O cada vez mais frequente pedido de segredo de justiça em recuperação judicial


O cada vez mais frequente pedido de segredo de justiça em recuperação judicial


Artigo publicado pelo portal JOTA, em 13 de junho de 2023

A Serasa Experian registrou, no primeiro trimestre deste ano, aumento de 37,6% nos pedidos de recuperação judicial em comparação ao mesmo período de 2022 e há projeções de que essas ações devam crescer cerca de 50% em 2023.

E dentre as diversas novas recuperações judiciais iniciadas em 2023 estão algumas que já são parte das maiores da história em termos de passivo declarado, as quais vêm sendo objeto de ampla divulgação, inclusive sobre alguns debates que têm se repetido.

Uma dessas questões, verificou-se, por exemplo, nas recuperações judiciais do Grupo Petrópolis, do Grupo Light, da Oi e em outras tantas distribuídas neste ano, que é o ajuizamento do processo gravado por sigilo.

O Grupo Petrópolis, proprietário de marcas de cerveja como a Itaipava, Crystal e Petra, ingressou com o pedido de recuperação judicial no final de março, requerendo, incidentalmente, uma tutela de urgência para suspensão imediata da exigibilidade das dívidas e liberação dos recebíveis relativos às contas vinculadas à empresa.

Para fundamentar o pedido de tutela, o Grupo Petrópolis esclareceu que, na data em que apresentado o pedido de recuperação judicial, estava programado o vencimento de uma parcela bullet, no valor de R$ 105 milhões e que, se não fosse imediatamente deferido o processamento da recuperação judicial e determinada a liberação dos recursos depositados nas contas vinculadas, o furo de caixa ocorreria já no início do mês de abril, de modo que faltariam recursos para honrar suas obrigações, travando a operação.

Por essa razão, a fim de preservar o resultado útil da tutela cautelar requerida e evitar o cross default das operações financeiras/de mercado decorrente da mera ciência do pedido, pelos credores afetados, o Grupo Petrópolis distribuiu a petição inicial em segredo de justiça, requerendo a sua manutenção apenas até o deferimento do processamento da recuperação judicial e a concessão da medida de urgência.

Também resguardada pelo segredo de justiça, a Light, antes de ajuizar seu pedido de recuperação judicial, distribuiu uma Tutela Cautelar em Caráter Antecedente, na qual requereu a suspensão temporária da exigibilidade de algumas obrigações financeiras e a instauração do procedimento de mediação coletiva com certo grupo de credores.

No caso da Light, a justificativa para o sigilo foi no sentido de que a medida cautelar que se iniciava poderia impactar a manutenção da prestação de serviços essenciais ao estado do Rio de Janeiro e que alguns instrumentos contratuais objeto da medida judicial seriam protegidos por sigilo, sendo certo, ainda, que estava requerendo a instauração de uma mediação e que tal método de resolução de conflitos seria, por natureza, confidencial, de modo que a tramitação em segredo garantiria aos interessados um ambiente seguro para ampla e irrestrita discussão das controvérsias. O juiz da 3ª Vara Empresarial do Rio de Janeiro, apesar de deferir inicialmente o trâmite em sigilo, levantou o segredo de justiça após o deferimento da tutela, por entender que não existia mais o risco de perecimento dos pedidos e que a mediação possuiria natureza pública.

A Lei 11.101/2005 não estabelece qualquer previsão de tramitação do processo de recuperação judicial em segredo de justiça, ou seja, sem que o referido pedido esteja público para consulta por qualquer pessoa e, inclusive, em seu artigo 51, VI e VII, exige que a recuperanda apresente “a relação dos bens particulares dos sócios controladores e dos administradores do devedor” e “os extratos atualizados das contas bancárias do devedor e de suas eventuais aplicações financeiras de qualquer modalidade”.

Vale dizer, se constitucionalmente a regra é a publicidade de todos os atos processuais, em se tratando de um processo concursal, essa condição é ainda mais necessária e presente e se observa inclusive quanto a questões sobre as intimações editalícias das partes e de terceiros.

E, assim, no que diz respeito aos bens particulares dos sócios e administradores, se por um lado há o direito à intimidade, incluindo o sigilo fiscal, por outro tem-se que a avaliação de tal patrimônio é necessária aos credores por diversos motivos, como a identificação dos próprios créditos dos sócios, a existência de garantias cruzadas, confusão patrimonial e até sobre a realização indevida de distribuição de lucros, sendo esses elementos importantes até mesmo para a votação no plano de soerguimento da empresa e eventual apuração de responsabilidade de seus sócios/acionistas.

Nessa linha, o CNJ editou a Recomendação 103/2021, que, em seu artigo 4º, orienta as secretarias a gravar com sigilo os documentos que contenham a relação de referidos bens pessoais e a jurisprudência tem tentado conciliar os princípios da publicidade e da intimidade, determinando, por exemplo, a autuação em apartado e em sigilo de tais documentos pessoais, sem, contudo, retirar dos autos os demais ou até mesmo meramente restringindo a publicidade de documentos para terceiros que não façam parte do processo.

Entretanto, o principal motivo dos frequentes pedidos de atribuição de segredo de justiça até a decisão de deferimento ou não do processamento da recuperação judicial não tem sido a apresentação de bens dos sócios/acionistas, mas a destruição de valor da devedora, os efeitos em contratos, geralmente com cessão fiduciária, e a mensagem de incerteza e insegurança que se passa ao mercado no período entre o protocolo do pedido de recuperação judicial e a definição se esta será ou não processada, vale dizer, entre a empresa dizer que quer estar em procedimento de reorganização e o Poder Judiciário confirmar se ela será ou não uma empresa em recuperação.

E, para tanto, por mais que este período imediato ao requerimento de recuperação judicial traga inúmeras consequências à devedora, como declarações de vencimento antecipado de dívida, insegurança de credores quanto ao destino do seu direito e de fornecedores atuais, quanto a se manter ou não contratado, e até mesmo de parte dos colaboradores quanto ao seu destino na corporação, trazendo, ainda, impactos no rating e, mesmo, nos valores das ações da companhia, quando o caso, o fato é que a empresa que decide ingressar com o pedido de recuperação judicial, na imensa maioria das vezes, não entrou naquela situação financeira na véspera do pedido.

E, portanto, ao decidir pelo caminho da recuperação judicial, já analisou todos os outros, devendo, nessa fase prévia ao requerimento do pedido, prever e se preparar para este cenário, até mesmo porque, neste momento, já deve estar convivendo com muitas dessas consequências, como a insegurança perante credores e funcionários.

Inclusive não é demais lembrar que a reforma da Lei 11.101/2005, promovida pela Lei 14.112/2020, incluiu, no artigo 6º, o parágrafo 12, a possibilidade de antecipação total ou parcial dos efeitos do deferimento do processamento da recuperação judicial, então, se a preocupação da devedora for com o período compreendido entre o protocolo da ação e o deferimento do processamento da recuperação judicial, quando é comum o proferimento de despachos solicitando diligências, complementação de informações e documentos e até mesmo a realização de constatação prévia, caso a devedora realmente preencha os requisitos para o processamento da recuperação judicial tem a opção de se utilizar de tal medida de urgência sem ter que se valer de um sigilo processual de lege ferenda, o qual, mal utilizado, além de ferir o contraditório e a indispensável publicidade do processo concursal, muitas vezes tem apenas o condão de mascarar processos mal instruídos ou a intenção de prejudicar, com o protocolo do pedido recuperacional antes da completa preparação da empresa, certos e determinados credores ou obrigações.

E a propositura antecipada de um processo recuperacional costuma refletir ao longo de todo o procedimento, gerando questionamentos inaugurais diversos, postergando a fase de negociação e, consequentemente, o stay period, além de colocar em risco a própria manutenção da recuperação da empresa.

Eventualmente pode-se até requerer o sigilo exclusivamente em razão da juntada dos bens pessoais dos sócios/acionistas, o qual, porém, deve ser imediatamente levantado, resolvendo-se essa questão, seja com a autuação apartada dos bens cujo sigilo seja realmente protegido por lei ou restringindo exclusivamente o acesso a tais documentos para que não sejam visualizados por terceiros não pertencentes ao processo, de forma a se restabelecer, na sequência, o processamento de forma pública, transparente e em contraditório.

Com tudo isso pretendemos dizer que a decisão pelo ingresso com o pedido de recuperação judicial deve ser tomada a partir de amplo assessoramento jurídico e financeiro, que deve se iniciar, inclusive, nos primeiros sinais da crise e não apenas quando o único remédio possível seja ingressar de imediato com o pedido de proteção judicial perante credores, sendo certo que o tempo geralmente é impiedoso nessas situações.

Do contrário, o mau uso do instituto da recuperação judicial, como o frequente pedido de lege ferenda de gravação de sigilo sobre o processo concursal, além de mascarar o ajuizamento processual açodado e prematuro e muitas vezes a má intenção de alcançar, pela via coletiva, específicos credores e obrigações, pode colocar em risco, por tanto flexibilizá-lo, o próprio instituto e todo o arcabouço normativo criado para sua regulamentação e proteção dos diversos interesses envolvidos dos mais diferentes agentes.