Lugar de Mulher é...


Lugar de Mulher é...


Por Silvia Pellegrini Ribeiro, Juliana Petrella Hansen e Beatriz Pereira de Paula

Março é o mês das mulheres. Nesse texto, não vamos falar da Queima de Sutiãs (“Miss America Protest1”), ocorrida na realização do concurso de Miss América em 1968, nos Estados Unidos (Atlantic City), mas, sim, sobre as previsões legais específicas às mulheres ao longo do tempo, no Brasil.

Não precisamos ir muito longe para encontrar alguns fatos impactantes. Por exemplo: há pouco mais de 50 (cinquenta) anos, mulheres não podiam votar ou ter inscrição no CPF. 

Em 27 de agosto de 1962, com o advento da Lei n. 4.121/622 (Estatuto da Mulher Casada), a mulher casada deixou de ser considerada relativamente incapaz (enquadramento do Código Civil de 1916), com reflexos no âmbito trabalhista, especialmente ao retirar do marido o poder de autorizar ou não o trabalho da esposa.

A conquista do direito à inscrição no CPF foi um marco, pois a partir daí as mulheres passaram a poder trabalhar e empreender, sem a necessidade de aval do marido.

Abaixo traçamos uma linha do tempo de conquistas de direitos pelas mulheres ao longo dos anos:

  • Século XIX - Relação de propriedade e submissão da mulher em relação ao homem. Era permitido, por exemplo, que o marido aplicasse castigos corporais na mulher e a matasse, quando flagrada em adultério3. A discussão, que parece distante, ainda é enfrentada em tempos atuais, tanto que foi necessária uma lei específica para tratar da violência doméstica contra a mulher, conhecida como Lei Maria da Penha4, que falaremos a seguir.
  • 1879 - Mulheres passaram a poder cursar ensino superior, mas permaneciam as restrições para o exercício do trabalho.

Desta época, citamos Nísia Floresta5,  tida como uma precursora do feminismo no Brasil e autora do livro “Direitos das mulheres e Injustiça dos Homens”, escrito em 1832.

  • Código Comercial de 1850 - Permitiu que as mulheres casadas, devidamente autorizadas pelo marido, exercessem a profissão de comerciante. 
  • Decreto 181/18906 - Removeu o direito de imposição de castigos corporais à esposa e aos filhos. Reparem: estamos falando de uma realidade que tem apenas 130 anos.
  • Código Civil de 1916 - A mulher era considerada relativamente incapaz; o homem permaneceu como chefe da sociedade conjugal e a ele competia o pátrio poder.
  • Lei 1.596 de 29 de dezembro de 1917 – Lei Estadual de SP que proibia o trabalho de mulheres em estabelecimentos industriais no último mês de gravidez e no primeiro puerpério.

Tarsila do Amaral7  é um dos grandes expoentes desta época, sobretudo em razão do movimento modernista e do movimento antropofágico no Brasil. Foi uma das responsáveis por organizar a Semana de Arte Moderna de 1922. Sua obra mais marcante – e talvez de toda a arte brasileira – é o famoso Abaporu.

  • Decreto nº 21.417ª, de 1932 - Regulamentou o trabalho da mulher em estabelecimentos industriais e comerciais, assegurando uma série de direitos específicos, como descanso de quatro semanas antes e quatro semanas depois do parto; garantia de retorno ao emprego nas funções que ocupava após o descanso pós-parto; dois intervalos diários de trinta minutos cada, nos primeiros seis meses, para amamentação; dentre outros (redação esta que guarda muita semelhança com a previsão atual do artigo 396 da CLT8). Esse decreto proibia as mulheres de realizarem trabalhos noturnos, em condições insalubres, perigosas e penosas, como na mineração em subsolo, pedreiras e obras de construção pública ou particular.
  • Código Eleitoral de 1932 - Reconheceu o direito do voto à mulher capaz e livre, maior de 21 anos, desde que possuísse economia própria decorrente de trabalho honesto ou fonte de renda lícita.
  • Constituição de 1934 - Avanço com a adoção do princípio da igualdade, tal como conhecemos hoje na Constituição Federal de 1988. O Constituinte, pela primeira vez, se preocupou com a situação jurídica da mulher ao traçar o princípio da igualdade proibindo expressamente a discriminação em razão do sexo. Essa Constituição aboliu o requisito da necessidade de possuir economia própria para usufruir o direito ao sufrágio imposta à mulher, reconheceu o direito ao voto a partir dos 18 anos e proibiu a diferença de salário para um mesmo trabalho, por motivo de idade, sexo, nacionalidade ou estado civil. 

Um dos destaques desta época foi que, em 1936, uma mulher deu um grande passo no cenário político: Carlota Pereira de Queirós9  foi eleita a primeira deputada no Brasil. Esse fato tornou-se significativo por ter concretizado a evolução da busca dos direitos da mulher. De não cidadã, a mulher passou a ocupar cargo no parlamento brasileiro. Importante ressaltar que Carlota já era uma mulher à frente do seu tempo, pois quando foi eleita deputada já era médica formada pela Universidade de São Paulo em 1926.

  • Constituições da República de 1937 e de 1946 - Representaram um retrocesso quanto aos direitos da mulher. Suprimiram a referência expressa à igualdade jurídica dos sexos, retomando a fórmula genérica das Constituições anteriores sobre o princípio da igualdade. 
  • Consolidação das Leis do Trabalho – CLT - 1943 Implementou normas que regulam as relações individuais e coletivas de trabalho, incluindo um capítulo específico sobre a proteção do trabalho da mulher que impunha restrições ao trabalho extraordinário, noturno, insalubre, perigoso e àqueles que demandassem emprego de força muscular superior a 20 quilos, se o trabalho fosse contínuo, ou 25 quilos, se ocasional.
  • Estatuto da Mulher Casada – Em 196210 , entrou em vigor a Lei nº 4.121, conhecida como o Estatuto da Mulher Casada, alterando dispositivos do Código Civil de 1916. Ela reconheceu a plena capacidade da mulher, determinou que a guarda dos filhos menores fosse dela, elevou-a a condição de colaboradora na administração da sociedade conjugal, dispensou a necessidade de autorização do marido para o trabalho e instituiu a figura dos bens à ela reservados, fruto de seu trabalho, que não respondiam pelas dívidas do marido. Parece um passado remoto, mas faz menos de 60 anos que a mulher tem o direito de trabalhar sem autorização de um homem!
  • Constituição de 1967 e a Emenda Constitucional nº 1 de 1969 - Retomaram o princípio da igualdade nos moldes da anterior Constituição Federal de 1934 e no mesmo sentido da Constituição Federal de 1988.   

Como destaque de personalidade feminina desta época, citamos Leila Diniz11 , que “em plena ditadura militar, era defensora do amor livre e da emancipação feminina12.” 

  • Lei nº 6.136/74, visando a diminuição da discriminação contra o trabalho da mulher, transferiu para o sistema de previdência social a responsabilidade pelo pagamento do salário maternidade, retirando esse ônus do empregador, atendendo, desta forma, o disposto na Convenção nº 103 da OIT, ratificada pelo Brasil dez anos antes.
  • Lei do Divórcio, de 1977, extinguiu a impossibilidade da dissolução do casamento. Por meio dela, a mulher poderia optar ou não por acrescentar o nome da família do marido; estabeleceu-se direito recíproco de prestação alimentícia entre os cônjuges e privilégios à mulher no que se refere à guarda dos filhos; modificou-se também o regime legal de bens, que ao invés de comunhão universal passou a ser o de comunhão parcial de bens.
  • Constituição de 1988 - em seu artigo 5º, estabeleceu que todos são iguais perante à lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. O art. 5º, inciso I, ressalta que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações; o art. 7º, inciso XVIII, concede o direito à licença gestante, sem prejuízo do emprego e do salário, com duração de cento e vinte dias; o art. 7º, inciso XXX, proibiu a diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil; o art. 201, inciso V, garante a pensão por morte de segurado, homem ou mulher, ao cônjuge ou companheiro e dependentes; e o art. 226, § 5º, dispõe que os direitos e deveres da sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher. Em decorrência do art. 7º, XXX, da CF/88, foram revogadas as leis que proibiam o trabalho noturno para mulher, em condições insalubres, perigosas e penosas.

Nesta década de 80, citamos Roberta Close13  como um dos expoentes, pois lançou discussão, ainda atual nos dias de hoje, sobre a questão dos transgêneros. Roberta foi a primeira modelo transexual a posar nua para a revista Playboy no Brasil.

  • Em 2001, foi revogado o art. 376 da CLT, acabando com as restrições para a realização de horas extras por mulheres. Vejam: apenas no século XXI, as mulheres puderam realizar as horas extras da mesma forma que os demais empregados homens.
  • Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990 - estabeleceu que o pátrio poder fosse exercido em condições de igualdade pelo pai e pela mãe e que o dever de sustento, guarda e educação dos filhos competia aos dois, consagrando a igualdade enunciada pela nova Constituição.

Como um dos expoentes femininos desta época, citamos a grande Zilda Arns Neumann, médica pediatra que encampou inúmeras ações humanitárias voltadas à criança e ao adolescente. 

  • Lei nº 9.799/1999 - apenas neste ano proibiu a publicação de anúncio de emprego com indicação de preferência ao sexo, exceto quando a natureza da atividade a ser exercida, pública e notoriamente, assim o exigir, e, também, proibiu considerar o sexo como variável determinante para fins de remuneração, formação profissional e oportunidades de ascensão profissional.
  • Lei 10.224, de 2001 - Acrescentou o art. 216 ao Código Penal, dispondo sobre o crime de assédio sexual, praticado pelo superior hierárquico que se prevalece dessa condição para constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, com pena de um a dois anos de detenção.
  • Novo Código Civil de 2002 - Foi quando a igualdade de gênero ganhou uma nova perspectiva. Aplicando o princípio constitucional da isonomia, consagrou que aos dezoitos anos a pessoa atinge a maioridade plena e que o poder familiar sobre os filhos menores seria exercido em situação de plena igualdade entre pai e mãe (art. 5º, parágrafo único, inciso I); permitiu também ao marido acrescer ao seu nome o nome da família da esposa (art. 1.565, § 1º); estabeleceu que a direção da sociedade conjugal fosse exercida, em colaboração, pelo marido e pela mulher (art. 1.567); dispôs que, na impossibilidade de um dos cônjuges administrar os bens que lhe incumbe, compete ao outro geri-los ou aliená-los (arts. 1.570 e 1.651); conferiu à mulher plena liberdade na disposição de bens particulares (art. 1.666); estabeleceu que compete a ambos os cônjuges a eleição do domicílio do casal (art. 1.569).
  • Lei 11.340/2006, também conhecida como Lei Maria da Penha, - Assegurou direitos às mulheres em situação de violência doméstica, garantindo, dentre os direitos, manutenção do vínculo trabalhista, quando necessário o afastamento do local de trabalho, por até seis meses.

Como uma das mulheres protagonistas desta época, além da própria Maria da Penha, destacamos a jogadora de futebol feminino Marta que já foi eleita 614 vezes  a melhor jogadora de futebol pela FIFA e tem histórico de luta contra o preconceito da mulher no futebol. 

Aproveitando a citação da Rainha Marta, lembramos que a Copa do Mundo Feminina de 2019 ganhou o título de HISTÓRICA, pois, pela primeira vez, os jogos foram transmitidos pela TV aberta brasileira. E, na Copa da visibilidade do futebol feminino, cerca de 1,12 bilhão de pessoas assistiram à competição, sendo que a América do Sul foi responsável por um aumento de 560%.

Porém, em que pese a maior repercussão, o abismo entre homens e mulheres ainda soa constrangedor no futebol. Um dos indicativos é a premiação paga pela FIFA às seleções participantes do Mundial. A federação dobrou o valor dos prêmios em relação à última edição, mas a quantia não chega a 1% do montante destinado aos times masculinos em 2018.

  • Lei Complementar 150/2015 – Assegurou novos direitos aos trabalhadores domésticos, como FGTS, adicional noturno, seguro desemprego, salário família, dentre outros. Ainda que a lei trate dos trabalhadores domésticos, tal ampliação de direitos reforçou a participação feminina no orçamento doméstico, não sendo raros os casos de famílias sustentadas pela remuneração da mulher.

Desse modo, a partir da análise da evolução histórica dos institutos brasileiros, é possível concluir que a luta da mulher pela conquista de direitos e igualdade foi árdua e vagarosa, permanecendo até hoje. É fato que a igualdade está prevista constitucionalmente e, portanto, é um direito assegurado, só que nem sempre é o que se vê na prática.

Alguns números estatísticos são interessantes e representam resposta da evolução legislativa, bem como da necessidade de mais mudanças. Estudo do SEBRAE15, com base em dados do IBGE, aponta que “nos últimos dois anos, a proporção de mulheres empreendedoras que são “chefes de domicílio” passou de 38% para 45%”. O mesmo estudo aponta que “mulheres empreendedoras são mais jovens e têm um nível de escolaridade 16% superior ao dos homens. Entretanto, elas continuam ganhando 22% menos que os empresários, uma situação que vem se repetindo desde 2015, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNADC), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)”. 

Discussões sobre representatividade e igualdade salarial devem andar em compasso com políticas efetivas de inclusão, como ações afirmativas para garantir representatividade nos cargos de liderança, políticas voltadas à licença parental, dentre outras.

Esse texto não tem a intenção de ser - embora no fundo seja - um texto feminista. Se, por um lado, os direitos das mulheres vêm sendo lentamente conquistados ao longo de todos esses anos, conforme demonstrado com os exemplos acima, por outro a mulher do século XXI vem enfrentando, cada vez mais, novos desafios, ao assumir posições de liderança e protagonismo na sociedade.

Nesse ano, tivemos a posse da primeira Presidente Mulher do Tribunal Superior do Trabalho, que conquistou essa posição por mérito e muita competência: Maria Cristina Peduzzi16 . A composição de presidência do Tribunal Superior do Trabalho existe desde 1948 e só agora uma mulher ocupa tal cargo desde a instauração do tribunal. 

Em tempos de COVID-19 (famoso Coronavírus), é importante destacar que o grupo de cientistas que sequenciou o genoma do vírus, em São Paulo, foi liderado por mulheres, as cientistas Jaqueline de Jesus e Ester Sabino17.

Pela primeira vez na história, duas mulheres (Yvonne Farrel e Shelley McNamara) venceram o prêmio Pritzker (conhecido como o Nobel de arquitetura), com seus projetos com agenda humanista.

Por tudo isso, feliz dia das mulheres para você, mulher, e para todas as pioneiras que citamos como exemplo neste artigo.

Feliz mês das mulheres, mas, também feliz janeiro, fevereiro, abril, maio... Porque a busca por igualdade e equidade entre os sexos, além do reconhecimento da importância da mulher na sociedade, deve ser diária.

Curiosidade: este texto foi escrito por 3 (três) mulheres, de gerações diferentes, mas unidas pela mesma força e inspiração desses séculos de conquistas, e certas de que muito já foi feito, mas ainda há um longo caminho.

Continuemos lutando e conquistando, pois, lugar de mulher é... onde ela quiser estar.

https://pt.wikipedia.org/wiki/Queima_de_suti%C3%A3s - Acesso em 10 de Março de 2020.

2 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/1950-1969/L4121.htm - Acesso em 10 de Março de 2020.

3 http://www.seti.pr.gov.br/sites/default/arquivos_restritos/files/documento/2019-07/unioeste_mcrondon_a_violencia_contra_as_mulheres_e_seus_reflexos_na_legislacao.pdf - Acesso em 10 de Março de 2020. 

4 https://pt.wikipedia.org/wiki/Lei_Maria_da_Penha - Acesso em 10 de Março de 2020. 

5 https://pt.wikipedia.org/wiki/N%C3%ADsia_Floresta_(escritora) – Acesso em 10 de Março de 2020.

6 https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-181-24-janeiro-1890-507282-norma-pe.html - Acesso em 10 de Março de 2020. 

7 https://pt.wikipedia.org/wiki/Tarsila_do_Amaral - Acesso em 10 de Março de 2020. 

8 O art. 396 da CLT estabelece que para amamentar o próprio filho, até que este complete 6 (seis) meses de idade, a mulher terá direito, durante a jornada de trabalho, a 2 (dois) descansos especiais, de meia hora cada um

9 https://pt.wikipedia.org/wiki/Carlota_Pereira_de_Queir%C3%B3s - Acesso em 10 de Março de 2020. 

10 https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1960-1969/lei-4121-27-agosto-1962-353846-publicacaooriginal-1-pl.html - Acesso em 10 de Março de 2020. 

11 https://pt.wikipedia.org/wiki/Leila_Diniz

12 https://mdemulher.abril.com.br/estilo-de-vida/20-mulheres-brasileiras-que-fizeram-historia/ - Acesso em 10 de Março de 2020. 

13 https://pt.wikipedia.org/wiki/Roberta_Close

14 https://globoesporte.globo.com/futebol/futebol-feminino/noticia/marta-se-torna-a-primeira-mulher-a-deixar-marca-na-calcada-da-fama-do-maracana.ghtml - Acesso em 10 de março de 2020. 

15 https://www.sebrae.com.br/sites/PortalSebrae/artigos/por-que-e-fundamental-estimular-o-empreendedorismo-feminino,ca96df3476959610VgnVCM1000004c00210aRCRD - Acesso em 10 de Março de 2020.

16 https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/02/19/ministra-cristina-peduzzi-toma-posse-como-nova-presidente-do-tribunal-superior-do-trabalho.ghtml - Acesso em 20 de Março de 2020. 

17 https://g1.globo.com/fantastico/noticia/2020/03/08/quem-sao-as-brasileiras-que-sequenciaram-o-genoma-do-novo-coronavirus.ghtml - Acesso em 20 de Março de 2020.