O trabalho em condições análogas às de escravo nos tempos atuais – A escravidão digital, o burnout e o “quiet quitting“


O trabalho em condições análogas às de escravo nos tempos atuais – A escravidão digital, o burnout e o “quiet quitting“


Por Camila Mendes Meneghini, Juliana Petrella Hansen e Silvia Pellegrini Ribeiro 

Neste artigo a proposta é falar sobre um tema que deveria estar no passado, mas que, infelizmente, está estampado nos noticiários recentes e tem sido alvo de ações do Ministério Público do Trabalho.  

Ao tratar de escravidão ou condições análoga a de escravo remetemos-nos ao contexto histórico e também, infelizmente, a casos recentes noticiados pelos veículos de comunicação, os quais são dignos de repúdio. São situações lamentáveis e criminosas, em que há a total degradação da dignidade da pessoa humana, com cerceamento de seu direito fundamental à liberdade, ao lazer, à vida, ao trabalho digno.   

Enquanto muitos falam sobre a importância de as empresas adotarem práticas de governança ambiental, social e corporativa (“ESG”), espanta-nos em 2023 termos que falar de escravidão, um tema que deveria estar totalmente ultrapassado. 

As Convenções de Trabalho da Organização Internacional do Trabalho dos anos de 1930 e de 1957 tratam do tema e visam a erradicação do trabalho escravo. Além dos tratados internacionais, o artigo 149 do Código Penal define trabalho em condição análoga a de escravo nos seguintes termos:  

“Art. 149, Código Penal - Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto:  

Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência.” 

De acordo com o Ministério Público do Trabalho (MPT) qualquer trabalhador que seja obrigado a cumprir jornadas excessivas de modo habitual, ou em ambientes insalubres, sem condições mínimas de saúde e segurança, considera-se em condições análogas à escravidão. Assim, trabalho forçado (por meio de exploração, impedindo que deixe o local por ameaças ou espécie de servidão por dívida), jornada exaustiva (de maneira desgastante, que pode colocar em risco a saúde do colaborador) e condições degradantes (insalubres, alimentação de baixa qualidade e insuficiente, maus tratos) formam os requisitos para designar a escravidão contemporânea. Portanto, a acepção de trabalho escravo ganha novos contornos na sociedade moderna, especialmente com o novo olhar sobre o conceito de trabalho forçado. 

Dados alarmantes coletados pelo MPT, informam que, nos últimos cinco anos, a Justiça do Trabalhou julgou 10.482 processos sobre o tema, bem como o número de ações aumentou 41% entre os anos de 2020 e 2021. Desde 1995, pelo menos 57 mil trabalhadores foram retirados das condições degradantes e análogas à escravidão. Somente em 2021 foram recebidas 1.415 denúncias sobre o trabalho escravo, aliciamento e tráfico de trabalhadores, número, este, 70% maior do que o apurado no ano de 20201

Dentre as medidas para erradicação do trabalho escravo e condições a ele análoga, o Governo Federal, por intermédio do Ministério do Trabalho disponibiliza lista de empregadores que foram autuados por tal prática, chamada lista suja2 cujo acesso é feito por qualquer cidadão.  

Nessa linha, programas de Compliance e, inclusive, em contratos de prestação de serviços, há disposições expressas para declaração pelo contratado de ausência de quaisquer práticas que possam ser consideradas como análogas ao trabalho escravo. Daí o porquê de a importância deste tema estar presente em todas as esferas de contratação, sobretudo de terceiros e fornecedores.  

Portanto, é importante refletir sobre a nossa realidade atual, sobretudo porque, com todo o avanço tecnológico e o senso de imediatidade exacerbado, inúmeras informações são recebidas e disponibilizadas a todo momento, e conceitos como o de produtividade tóxica, direito de desconexão, dentre outros, dão o tom de urgência à ressignificação de “escravidão” e “trabalho degradante”. Quer nos parecer que o enquadramento como trabalho escravo transcende os limites da acepção de trabalho forçado do século passado, especialmente como sendo aquele que restringe o direito de ir e vir e de castigos físicos. Vejamos. 

A pauta do trabalho decente, saúde e bem estar é, inclusive, um dos objetivos da Agenda 2030 da ONU para desenvolvimento sustentável, do qual o Brasil é signatário, tendo como um dos compromissos: Tomar medidas imediatas e eficazes para erradicar o trabalho forçado, acabar com a escravidão moderna e o tráfico de pessoas, e assegurar a proibição e eliminação das piores formas de trabalho infantil, incluindo recrutamento e utilização de crianças-soldado, e até 2025 acabar com o trabalho infantil em todas as suas formas3

O pacto da ONU fala da escravidão moderna, que faz conexão com as questões de exploração para turismo sexual, trabalho degradante em áreas rurais e outras formas que atualmente são denunciadas como trabalho análogo a condição de escravo.  

Todavia queremos, então, refletir sobre uma outra perspectiva, qual seja, como as novas dinâmicas de trabalho e como a força de trabalho têm nos levado a novas formas de “restrição de liberdade” e o esvaziamento da função social do trabalho, pois ainda que distantes do conceito originário de escravidão, de certa maneira, a sociedade moderna se mantem escrava, agora, do tempo, do trabalho e do digital.   

Pois bem, passado o período crítico da Pandemia da COVID-19, nos deparamos com novos fenômenos que tem permeados as relações profissionais, muitos deles atrelados a questão da saúde mental! 

Mas ora, por que relacionar o tema escravidão com saúde mental?  

É crescente o número de ações trabalhistas envolvendo o tema de saúde mental, sobretudo pela questão de burnout.  Há, portanto, uma nova dinâmica das relações de trabalho, que clama pela necessidade de equilíbrio das relações laborais, preservando sobretudo a saúde mental. Não podemos deixar também de citar que dentro do “pacote da saúde mental”, vem também o assédio moral e tudo o que com ele se relaciona.  

Portanto, a primeira reflexão que fazemos é: como a dinâmica das relações profissionais, por razões inúmeras, desaguou nesse cenário, sobretudo pós pandemia, em que a saúde mental se tornou uma das maiores preocupações das empresas? 

A própria definição de burnout faz referência ao esgotamento profissional, e quando diagnosticado, encontram-se evidências em (i) ambientes de trabalho hostis, (ii) excesso de jornada de trabalho; (iii) ausência de reconhecimento pelo trabalho realizado; (iv) competividade tóxica, que não serve para aprimoramento profissional, mas sim para gerar o embate entre colegas; (v) ausência regular de períodos de férias e descanso, dentre outras situações. Todas essas evidências permeiam práticas que poderiam ser comparadas a um trabalho degradante.  

E para trazer ainda mais complexidade ao tema citamos a revolução digital, que é certamente necessária, mas que trouxe desafios em relação a forma como lidamos com o mundo digital (e no futuro metaverso – quem sabe?), a ponto de termos em decisões trabalhistas exemplos de condenação por violação ao direito de desconexão4.  

No Brasil, não há uma previsão específica sobre o direito a desconexão, embora as decisões se pautem nas limitações legais de jornada de trabalho e no direito ao lazer, todavia, no direito comparado, encontramos algumas normativas para tratar do dever de desconexão. Um dos primeiros países a regular o direito a desconexão foi a França, que em 2016 incluiu o direito a desconexão em lei referindo-se como “o direito à desconexão traduz-se como o direito do empregado de não estar conectado às suas ferramentas digitais profissionais (computador, Ipad, smartphone, etc.) fora do horário de trabalho (QUINTON, 2017), a fim de que seja respeitada a jornada máxima de trabalho e períodos mínimos de repouso (RAY, 2016)5”.  

De rebote a essas situações que revelam o esgotamento profissional, nos deparamos com o movimento do “Quiet Quitting. Dentre as gerações mais novas que já nasceram sob a imposição do mundo estritamente online, vemos pessoas cada vez mais desapontadas com o conceito de meritocracia, lidando com os modelos de trabalho de forma a compensar a pressão e prisão do digital, surgindo a tendência denominada “Quiet Quitting”, isso é: o profissional decide limitar as suas tarefas no trabalho estritamente ao que é necessário dentro de sua função, evitando qualquer sobrecarga ou jornada que possa exceder os limites de suas atividades6

Apesar da expressão, em tradução livre para o português “demissão silenciosa”, as pessoas no movimento “Quiet Quitting” não possuem intenção de se demitir ou serem dispensadas. A premissa do movimento é pelo equilíbrio entre a vida pessoal e profissional, cumprindo com suas obrigações profissionais, porém de forma que não prejudique o tempo para as atividades pessoais, deixando de lado o conceito de viver para trabalhar. O próprio nome da tendência carrega um conceito pejorativo quando se trata da imposição de limites pelos trabalhadores. 

O ensaio do filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, chamado “A sociedade do cansaço”, se propõe a trazer uma reflexão sobre os efeitos das cobranças impostas pela sociedade pela melhora constante no desempenho e sucesso no trabalho. Quanto esse novo modelo imposto nos torna escravos de nossos próprios anseios, nossas próprias cobranças, inclusive quando estimuladas pelo empregador? Isso nos remete as muito bem-vindas práticas de ESG, buscando assegurar um ambiente de trabalho seguro e saudável. 

Fato é que a tolerância a qualquer tipo de trabalho escravo, seja ele na sua forma originária, seja em seus novos desdobramentos deve ser combatida, tendo em vista que revela ser uma violação à lei, aos tratados internacionais da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e até mesmo à Agenda 2030 da ONU de desenvolvimento sustentável. Ter cautela e impedir que essas situações ocorram é o caminho para uma relação de trabalho digna e justa. 

Portanto, a pauta da função social do trabalho está cada vez mais presente e o paralelo que aqui trouxemos com o tema da escravidão é para justamente permitir a reflexão de como atualmente nos deparamos com novas formas de dependências que restringem o exercício do trabalho como um direito fundamental. A saúde mental, direito à desconexão e o fenômeno do “quiet quitting” são apenas alguns exemplos de como a sociedade está lidando com a força de trabalho e, por isso, a necessidade urgente de rever modelos e práticas. 

Referências:


https://www.tst.jus.br/-/tst-publica-s%C3%A9rie-de-postagens-sobre-trabalho-an%C3%A1logo-%C3%A0-escravid%C3%A3o. Acesso em 19/03/2023. 

https://noticias.r7.com/sao-paulo/denuncias-de-discriminacao-e-assedio-no-trabalho-aumentam-21-em-sp-31012023. Acesso em 19/03/2023. 

2 https://www.gov.br/mdh/pt-br/navegue-por-temas/combate-ao-trabalho-escravo/cadastro-de-empregadores-201clista-suja201d. Acesso em 19/03/2023. 

3 https://brasil.un.org/pt-br/sdgs/8. Acesso em 19/03/2023. 

4 DANO MORAL. DIREITO À DESCONEXÃO. GARANTIAS CONSTITUCIONAIS À SAÚDE E AO LAZER. BENS JURÍDICOS TUTELADOS INERENTES AO EMPREGADO. ART. 223-C DA CLT. Nos termos do art. 223-B da CLT, o dano extrapatrimonial se configura quando há ofensa de ordem moral ou existencial à pessoa física ou jurídica, decorrente de ação ou omissão, sendo que a saúde e o lazer se encontram elencados no rol dos bens juridicamente tutelados inerentes ao empregado (art. 223-C, CLT). Nesse aspecto, o direito à desconexão do trabalho se insere no âmbito das garantias fundamentais à saúde e ao lazer (art. 6º, caput, e art. 7º, IV, da Constituição da Republica), consectárias do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana (art. 1º, III, CR), pelas quais o labor não pode ser um fim em si mesmo, mas sim o meio para o trabalhador promover sua subsistência e satisfazer suas necessidades e anseios pessoais, sem prejuízo ao repouso e ao convívio familiar e social. Violado o direito do empregado de se desconectar do trabalho, privando-lhe do devido descanso e do lazer, é cabível a reparação civil, consoante artigos 186 e 927 do Código Civil. (TRT-3 - ROT: 00102857920215030043 MG 0010285-79.2021.5.03.0043, Relator: Mauro Cesar Silva, Data de Julgamento: 01/07/2022, Decima Turma, Data de Publicação: 04/07/2022.) 

5 ?https://hdl.handle.net/20.500.12178/180194. Acesso em 19/03/2023

6 https://exame.com/bussola/quiet-quitting-fenomeno-e-tendencia-mundial-e-desafia-lideres-do-futuro/. Acesso em 19/03/2023