Inteligência Artificial e os decorrentes desafios no âmbito do trabalho


Inteligência Artificial e os decorrentes desafios no âmbito do trabalho


Por Silvia Pellegrini Ribeiro, Roberta Karina Macedo de Almeida e Catharina Siqueira Marques Gonçalves 

A rápida evolução da inteligência artificial (IA) está remodelando fundamentalmente o ambiente de trabalho em todo o mundo. À medida que empresas e organizações buscam aproveitar os avanços tecnológicos para aumentar a eficiência, surgem pontos de atenção e oportunidades únicas. 

Neste artigo não pretendemos esgotar o tema, mas, sim, refletir um pouco sobre como a IA está moldando o mercado de trabalho, os desafios que acompanham essa transformação, bem como as possibilidades que ela oferece aos profissionais e empregadores em termos de inovação e progresso.

Para analisar o futuro sem receio das transformações, precisamos rever um pouco da nossa história. Sobrevivemos a 3 (três) Revoluções Industriais e hoje podemos olhar para essa transformação que está batendo em nossas portas com expectativas positivas.

A Revolução Industrial, com início na Inglaterra por volta de 1760, representou o surgimento das indústrias como modelo de produção, em substituição aos métodos artesanais. Foram criadas novas tecnologias para otimizar o fluxo de trabalho. Tivemos alteração na realidade dos trabalhadores e empregadores, mas nos adaptamos e seguimos.

Logo na sequência tivemos a Segunda Revolução Industrial, em 1870, com o início da produção em grande escala baseada no desenvolvimento nas indústrias elétricas, químicas, metalúrgicas, dentre outras. Foram inventados novos produtos e processos, como por exemplo a lâmpada, o telefone, o avião, o automóvel. Tivemos o surgimento do Taylorismo, Fordismo e Toyotismo, como formas de organização da produção industrial, com suas semelhanças e diferenças conceituais.

Mais recentemente, houve a Terceira Revolução Industrial, especialmente a partir de 1969, com o surgimento dos conceitos de informática. Nessa fase já era possível sentir a influência do processo de globalização e vivenciamos o desenvolvimento da robótica, engenharia genética e biotecnologia, o que resultou, dentre outras coisas, em uma progressiva automatização do processo produtivo. Aqui já podíamos visualizar um laboratório para a nossa atual Revolução Industrial.

A Quarta Revolução Industrial, entre as últimas décadas do século XX e início do século XXI, trouxe avanços significativos em áreas como tecnologia da informação e comunicação, reforçando o processo de automação industrial (linhas de produção funcionais e com maior gerenciamento dos processos) e preocupação com a diminuição do desperdício de insumos e matérias primas. Começamos a lidar com o conceito de práticas ESG (Ambientais, sociais e de governança).

Também conhecida como Indústria 4.0, é caracterizada por uma série de inovações tecnológicas, onde as empresas passaram a ter uma maior preocupação no estudo de dados e informações do mercado. Algumas das principais características da Quarta Revolução Industrial incluem: Internet das coisas (IoT), inteligência artificial (IA); computação em nuvem; robótica avançada e realidade virtual e aumentada.

Pois bem, aqui estamos nós, vivendo em tempo real essa transformação e, porque não, aproveitando e aprendendo a lidar com esse leque de oportunidades que vem na carona dessa nova realidade tecnológica.

Assim como a Revolução Industrial transformou radicalmente a produção e o emprego no século XIX, a ascensão da inteligência artificial no mundo contemporâneo está moldando as relações de trabalho de maneira significativa. Ambos os períodos envolvem mudanças estruturais na economia e nas ocupações.

Na Revolução Industrial, a automação de processos manuais impulsionou a produção em larga escala, criando novos empregos, mas também deslocando trabalhadores de habilidades específicas. Da mesma forma, a inteligência artificial e a automação moderna estão alterando a natureza do trabalho, substituindo tarefas rotineiras e demandando habilidades mais orientadas para a tecnologia.

Contudo, uma diferença crucial é que a IA, ao contrário da Revolução Industrial, afeta também trabalhos altamente especializados. Isso destaca a importância da educação contínua e da adaptação às mudanças tecnológicas para os profissionais modernos, inclusive considerando que as mudanças são muito dinâmicas e algumas ferramentas logo se tornam obsoletas. 

O desafio agora é equilibrar os benefícios da automação com a proteção dos trabalhadores, inclusive sua saúde emocional, e a promoção de uma transição justa e equilibrada.

Em que pese existir uma discussão sobre a redução de alguns postos de trabalho em razão dos benefícios da IA, certo é que a implementação e crescimento dessa nova indústria e dos sistemas de IA estão criando oportunidades de emprego. Todavia, essas oportunidades advêm para o próprio desenvolvimento desses novos sistemas. 

Isso significa dizer que haverá necessidade de uma adaptação rápida à nova realidade. Bem assim, devem ser reforçados, de modo contínuo, os cuidados com a garantia do direito de desconexão aos trabalhadores, tanto no tocante ao volume de informações e contatos fora do horário de trabalho como no controle de horas de trabalho/produção que ganham maior abrangência com programas de IA. 

Algumas empresas estão investindo em treinamento de profissionais cujas atividades poderiam ser absorvidas pelo uso da IA, de modo a investir em suas respectivas requalificações, para viabilizar seu aproveitamento em novas posições alinhadas com as novas demandas decorrentes da reestruturação do fluxo de trabalho.

Com efeito, de acordo com pesquisas, espera-se que em até 5 (cinco) anos a IA vá alterar as habilidades profissionais e pessoais de 44% dos profissionais brasileiros. Teremos novas profissões como, por exemplo, Chief Artificial Intelligence Officer, que será um profissional com competências para implementação da IA de forma estratégica nas empresas e nos fluxos de trabalho¹.

Da mesma forma, a discussão sobre regulação, segurança e governança da utilização da IA vai demandar acompanhamento quanto à sua utilização. Por isso, advogados e profissionais de ética em IA poderão ser responsáveis por fazer essa análise e garantir que as máquinas não se sobreponham às questões humanitárias, éticas, não gerando distorções ou formas de discriminações, atuando na governança sobre os limites e impactos do uso da IA no âmbito das empresas.

Com relação a esses limites sobre o uso ético e legal da IA, um dos grandes e principais desafios jurídicos enfrentados com a implementação do novo sistema de inteligência artificial ao mercado de trabalho reside, por exemplo, na discriminação algorítmica. 

À medida que os algoritmos se tornam mais autônomos e complexos, é difícil estabelecer ou até mesmo atribuir responsabilidade por erros e decisões significativas no âmbito legal. A não existência de um limiar para a transparência nos algoritmos de IA pode dificultar a tomada de decisões. No âmbito do direito do trabalho, isso poderá ser vivenciado, por exemplo, em processos seletivos, com possibilidade de eventuais práticas discriminatórias por erro na programação do algoritmo.

Outra questão interessante que surge na área de segurança e medicina do trabalho são as tecnologias inteligentes voltadas a melhorar e controlar de modo mais eficaz as condições de trabalho, buscando a redução de riscos ocupacionais. Atualmente, o histórico de acidentes de trabalho no Brasil encontra-se com uma média de 604 mil trabalhadores e 2.597 casos fatais.

Esses mecanismos coletam dados em tempo real, a fim de controlar a saúde dos trabalhadores (com controle de respiração, batimento cardíaco, pressão arterial, contagem de passos, condições físicas), o meio ambiente e as condições laborais. Eles também fazem medições sobre os equipamentos, tanto sobre o seu estado operacional, emissões de poluentes, dentre outros, como também identificando eventuais riscos ou perigos de acidentes. Esses dados são analisados por IA e podem alertar para riscos ou oferecer soluções.

Essas medidas representam um importante avanço na redução de acidentes e doenças ocupacionais, mas demandam um olhar atento e cuidados em termos da Lei Geral de Proteção de Dados, já que são coletados dados pessoais. Demandam também respeito à liberdade e individualidade do trabalhador, evitando que seja extrapolado o direito potestativo do empregador e evitando desrespeito à isonomia de tratamento e dignidade humana².

Existe um trabalho sobre IA Ética, da Dra. Virginia Dignum, que descreve de forma cativante em seu livro “Responsible Artificial Intelligence – How to Develop and Use AI in a Responsible Way” como a Inteligência artificial deve ser desenvolvida e usada de forma ética. Segundo estudo realizado, os cuidados envolveriam essencialmente 3 (três) áreas de atenção para implementação ética da IA:

  1. O processo de concepção dos sistemas de inteligência artificial, garantindo as possíveis consequências da inserção desse sistema para o nosso modelo social-econômico, trabalhista e jurídico. Portanto, à medida que a cadeia de responsabilidade aumenta, se fazem necessários os meios coerentes e legais para vincular os sistemas de IA e o uso justo, seguindo os padrões sociojurídicos do nosso sistema.
  2. O “design” do comportamento dos sistemas, buscando introduzir de maneira adequada as capacidades de raciocínio ético, legal e seguro dos agentes inteligentes. A transparência refere-se à necessidade de inspecionar e descrever como funcionarão os algoritmos do sistema de IA, trazendo clareza ao dados que serão utilizados, com foco inclusive em eventuais práticas discriminatórias decorrentes do algoritmo e/ou do analista de dados.
  3. Regulamentação apropriada e processos de certificação que garantem o uso correto desse novo sistema, como já existem nas demais profissões. À medida que a cadeia de responsabilidades cresce, são necessários meios e regras que vinculem o uso justo e correto dos dados, em consonância com as ações das partes envolvidas. 

Sem dúvida vivemos um momento desafiador. Olhando para frente, pensamos na importância de preparar nossas crianças, com revisão da grade curricular, nossas equipes e a nós mesmos para este novo tempo. 

E que venha a quinta Revolução Industrial. Estejamos preparados.


¹ https://forbes.com.br/carreira/2023/06chief-ai-officer-chatgpt-como-ceo-e-naus-como-a-ia-esta-mudando-o-trabalho/.

² Artigo “Riscos Profissionais, Tecnologias “Inteligentes”, Saúde, Segurança e Meio Ambiente do Trabalho, por Rosane Gauriau, Revista LTs, Legislação do Trabalho, Ano 87, nº 9, Setembro de 2023.

BIBLIOGRAFIA

DIGNUM, V. Responsible Artificial Intelligence – How to Develop and Use AI in a Responsible Way. Artificial Intelligence: Foundations, Theory, and Algorithms. Springer, 2019. 

SOBRAL, D., & MOREIRA, J. (2021). Artificial intelligence at Work: Legal Implications and Challenges. Springer. 

International Labour Organization (2021). Working Paper: Artificial Intelligence at Work.

SICHMAN, J. S. et al. É possível a máquina superar o ser humano? Jornal da USP, n.XXX1, 2016.

FELICIANO, Guilherme Guimarães; SILVA, José Antônio Ribeiro de Oliveira. A inteligência artificial e o direito do trabalho: lampejos utópicos para um futuro distópico. Revista do Tribunal Superior do Trabalho, São Paulo, v. 88, n. 1, p. 25-52, jan./mar. 2022. Disponível em: https://hdl.handle.net/20.500.12178/203676. Acesso em: 21 jan. 2024.