Por Liliane Grazielle Araujo Campos, Jessica Helena de Morais Andrade e Gabriela Ferretti Sieiro Franzero
Nos últimos anos, verificou-se um grande aumento de operações de fusões e aquisições - M&As no setor de tecnologia, os chamados Tech M&As, de acordo com as pesquisas apresentadas no artigo Tech M&A Outlook Survey: A historic bust-to-boom reversal in 2024, de Brenon Daly. Sociedades não só do setor de tecnologia, buscam, cada vez mais, desenvolver e manter a relevância no mundo digital, adquirir tecnologias complementares, expandir o mercado e impulsionar o seu crescimento.
Na outra ponta, existem desenvolvedores de softwares, aplicativos, websites e soluções tecnológicas criativas que possuem talento e expertise, mas que, frequentemente não têm os recursos financeiros e conhecimento de gestão, necessários para escalar, fortalecer e expandir suas criações, gerando um cenário muito propício para a realização de operações de M&A, que beneficiam os dois lados da equação. Este pode ser o casamento perfeito se bem estruturado dentro de uma operação de M&A que leve em consideração aspectos inerentes aos negócios tecnológicos.
O ano de 2024 promete para esse setor: estudos realizados pela 451 Research¹, empresa parte da S&P Global Market Intelligence, indicam perspectivas otimistas para as operações de M&A, notadamente no setor de tecnologia, sobretudo, em virtude dos avanços em inteligência artificial e em novas soluções tecnológicas; da maior certeza no tocante às taxas de juros; do alcance de níveis recordes de capital para investir por parte de Private Equity (PE) e da reprimida demanda por transações.
Diante deste cenário, esse artigo busca discutir sobre as particularidades e os riscos jurídicos de operações envolvendo empresas de tecnologia. Destaca-se que, apesar de, em um primeiro momento, esse tipo de operação e as fusões e aquisições tradicionais parecerem similares, é preciso promover uma análise cautelosa, que busque enfatizar características, riscos e os cuidados específicos que se deve tomar ao realizar operações que tenham como foco ativos tecnológicos.
Nesse tipo de operação, a propriedade intelectual, por exemplo, tem extrema relevância. Conforme dados apresentados pela Aon², no ano de 2019, aproximadamente US$ 19 trilhões em valor de mercado era representado por ativos intangíveis, como propriedade intelectual de marcas, patentes e outras tecnologias. Segundo Lewis Lee, CEO de Soluções em Propriedade Intelectual da Aon, “A propriedade intelectual está cada vez mais se tornando uma razão chave – e em alguns casos, a principal razão – para as companhias adquirirem outras que as ajudarão atingir metas de crescimento”.
Deste modo, ao adquirir uma companhia do setor de tecnologia e/ou ativos digitais, é imprescindível verificar o registro das tecnologias almejadas junto ao Instituto Nacional da Propriedade Industrial – INPI, garantindo a proteção contra pirataria digital e exclusividade dos direitos sobre os referidos ativos e a inexistência de conflitos com direitos de terceiros.
Ainda, tendo em conta que essas tecnologias resultam da criação de desenvolvedores, prestadores de serviços contratados, é de suma importância garantir a confidencialidade do ativo desenvolvido e que a propriedade dessas criações e das demais que forem desenvolvidas esteja em nome da empresa adquirida na operação de M&A e não do desenvolvedor contratado. Para isso, deve-se analisar se os contratos que regulam a prestação destes serviços pelos desenvolvedores contêm previsão de propriedade e transferência de todas as criações desenvolvidas no local ou com recursos da empresa contratante, sejam da própria contratante, de modo a evitar que o desenvolvedor, criador da tecnologia, reclame eventual direito autoral sobre estes ativos.
Um caso de grande repercussão envolvendo propriedade intelectual foi a disputa entre a Alphabet, dona do Google, e a Oracle. A Oracle alegou que a concorrente havia copiado a estrutura, sequência e organização do código do Java para desenvolvimento do Android. A disputa foi para na Suprema Corte dos Estados Unidos, que, em abril de 2021, decidiu favoravelmente ao Google, por considerar que a utilização pela gigante da tecnologia estava dentro dos limites do que pode ser considerado justo (fair use). Outro acontecimento que movimentou o mundo da tecnologia foi o processo no qual Waymo, outro braço da Alphabet, acusou o desenvolvedor por ela contratado, Anthony Levandowski, de roubar tecnologia relacionada a veículos autônomos e levá-la à Uber, que adquiriu a startup Otto criada por Levandowski após deixar a Waymo. O caso foi encerrado com o pagamento, pela Uber, de US$240 milhões em ações à Waymo como indenização pelo ocorrido.
Operações envolvendo ativos digitais requerem especial cuidado com relação à regulamentação da atividade da tecnologia alvo, posto que, com o recorrente avanço tecnológico, notadamente no que se refere à inteligência artificial generativa, há, ainda, um vácuo de normas que regulem especificamente a sua utilização, de forma que, num futuro próximo podem ser criadas regras que restrinjam ou dificultem a continuação da atividade ou impeçam a obtenção do retorno pretendido. Cumpre destacar, também, que os Tech M&A podem exigir aprovações regulatórias específicas e adicionais às exigidas tradicionalmente. Nos Estados Unidos e em países da União Europeia, por exemplo, há restrições relacionadas à desnacionalização de tecnologias tidas como essenciais no intuito de endereçar a preocupação com a proteção dessas tecnologias frente ao avanço de outras nacionalidades.
Há que se falar, também, dos desafios regulatórios enfrentados por startups de base tecnológica que exploram setores já tradicionais como o de saúde e financeiro, conhecidas por healthtechs e fintechs, e encontram entraves para ingressar da forma correta nesses mercados altamente regulados e tradicionais. Para fins de ingresso adequado, entende-se que os desenvolvedores e os agentes públicos necessitam trabalhar juntos para a promoção da inovação. Para o sucesso das healthtechs e fintechs, as formas de inovação devem ser juridicamente aplicáveis e analisadas de forma transversal de modo a encaixar o modelo de negócio ao sistema regulatório brasileiro.
Outro ponto de atenção em uma operação de M&A envolvendo ativos tecnológicos é o valuation, ou seja, o cálculo do valor “justo” do negócio, justamente pelo fato de que os principais ativos deste tipo de negócio são, em sua maioria, ativos intangíveis, aos quais não há, no geral, um valor específico associado. Deste modo, ao adquirir uma companhia por sua tecnologia, é indispensável fazer uma avaliação detalhada das propriedades intelectuais desejadas no intuito de precificá-las corretamente.
Essa análise é de suma importância também para a avaliação da responsabilidade assumida por aquilo que se adquire, uma vez que, em se tratando de ativos digitais, grande parte deles envolve armazenamentos e transmissão de dados e conteúdos extremamente sensíveis. No caso de vazamento desses dados, as indenizações e penalidade podem ser particularmente graves, evidenciando, assim, a importância desta avaliação técnica detalhada que permita a identificação de eventuais riscos ou exposições, de forma a garantir a proteção de dados inerentemente sensíveis.
Indubitavelmente, com as empresas de tecnologias ocupando as seis primeiras posições do índice Standard and Poor’s 500 Index, índice do mercado de ações baseado na capitalização que mede o desempenho das quinhentas maiores empresas de capital aberto dos Estados Unidos, a propriedade intelectual continuará influenciando diretamente os negócios, sobretudo as ofertas de M&A. Como as propriedades intelectuais altamente valorizadas apresentam a tendência de acompanharem a tecnologia, consequentemente, os riscos cibernéticos são maiores. A título de exemplo, podemos citar as inúmeras fraudes que têm sido criadas para burlar pagamentos, que vão desde alteração nas máquinas de cartões em delivery até golpes mais complexos envolvendo roubo de dados financeiros ou corporativos e ciberextorsão. Assim, a realização de uma auditoria legal - due diligence, para identificação de possíveis riscos atrelados ao negócio e para sua precificação é fundamental.
Assim, uma das principais diferenças entre um Tech M&A e o M&A tradicional está justamente no enfoque da due diligence legal. A due diligence que permitirá a identificação e a mensuração dos possíveis riscos cibernéticos e regulatórios, auxiliando na valoração de copyrights, patentes, fórmulas, códigos-fonte, dentre outros. Faz-se necessário saber reconhecer e apontar, primeiramente, o ativo digital, para que, em seguida, seja possível descrevê-lo e detalhá-lo. Logo, quando se fala em Tech M&A, entende-se que a due diligence deverá sempre envolver a análise do risco cibernético e regulatório, a identificação do ativo digital, a sua propriedade e medidas de segurança utilizadas para proteção do referido ativo, aspectos cuja análise nem sempre é aprofundada em operações de M&A tradicionais.
Diante do exposto, é fundamental que em uma transação de M&A no setor de tecnologia, antes do fechamento do negócio, seja realizada uma minuciosa due diligence legal que possibilite verificar, além de questões cíveis, tributárias e societárias, questões que envolvem: (i) a completa identificação do ativo tecnológico que se pretende adquirir e de possíveis falhas de segurança que possam comprometer dados sensíveis e trazer consequências financeiras de longo prazo, (ii) a verificação da propriedade, registro e direitos sobre a tecnologia alvo, (iii) a necessidade de aprovações regulatórias adicionais específicas para esse tipo de operação, e (iv) a correta precificação do ativo. A partir dos dados levantados na auditoria legal, as partes envolvidas terão maior embasamento para a negociação e tomada de decisões quanto à viabilidade e expectativas da transação e poderão endereçar eventuais riscos e pontos de atenção identificados os documentos definitivos da operação, distribuindo, de forma mais consciente os riscos no negócio.
¹ DALY, Brenon. Tech M&A Outlook Survey: A historic bust-to-boom reversal in 2024? Disponível em: https://www.spglobal.com/marketintelligence/en/news-insights/research/tech-ma-outlook-survey-a-historic-bust-to-boom-reversal-in-2024. Acesso em: 06 de março de 2024.
² The One Brief. M&A em um Mundo Tecnológico: Redefinindo a Diligência Prévia. Disponível em: https://theonebrief.com/latam/portugues/post/ma-em-um-mundo-tecnologico/. Acesso em: 06 de março de 2024.
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