Compliance sob pressão: da racionalização aos escândalos corporativos


Compliance sob pressão: da racionalização aos escândalos corporativos


Por Mariana Ferreira Gonçalves e Marina Torres de Faria*

Quando falamos em escândalos corporativos, muito frequentemente os atrelamos à corrupção.  É quase impossível não correlacionarmos a idealização de uma “pessoa má”, potencialmente gananciosa, por trás dos atos desonestos em benefício próprio ou de uma organização em busca de poder, explorando injusta e vantajosamente o mercado ou exercendo práticas de concorrência desleal. 

Acontece que nem todos os agentes fraudadores seguem esta lógica estereotipada. Muitos dos participantes das práticas antiéticas dos escândalos corporativos mais notórios do mundo, como o da Enron, WorldCom e da Lehmann Brothers, eram indivíduos ordinários, que não se viam ou eram vistos como agentes corruptos1

As razões pelas quais um indivíduo comete atos antiéticos são variadas e distintas. Corrupção é de fato um fenômeno social: um indivíduo escolhe ser corrupto ou engajar-se em uma prática corrupta, sempre envolto a um contexto em que suas relações psicológicas, experiências, valores, costumes, interações sociais vividas e constantemente sofridas, fazem parte da equação. 

Além disso, o cenário socioeconômico mundial em que vivemos atualmente, a instabilidade geopolítica, os impactos contínuos causados pela pandemia, as altas taxas de inflação global e os preços do custo de vida, estão intensificando a pressão sobre as empresas, facilitando o desenvolvimento de ambiente propício à corrupção. Instabilidade, seja causada por recessão, lockdowns, conflitos geopolíticos ou doenças, muitas vezes facilita as oportunidades para práticas de atos corruptivos, principalmente em países em desenvolvimento e de alto crescimento. 

A ideia de racionalização é o principal entre os conceitos usados para explicar por que atos antiéticos são cometidos por pessoas que se consideram moralmente corretas. O termo é derivado de dois campos distintos dentro da esfera da psicologia, sendo o campo da psicanálise e o campo da psicologia social. A racionalização na psicanálise, reflete a forma como nos defendemos de verdades dolorosas, experiências e autodefinições proferidas pelo superego2. Ela funciona como um mecanismo de defesa que protege o ego de contestações ao narcisismo constitutivo da psique. Colocando em um exemplo prático, posso me considerar uma boa pessoa e me sentir culpada ao ter sido indelicada com um colega do trabalho. Assim, poderia racionalizar minha indelicadeza por meio de uma explicação lógica e plausível que iria suavizar o meu sentimento de culpa justificando o merecimento da realização de tal conduta. A justificação alivia a dor infligida ao ego por um superego punitivo. 

No campo da psicologia social, a teoria da dissonância cognitiva3 usa a noção de racionalização para abordar as mesmas tensões entre ações e autodefinições normativas, em um paradigma epistemológico diferente. A principal proposição da teoria da dissonância cognitiva é que, se uma pessoa possui duas cognições que são psicologicamente inconsistentes ou se o comportamento de alguém é inconsistente com uma cognição, essa pessoa experimenta desconforto ou dissonância, desencadeando um sentimento desagradável, fazendo com que ela se esforce para reduzi-lo de qualquer forma4. Ou seja, indivíduos que se deparam com dissonância cognitiva “racionalizam pra longe de si” atos que estão em desacordo ou mesmo contradizem os ideais que eles se identificam, ou atos que estão em conflito com seu autoconceito. 

Na década de 90, vivenciamos uma das maiores fraudes corporativas da história, o caso Enron. A empresa americana de comércio de energia e serviços públicos surgiu pela fusão entre a Houston Natural Gas Company e a InterNorth Incorporated que durante anos foi lapidada pelos executivos que visavam o sucesso do negócio. Acontece que naquela época, o SEC5 foi se movimentando na tentativa de se adequar ao mercado e autorizou um método contábil, que apesar de legal, acabou usado de forma desvirtuada pelos executivos da Enron para práticas fraudulentas. Apesar da clara manipulação dos dados contábeis e dos consecutivos atos dos quais levaram a empresa à falência em 2002, os executivos permaneceram com a ideia de que havia uma certa justificativa para as ações realizadas. 

Um componente chave da corrupção foi a maneira pela qual os membros da organização justificaram ou racionalizaram seu comportamento por meio de um conjunto de ideias e estratégias mentais. A racionalização permite ao indivíduo corrupto diminuir ou neutralizar os sentimentos concomitantes de culpa ou ansiedade. No contexto de práticas organizacionais ilegais como o da Enron, a racionalização são “estratégias mentais que permitem aos funcionários (e outros ao seu redor) ver suas atividades corruptas como justificadas”6

Outro caso interessante para ser abordado, e que também se baseia na ideia da racionalização, teve início em 1996 com a entrada na Renault do CEO Carlos Ghosn. O executivo foi contratado pela empresa com o intuito de cortar gastos e evitar uma possível falência. Carlos não só fez isso, como também proporcionou o crescimento da multinacional, juntamente com a Nissan devido a aliança formada entre as duas grandes empresas, tornando-o um dos executivos mais reconhecidos do mundo. No ano de 2018 o CEO, apesar de ter cometido diversos atos fraudulentos, manteve a convicção de que exerceu sua liderança da melhor forma possível, sempre visando o crescimento das sociedades. O executivo foi acusado de crimes financeiros e preso no Japão, o que não durou muito, pois, após um ano confinado o executivo, se sentindo injustiçado pela corte japonesa, planejou sua fuga para o Líbano se tornando um dos homens procurados pela Interpol. 

O caso de Carlos Ghosn, ilustra o exemplo comum de racionalização de alguém que diz a si mesmo que sua atividade corrupta é aceitável porque “não prejudica ninguém”. Esse tipo de agente, fornece uma lista extensa de racionalizações que diminuem ou neutralizam seus sentimentos de culpa ou ansiedade, incluindo a negação de responsabilidade, negação de lesão, negação da existência de vítima, ponderação social, equilíbrio da razão e apelo às lealdades superiores7. Cada uma dessas “estratégias mentais” permitem ao indivíduo, justificar ações passadas ou futuras que, de outra forma, poderiam ser consideradas reprováveis. 

A ideia da racionalização é usualmente presente na vida de cada um de nós, podendo ocorrer desde as coisas mais básicas do cotidiano até um possível ato administrativo fraudulento. Representa uma falsa justificativa, argumentação, um mecanismo de defesa controverso para a realização de atos antiéticos. Para se ter um programa de compliance efetivo, é necessário diligência na organização como um todo. Mesmo com um treinamento de primeira classe, controles internos superiores e constante vigilância de terceiros relacionados, um funcionário desonesto pode causar danos significativos a uma forte infraestrutura de controles preventivos anticorrupção.  

Uma forte cultura de compliance que permeia as estruturas de negócios da empresa, um treinamento holístico e eficaz, políticas e procedimentos claros e viáveis, incluindo verificações robustas de due diligence e canais de escalonamento seguros, são controles críticos para empresas que buscam evitar violação às leis anticorrupção. Para empresas multinacionais, é importante que os controles sejam adequados às devidas finalidades em todas as regiões geográficas em que operam e sejam adaptados para atender aos padrões legislativos e às melhores práticas locais de uma forma glocalizada8

Referências:

1 Vikas, Anand & Ashforth, Blake & Joshi, Mahendra. (2004). Business as usual: The acceptance and perpetuation of corruption in organizations. Academy of Management Executive. 18.

2 Freud, A. (1937/1967). The ego and the mechanisms of defense. Hogarth Press and Institute of Psychoanalysis, London. 

3 Festinger, L. (1957). A theory of cognitive dissonance. Stanford University Press, Stanford, California. 

4 Ibid. 

5 Cambridge Business English Dictionary. Cambridge University Press. (2023). SEC. The Securities and Exchange Commission: órgão oficial dos Estados Unidos que estabelece regras para os mercados de ações a fim de proteger investidores. https://dictionary.cambridge.org/dictionary/english/sec. [acessado em 13 de março de 2023]. 

6 Vikas, Anand & Ashforth, Blake & Joshi, Mahendra. (2004). Business as usual: The acceptance and perpetuation of corruption in organizations. Academy of Management Executive. 39. 

7 A técnica de apelo às lealdades superiores, é uma técnica de neutralização que ocorre quando um indivíduo pode sentir a necessidade de cometer um ato anormal para demonstrar lealdade a um subgrupo pessoal, violando normas ou leis sociais. Exemplo: “Eu furtei o carro do meu vizinho, porque eu precisava levar minha esposa ao médico”. 

8 Ferreira, M. (2019). Leadership glocality: The algorithm to compliance glocalization. Compliance Elliance Journal. CEJ 2019. Volume 5. Number 1. 69-90.