Mecanismos de apoio e equidade de gênero: Entendendo o Relatório de Transparência


Mecanismos de apoio e equidade de gênero: Entendendo o Relatório de Transparência


Por Juliana Petrella Hansen, Maria Alice Rocha Magalhaes Orsini de Castro e Maria Júlia Gil Freitas 

Hoje, 8 de março, dia internacional da mulher, data oportuna para compartilharmos esse artigo que traz considerações sobre a Lei de Igualdade Salarial (Lei 14.611/2023) publicada em julho de 2023  e os mecanismos legais existentes no Brasil para promover a equidade de gênero no ambiente de trabalho.

Embora o tema permeie pela igualdade salarial e pelo relatório de transparência, é crucial notar que o direito à igualdade salarial entre homens e mulheres é assegurado há décadas, tanto pela Constituição Federal (artigos 5º e 7º, XXX) quanto pela Legislação Trabalhista (artigo 461 da CLT), todavia, as disposições legais revelaram-se insuficientes, permitindo a persistência da discriminação salarial de gênero, sobretudo em cargos de gestão.

A questão que se apresenta é: O que a Lei nº 14.611/23 traz de novo após quase 35 anos da promulgação da Constituição Federal?

Essa reflexão destaca uma realidade importante: embora a igualdade salarial entre homens e mulheres seja um princípio na Constituição Federal, sua efetiva aplicação tem sido desafiadora, deixando espaço para a persistência da discriminação salarial de gênero. 

Segundo dados do IBGE de 2023, as mulheres recebem salários 22% menores em comparação com os homens¹. Essa disparidade salarial tende a se agravar à medida que as mulheres alcançam posições mais altas - mulheres em cargos de liderança chegam a receber cerca de 34% menos do que homens que ocupam a mesma posição (IBGE). Para outros dados estatísticos, compartilhamos material da ONU que traz informações relevantes sobre o tema.

Nesse sentido, a Lei nº 14.611/23 visa: (i) introduzir mecanismos mais robustos para garantir a igualdade salarial entre homens e mulheres, sobretudo para promover maior equilíbrio entre homens e mulheres em cargos de direção, gerência e chefia, bem como (ii) promover uma fiscalização mais rigorosa, já que há sanções mais severas para as empresas que praticam discriminação salarial.  

Portanto, ao nosso sentir, a lei de igualdade salarial vai para além da questão do trabalho de igual valor de que trata o artigo 461 da CLT, e traz previsões que buscam equidade dentro do ambiente de trabalho, a fim impulsionar que sejam adotados critérios de admissão e promoção que permitam a efetiva equidade salarial.

Um dos mecanismos previsto na Lei nº 14.611/2023 é o já citado relatório de transparência que deve ser apresentado pelas empresas com mais de 100 empregados. Este relatório se propõe a identificar possíveis disparidades salariais entre homens e mulheres, especialmente em cargos de gestão e, a partir disso, estabelecer plano de ação para impulsionar a empregabilidade de mulheres, permitir maior diversidade no ambiente de trabalho. A lei dispõe expressamente que comparação deve ser feita de forma objetiva e os dados divulgados de forma anonimizada.

Referido relatório deve ser publicado semestralmente, em março e setembro, sendo que no mês que antecede a estes, o Governo coletará as informações necessárias para análise de dados. As informações contidas nos regulamentos emitidos pelo governo brasileiro indicam que o relatório de transparência terá duas seções: (i) primeira, a partir de dados extraídos da plataforma do governo denominada e-Social; e  (ii) segunda, a partir de dados extraídos do Portal Emprega Brasil, que trará informações sobre a existência ou inexistência de quadro de carreira e plano de cargos e salários; critérios remuneratórios para acesso e progressão ou ascensão dos empregados; existência de incentivo à contratação de mulheres; identificação de critérios adotados pelo empregador para promoção a cargos de chefia, de gerência e de direção; e existência de iniciativas ou de programas, do empregador, que apoiem o compartilhamento de obrigações familiares. 

O relatório será divulgado pelo Governo Federal e as empresas deverão manter esses relatórios em seus site e mídias sociais. A penalidade para quem não apresentar o relatório de imposição multa administrativa cujo valor corresponderá até 3% da folha de salários do empregador, limitado a 100 salários mínimos.

Para além do relatório de transparência, a citada lei prevê a implementação de mecanismos de transparência salarial, fiscalização contra a discriminação, canais de denúncia, programas de diversidade e inclusão, e incentivos à capacitação feminina. Em casos de discriminação, os empregados têm direito a diferenças salariais e indenização por danos morais, com possibilidade de multa ao empregador. 

Vale relembrar que antes da Lei de Igualdade salarial, houve a promulgação da Lei 14.457/2022 que trata do programa Emprega + Mulheres e traz previsões para a inserção e permanência feminina no mercado de trabalho, fornecendo medidas de apoio à parentalidade, preferência de teletrabalho, suspensão do contrato de trabalho para qualificação profissional e outras iniciativas para promover a equidade de oportunidades.

Em relação ao panorama internacional, a Convenção 100 da OIT desempenha um papel significativo ao estabelecer o princípio da igualdade salarial por trabalho de igual valor entre homens e mulheres. Ao ratificar essa convenção, o Brasil se compromete a adotar, implementar e aplicar legislações que garantam essa igualdade, contribuindo para a eliminação da discriminação salarial de gênero.

Outrossim, a Lei nº 14.611/2023 reflete o compromisso do Brasil com a Meta 8 dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU – Agenda 2030. Esta meta visa promover o trabalho decente e o crescimento econômico, com o objetivo específico de alcançar remuneração igualitária para trabalhos de igual valor entre homens e mulheres até 2030.

Diante do exposto acima, percebe-se que a busca pela igualdade salarial entre gêneros é uma questão global que transcende as fronteiras nacionais. 

A Islândia, por exemplo, impôs medidas rigorosas em 2018, como exigir que as empresas comprovem salários iguais para homens e mulheres em funções equivalentes, sob pena de multa diária. Outros países, como Luxemburgo, também estão avançando nesse sentido, estabelecendo ministérios dedicados exclusivamente à igualdade de gênero e promovendo políticas para reduzir a disparidade salarial entre homens e mulheres.

Sem dúvida, a nova Lei o Brasil se alinha a outros países que também estão implementando medidas para combater a disparidade salarial entre homens e mulheres, como é o caso dos membros da União Europeia que recentemente aprovaram a Diretiva de Transparência Salarial.

Coincidência ou não, por aqui, as empresas terão até hoje, dia 8 de março, para enviar ao Governo Federal os dados necessários para o relatório.

É compreensível que as empresas enfrentem desafios ao lidar com o relatório de transparência salarial, especialmente devido à falta de clareza sobre o formato e tratamento das informações. A aplicação dessas regulamentações pode entrar em conflito com a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), uma vez que a divulgação pública de informações pode não alcançar a efetiva anonimização, sobretudo de posições que sejam ocupadas por poucas pessoas, bem como podem afetar questões concorrenciais, já que a ampla divulgação de salários poderia trazer consequências sobre o ponto de vista econômico. 

Essas preocupações levantam questões importantes sobre como equilibrar a transparência salarial com a proteção dos dados pessoais dos empregados, a preservação da livre concorrência, os preceitos do artigo 461 em relação aos critérios de equiparação salarial, destacando a necessidade de medidas cautelosas para (i) revisão dos critérios admissão e promoção dentro das empresas; (ii) plano de cargos e salários a partir de premissas objetivas; (iii) revisão atenta dos cargos e seus CBOs; (iv) medidas de apoio à admissão e promoção da mulher dentro das empresas, sobretudo visando a adoção de práticas que não sejam discriminatória. 

Com certeza, o sucesso na promoção da igualdade de gênero no mercado de trabalho requer uma abordagem abrangente que combine políticas sólidas, fiscalização eficaz (não apenas punitiva, mas propositiva de mudanças) e esforços contínuos de conscientização e educação.  Somente dessa forma podemos garantir um ambiente de trabalho verdadeiramente justo e igualitário para todas as pessoas, independentemente de seu gênero.

Portanto, as empresas precisarão navegar cuidadosamente nesse processo, buscando a conciliação de vários interesses, mas sem sombra de dúvidas, há uma perspectiva de mudança de paradigmas (e, ainda bem!), incentivando a adoção de critérios de admissão e promoção que levem em consideração a equidade salarial. 

¹ https://www.cnnbrasil.com.br/economia/diferenca-salarial-entre-homens-e-mulheres-vai-a-22-diz-ibge/