PDE: O Pequeno Príncipe do futebol | O Programa de Desenvolvimento Educacional previsto na Lei das SAF


PDE: O Pequeno Príncipe do futebol | O Programa de Desenvolvimento Educacional previsto na Lei das SAF


Muito vem sendo discutido sobre a Lei 14.193/2021 (“Lei da SAF”), que instituiu a Sociedade Anônima do Futebol (“SAF”) e fez seu primeiro aniversário no último dia 06. A nova lei surgiu como resposta ao modelo atual de gestão dos clubes brasileiros, em sua maioria constituídos como associações, num cenário de crise financeira e dívidas acumuladas pelos times.

Assim, a Lei da SAF pode ser entendida como um verdadeiro pacote de incentivos àqueles clubes que escolham adotar o novo modelo proposto, essencialmente corporativo. Mas muito além das disposições da Lei 14.193, os clubes que optarem pela transição para SAF acabam por herdar todo o conjunto de práticas e princípios norteadores do direito empresarial. Dentre eles, merece destaque o princípio de que toda empresa possui uma função social para com a sociedade, que vai além da geração de riqueza para seus sócios.

A função social da empresa é um princípio constitucional presente expressamente na Constituição Federal de 1988 e no Código Civil Brasileiro, que deve ser observado por qualquer organização que se proponha a explorar qualquer atividade econômica. É pilar essencial para a compreensão da responsabilidade social da empresa conquanto evidencia a atividade empresária como instrumento de desenvolvimento social.

E com as SAF não poderia ser diferente: a nova lei acertou ao trazer mecanismos que visam garantir que as SAFs restituam à sociedade e à comunidade uma parcela daquilo que aproveitam. O texto traz, em seus artigos 28 a 30, dispositivos imperativos para promoção de ações sociais, mediante a instituição do Programa de Desenvolvimento Educacional e Social (“PDE”).

Trata-se de uma obrigação, imposta a cada SAF, de estabelecer uma parceria com escolas públicas para implementar um programa voltado aos alunos que promova o desenvolvimento da educação, por meio do futebol, e do futebol, por meio da educação.

O texto legal traz um rol exemplificativo de ações que podem ser tomadas pelos times no âmbito do PDE, tais como: a aquisição de equipamentos para a prática esportiva, a instituição de meios de transporte aos alunos participantes do programa, a reforma dos espaços da escola destinados à prática futebolística, a alimentação dos alunos durante os períodos de treinamento, a capacitação de ex-jogadores profissionais para ministrar e conduzir as atividades do programa, e até mesmo a construção de escolas públicas.

A instituição do PDE pela Lei da SAF demonstra o papel protagonista do futebol, aos olhos do legislador, como agente de mudança social no nosso país. O esporte seguro e inclusivo, além de um direito por si só, torna-se um meio para garantir outros direitos a crianças e adolescentes, promovendo a inclusão e reduzindo desigualdades. 

Segundo um estudo encomendado pela ONU, a prática de esportes na infância e adolescência aumenta a capacidade de aprendizagem, desenvolve aptidões cognitivas e oferece mais oportunidades para uma vida saudável1. O incentivo da prática esportiva constitui uma estratégia direta para a redução das desigualdades socioeconômicas em países em desenvolvimento.

Nesse sentido, a instituição do PDE parece o casamento perfeito entre a educação e o esporte, com potencial para melhorar a qualidade da educação básica brasileira e criar novos espaços de exercício da cidadania ao mesmo tempo em que investe no futebol de base. O PDE, somado às demais obrigações aplicáveis às entidades formadoras de atletas previstas na Lei da SAF e na Lei Pelé (Lei 9.615/98), leva a crer que as SAFs já nasceriam dando um show de boas práticas no cenário empresarial brasileiro.

Contudo, uma análise mais fria mostra que o PDE poderá enfrentar grandes desafios para se tornar uma realidade e promover a mudança social pretendida. A legislação é certeira ao aliar educação ao futebol, mas as ações sociais foram tratadas de forma bastante superficial no texto e não há regulamentação específica para a implementação do programa, tal como definição de prazos, valor de investimento, número mínimo de beneficiados ou penalidades por descumprimento. Este cenário seguramente dificultará a colocação do PDE em prática e a implementação de ferramentas de controle e/ou aferição de resultados.

No Projeto de Lei n. 5.516/2019, que precedeu a Lei da SAF, a implementação do PDE não tinha caráter compulsório. Em compensação, às SAFs que optassem por institui-lo seria garantido um incentivo fiscal um tanto quanto atraente: a dedução, do lucro tributável referente ao imposto de renda, do valor equivalente ao dobro do utilizado na implementação do PDE2.

Na versão final da lei, o incentivo fiscal não foi aprovado, mas tornou-se obrigatória a adesão ao PDE, em que pese sem a devida regulamentação adequada. A opção por tornar o programa obrigatório reforça, ainda mais, o protagonismo do futebol para promover mudanças no Brasil e é o ponto forte que ainda segura a expectativa de sucesso do PDE. É inegável a importância desse esporte na nossa cultura, e o Estado veio reconhecer essa realidade com a instituição obrigatória do PDE. Contudo, talvez a proposta inicial de incentivo fiscal tivesse sido uma estratégia mais interessante para incentivo à implementação desse projeto tão necessário, pois a simples obrigação de tê-lo não assegura que seu desenvolvimento será cuidadoso e bem estruturado pelas SAFs.

De todo modo, e a despeito da falta de diretrizes mais imperativas para a implementação do PDE, a instituição de um programa como esse é inédita ao mundo do futebol brasileiro, e veio carregada de ideais dignos de apreciação. Um exemplo é o § 3º do Art. 28, que determina a necessidade de oferecer às alunas matriculadas em escolas públicas as mesmas oportunidades ofertadas aos alunos, a fim de garantir o direito de meninas terem o mesmo acesso ao esporte. Essa pequena semente poderia promover uma mudança de paradigma dentro do futebol, trazendo inclusive maiores investimentos para as ligas femininas das próximas gerações. 

O próprio investimento na educação, por meio da melhora de infraestrutura das escolas, tem também o potencial de impactar significativamente a formação e capacitação dos alunos da rede pública, ainda muito carente no país. A obrigação de que os jovens atrelados ao programa cumpram um nível mínimo de assiduidade nas aulas (conforme o § 2º do art. 28) foi um verdadeiro gol de placa. 

Para fora das escolas, o PDE trouxe também uma maior valorização dos profissionais envolvidos no mundo do esporte e da educação: a contratação de preparadores físicos, nutricionistas e psicólogos, para o acompanhamento das atividades do programa (previsto no item V do art. 28), que poderia fomentar o mercado de trabalho de profissões ligadas direta ou indiretamente ao futebol.

Diante dos significativos impactos positivos para todas as partes envolvidas, a sociedade civil terá papel fundamental para exigir melhores práticas para as empresas de futebol em cumprimento ao PDE previsto em lei. 

Isto porque, ainda com as precariedades da Lei, certamente, o impacto reputacional servirá como mola propulsora para incentivar e garantir que as SAFs instituam as melhores práticas nos programas. A associação entre a imagem do time e um programa social como o PDE, que promove um impacto real na comunidade, beneficiará a empresa como um todo – inclusive num cenário de captação de investimentos no mercado e valorização das ações da SAF.

Na mesma linha, o prestígio dado às instituições que já priorizam ações sociais vem crescendo na nossa cultura, e é algo que toda empresa que depende de recursos externos deveria buscar. É comum encontrar projetos como o Athletes Gone Good, que se dedica a listar, anualmente, os profissionais do mundo do esporte que se destacaram com causas sociais. 

Essa nova ferramenta para o desenvolvimento e a proteção das crianças e jovens desse nosso país apaixonado pelo futebol representa um jogo em que todos ganham. O PDE tem o potencial de transformar crianças carentes em pequenos príncipes pentacampeões também na ciência, na engenharia, na medicina e em tantas outras áreas essenciais para o desenvolvimento econômico e social do país. 

Poderíamos ousar discordar de Saint Exupéry. O essencial não é invisível aos olhos. É necessário ver infraestrutura, transporte, computador, acesso à internet, barriga cheia, professores qualificados e tanto mais para transformar uma estória em realidade. Mas, no fundo, o Pequeno Príncipe tem razão. Devemos deixar de fora as superficialidades e investir no que realmente importa. Se a Lei da SAF deixou de tratar de mecanismos para a efetividade do PDE, caberá à sociedade civil e ao mercado incentivar e prestigiar aqueles que o fizerem.

Bibliografia

1 Conforme estudo do Fundo das Nações Unidas para a Infância, disponível em: https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000244329 

2 Conforme previsto no art. 12 do Projeto de Lei 5.516/19.