Familiares com diferentes ou múltiplas residências fiscais - Desafios Tributários


Familiares com diferentes ou múltiplas residências fiscais - Desafios Tributários


Por Leandra Guimaraes, Carolina Sotto Mayor Barreto e Juliana Federici Guedes

É cada vez mais constante a situação de famílias com membros que possuem diferentes nacionalidades¹ e, às vezes, múltiplas cidadanias² ou residências fiscais³. Foi-se o tempo em que isso era uma particularidade de famílias mais abastadas; hoje em dia essa situação tem se tornado cada vez mais comum.

Nos últimos tempos, os jovens ganharam o mundo em busca de novas experiências, vivências, oportunidades de conhecimento e de crescimento profissional. Em razão disso, hoje em dia é comum filhos de brasileiros morando em outros países, casando-se no exterior, tendo maridos, esposas ou filhos de outras nacionalidades, ou seja, expandindo a família em outros países. Portanto, tem se tornado cada vez mais frequente famílias nas quais os filhos, netos ou parentes próximos nasceram ou vivem em outros países, com diferentes ou múltiplas cidadanias e novas residências fiscais.

Também ficou no passado o tempo em que somente os homens buscavam novos horizontes longe de casa, enquanto as mulheres ficavam tomando conta da família, da casa e dos filhos. Isso não é mais uma verdade e nem mesmo é uma predominância. Hoje as mulheres saem do Brasil buscando novas oportunidades, novos campos de atuação em outros países e, com isso, adquirem outras residências fiscais ou, até mesmo, múltiplas residências fiscais. Portanto, este tema passou a ser de interesse de muitas famílias e, especialmente, de muitas mulheres.

Então, porque esse tema tem tanta importância? A resposta é simples: porque podem ocorrer diversas consequências decorrentes da caracterização de múltiplas residências fiscais, ou da aquisição ou perda da residência fiscal no Brasil ou em outro país. 

Por exemplo, é comum nos depararmos com indivíduos que deixam o país e, acreditando possuírem a prerrogativa de manter a residência fiscal no Brasil, seguem desenvolvendo suas atividades profissionais no exterior por longos períodos, acumulando patrimônio no exterior, ao mesmo tempo em que também mantêm vínculos e patrimônio no Brasil, sem se atentar às regras e exigências fiscais vigentes, nem aos potenciais impactos negativos que podem advir dessa circunstância. 

Fato é que, de acordo com a legislação brasileira, basicamente, a residência fiscal no Brasil é considerada encerrada nos casos em que a pessoa sai do Brasil com ânimo definitivo ou, se com ânimo temporário, permaneça no exterior por mais de 12 meses. O encerramento de residência fiscal não é uma faculdade do contribuinte, nem do seu ânimo definitivo de residir no Brasil, mas sim uma decorrência de fatos e circunstâncias que impliquem em perda do caráter permanente de sua residência fiscal no Brasil.

O encerramento da residência fiscal se formaliza através da apresentação da Comunicação de Saída definitiva do País e da Declaração de Saída Definitiva do País, que muitas vezes não são feitas. Embora tais documentos sejam essenciais ao encerramento da residência fiscal a partir da data de saída ali informada, não evidenciam ou confirmam, por si só, o caráter permanente da retirada para o exterior. A falta de apresentação desses documentos apenas posterga a condição de não residente para o 13º mês após a saída, ainda que a retirada tenha se dado em caráter permanente.

Outras vezes a documentação (Comunicação ou Declaração de Saída Definitiva do País) é apresentada à Receita Federal do Brasil, mas as fontes pagadoras do Brasil não são devidamente comunicadas. Tal situação gera inconsistências entre os regimes de tributação adotados pelas fontes pagadoras e aquele que seria devido. Isto porque vários tipos de rendimentos estão sujeitos a regimes de tributação diferenciados quando pagos para residentes fiscais no Brasil ou quando pagos para não residentes. Tal situação pode gerar pendências no CPF do não residente, podendo bloquear contas correntes e aplicações financeiras, dificultando movimentações financeiras ou patrimoniais do mesmo, cujo processo para a regularização do CPF pode ser árduo e demorado, causando inúmeros transtornos e prejuízos ao não residente. 

Outro aspecto a ser considerado é o problema do não residente se manter indevidamente como residente fiscal, muitas vezes até apresentando a declaração de imposto de renda de ajuste anual (Declaração de Imposto de Renda da Pessoa Física) no Brasil. Entretanto, desconhece o fato de que, se for considerado residente fiscal no Brasil, deverá inserir na DIRPF as rendas mundiais, o que geralmente não acontece. Neste caso, o encerramento da residência fiscal ocorre de fato, mas não de direito, o que pode acabar por gerar inconsistências e pendências na Receita Federal, com possibilidades de cobranças de impostos em montantes estratosféricos.

Em outras situações, mesmo quando cumpridas todas as formalidades documentais  - ou seja, tenha sido entregue a Comunicação de Saída Definitiva do País e a Declaração de Saída Definitiva do País,  apresentadas as comunicações de não residente fiscal às fontes pagadoras, pagos todos os tributos necessários para o encerramento da residência fiscal, conforme for caso –  outros aspectos tributários de considerável complexidade podem ser aplicáveis, exigindo uma vigilância para preservar o adequado tratamento fiscal e evitar situações de dupla tributação. Por exemplo, a necessidade de: (i)  reportar todo o patrimônio e rendimentos auferidos no Brasil às autoridades fiscais do  país onde o não residente mantém residência fiscal (ou vice e versa, conforme for caso); (ii) verificar se no país da nova residência fiscal existe acordo para evitar a dupla tributação com o Brasil ou regra de reciprocidade para a compensação do imposto pago num  país, em  relação ao tributo devido  no outro país. Tudo isso para evitar-se a dupla tributação ou que haja cobrança de multas por descumprimento de obrigações acessórias ou por inobservância da legislação interna e/ou internacional.

A situação de cônjuges com diferentes nacionalidades e residências fiscais também tem atraído complexidade para as estruturas familiares e conjugais. Esse aspecto chama a atenção porque a mobilidade de famílias também tem se tornado um evento muito mais frequente. É o que se verifica quando pais com diferentes nacionalidades se deslocam de um país para outro por temporadas, por conveniência, por oportunidades, por necessidades familiares ou, até, para se reunirem com filhos expatriados que lhes antecederam no processo de emigração. O fato é que a gestão dos impactos e consequências tributárias em relação ao período em que se vive num ou noutro país deve ser cuidadosamente analisada, porque pode desencadear carga tributária diversa e maior do que a necessária, tornando quase inevitável a complexidade da situação. Por isso, neste contexto é extremamente recomendável o planejamento pré-emigratório e imigratório em conjunto com assessores legais do país de destino.

Veja-se, por exemplo, que o fato de manter permanência estável e duradoura no Brasil (residência em caráter permanente), em razão da manutenção de um lar próprio, vínculos afetivos familiares e concentração das atividades econômicas, são indícios considerados pelas autoridades fiscais brasileiras para configurar a residência fiscal no País, sendo tais critérios observados pelas autoridades fiscalizadoras para desconsiderar a efetividade de saída definitiva do País. Portanto, nos casos em que os pais necessitam morar em países diferentes, com residências fiscais diversas, é importante observar que o brasileiro que tenha adquirido a condição de não-residente se retornar ao Brasil com ânimo definitivo, voltará a ser considerado residente na data da chegada. 

Desta forma, a situação individual de cada pessoa deve ser considerada e cuidadosamente analisada para evitar consequências tributárias desastrosas. Vale ressaltar que um breve retorno a título de férias não deve caracterizar o retorno ao Brasil com ânimo definitivo, mas a existência de evidências que consubstanciem essa situação é essencial. 

Outro aspecto a ser considerado é o tratamento tributário da herança ou doação que deverá ser recebida por herdeiros ou donatários não residentes no Brasil, oriunda de pais ou doadores que permaneceram residentes fiscais no Brasil e aqui acumularam patrimônio. Essa herança ou doação será tributada no Brasil? Ou no país de residência do herdeiro ou do donatário não residente no Brasil? Em ambas as jurisdições? Há alguma estrutura que possa mitigar ou postergar o momento da tributação? Também nestes casos é importante analisar minuciosamente a situação, objetivando evitar tributações excessivas e desnecessárias decorrentes da transmissão dos bens e direitos aos herdeiros, na insaciável fome de arrecadação.

É importante considerar que essa complexidade não é decorrente apenas da legislação tributária, que, via de regra, já é complexa, mas do fato de que nossas relações familiares e patrimoniais estão cada vez mais sofisticadas, incluindo múltiplas cidadanias, diversas ou múltiplas residências fiscais. 

Ademais, esses aspectos se tornaram extremamente relevantes para inúmeras famílias e indivíduos, afetando não apenas patrimônios vultuosos, mas também os patrimônios considerados “normais”; também deixaram de ser preocupação exclusiva masculina, para integrar a agenda das mulheres, que ganharam o mundo e acumulam patrimônio com representatividade no conjunto familiar. 

Então, “fica a dica” às mulheres que estão à frente, ou com participação significativa, da gestão de suas famílias e patrimônios: é preciso ficar atenta às particularidades e à necessidade de uma gestão mais miúda e cuidadosa dos adventos que integram o “novo normal” das famílias internacionalizadas. 

¹ Nacionalidade é um vínculo jurídico político que liga um indivíduo a um determinado Estado, fazendo com que este seja titular de direitos e deveres provenientes daquele Estado. A nacionalidade pode ser primária ou originária, decorrente do fato gerado pelo nascimento do indivíduo - local do nascimento (ius solis) ou vínculo sanguíneo, decorrente de filiação, ascendência (ius sanguinis) – ou pode ser secundária, ou adquirida, quando por vontade própria, o indivíduo adquire outra nacionalidade após o nascimento, desde que cumpridos os requisitos determinados pelo país que pretende adquirir o vínculo jurídico-político (art. 12 da CF/1988)..

² Cidadania é definida como sendo o exercício pleno dos direitos civis, que garantem a vida em sociedade, dos direitos políticos, que garantem a participação no governo da sociedade, e dos direitos sociais, que garantem a participação na riqueza coletiva, em uma sociedade democrática de direito. Uma cidadania plana, combina liberdade, participação e igualdade para todos. (Carvalho, Jose Murilo. Cidadania no Brasil – o longo caminho. 3. Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 9-10)

³ A residência fiscal consiste na jurisdição onde o contribuinte se localiza para efeitos de arrecadação de tributos e sujeição à legislação tributária. Em suma, é a localização do contribuinte face à administração pública em matéria fiscal.