exclusiva da empresa. Trata-se de uma forma de vincular o responsável pela direção criativa da marca à empresa, mesmo após a operação de M&A, e garantir que a operação da empresa continue fluindo.

Nesta mesma linha, é importante tratar, também, da imposição de cláusula de não concorrência ao vendedor ou responsável pela identidade criativa da empresa. É bem verdade que o ditado popular “nada se cria, tudo se copia” é oportuno no mundo da moda, no qual tendências são lançadas e, na sequência, uma série de trabalhos similares, que podem ser configurados como cópias ou inspirações, surgem no mercado. Isso reforça a relevância de incluir nos contratos da operação expressa restrição à competição, direta ou indireta, do vendedor ou do responsável pela identidade criativa da empresa no exercício de atividades concorrentes, que deve delimitar, da forma mais completa possível, os parâmetros conceituais, temporais e geográficos de tal restrição. A título de exemplo, as atividades restringidas podem incluir atividades de criação, gerenciais e, até mesmo, a atuação como investidor em outras empresas do setor da moda. Destacamos que parte do valor pago pela aquisição da empresa e, consequentemente, da identidade criativa e da marca, pode englobar a restrição à concorrência imposta ao vendedor ou responsável pela identidade criativa da empresa. 

De outro lado, como uma forma de garantir a manutenção ou a maximização do desempenho até então obtido pela empresa, também é possível aperfeiçoar a operação do ponto de vista financeiro, através do chamado earn-out. Esta estratégia se justifica nos casos em que parte do pagamento pela aquisição da empresa é postergada e, em contrapartida, os responsáveis pela direção criativa da empresa ainda são mantidos vinculados à empresa após a operação, seja na condição de acionistas, diretores ou empregados, para o cumprimento de metas de performance em certo prazo (faturamento, taxa de crescimento, taxa de retorno, EBITDA, etc.). Quando tais metas são alcançadas, o pagamento das demais parcelas referentes à aquisição é realizado. Trata-se de uma maneira de incentivar que o responsável pela identidade criativa da empesa contribua para a manutenção do sucesso da empresa, mesmo após a operação de M&A. 

Por fim, outra ferramenta viável é firmar um contrato de transferência de know-how, no qual a empresa adquirente passaria a ter acesso aos conhecimentos técnicos e comerciais específicos do processo de fabricação, estruturação e desenvolvimento daquele produto ou negócio específico, que têm valor econômico. Essa preocupação se justifica na medida em que, assim como em outros setores, não basta adquirir uma empresa, é necessário perpetuar as práticas que tornaram aquele negócio lucrativo, a fim de manter a identificação com o consumidor. Esse mecanismo também é uma forma de garantir que a operação da empresa continue fluindo após a operação de M&A.

São inúmeras as ferramentas contratuais capazes de trazer maior conforto para as operações de M&A na indústria da moda, entretanto, a escolha das melhores estratégias dependerá da necessidade de cada caso, daí a importância de estar bem assessorado juridicamente para estruturação de um deal robusto e que consiga conjugar os interesses das partes. 

¹ e ² Disponível em: https://www.abit.org.br/cont/perfil-do-setor 

³ Rovetta, Barbara, Growth Through Acquisitions: The Case of Fashion Industry (November 2001). SDA Bocconi, Research Division Working Paper No. 01-60, Disponível em: https://ssrn.com/abstract=292580