As transações por PIX e a identificação de fatos tributáveis


As transações por PIX e a identificação de fatos tributáveis


Por Maristela Miglioli e Emile Silvestre de Castro Ezequiel*

Não é de hoje que presenciamos os efeitos da globalização, potencializados pelos avanços tecnológicos que permitem um “trânsito” automático de informações dentre os diversos repositórios, como uma gigantesca “engenhoca” destinada a alimentar o fisco – é o ponto que aqui nos interessa – de tudo o que acontece na vida dos contribuintes.

Não há ilegalidade alguma nisso; pelo contrário, o ordenamento jurídicocontém dispositivos que legitimam tais condutas, no intuito de colaborar na fiscalização dos tributos, cuja finalidade última seria, em tese, financiar a atividade estatal em prol do bem comum. O dever de informar as operações realizadas por meio de PIX se insere nesse contexto.

Dito isso, em Setembro de 2022 foi publicado o Convênio ICMS nº 166, que altera alguns dispositivos do Convênio nº 134/2016, para prever a obrigatoriedade de fornecimento, pelas instituições financeiras e demais empresas de meios de pagamento, de todas as operações efetuadas com cartões de débito, de crédito, de loja (private label), transações eletrônicas do Sistema de Pagamento Instantâneo, entre outros instrumentos de pagamentos eletrônicos, realizadas por pessoas jurídicas ou físicas, contribuintes ou não do ICMS.

Todavia, o “ponto chave” é a previsão de que as operações via PIX sejam fornecidas “(...) desde o início dos serviços deste meio de pagamento”, o que nos faz “soar o alerta” quanto ao potencial uso dessas informações para lançar tributos com efeitos retroativos.

A preocupação é legítima no atual cenário jurídico brasileiro, no qual nem mesmo a coisa julgada material (ou seja, aquela decisão judicial da qual já não cabe mais recurso e contém um comando definitivo a ser seguido) se torna imutável.

Mas, voltando ao caso concreto: o fornecimento retroativo de informações ao fisco não ofende o princípio da irretroatividade, porque representa, apenas, o aperfeiçoamento dos instrumentos de fiscalização e controle, podendo levar novos fatos geradores ao conhecimento do fisco. Até aqui, sem problemas.

A questão – e talvez seja uma preocupação baseada exclusivamente no histórico de quem já vivenciou isso no passado – pode complicar se essas transações, por si só e isoladamente, vierem a ser interpretadas como “indícios de sonegação fiscal”, “inconsistências” ou, pior ainda, “renda omitida” ou “renda sem origem” (conceitos bem fluidos, diga-se de passagem).

Ou seja, vislumbra-se um cenário muito semelhante ao ocorrido na época da CPFM, cuja única finalidade não era (e nunca foi) arrecadar tributo; visava-se, bem ao contrário, utilizar a alíquota para, numa simples operação matemática, conhecer o volume movimentado pelos contribuintes em suas contas bancárias. E, a partir disso, foram inúmeras as intimações exigindo explicações quanto à origem dos montantes.

E também foram inúmeras as tentativas de explicar, ao fisco voraz, que “movimentação de recursos” não tem relação direta com “obtenção de renda/lucro”, entendido este conceito como aquilo que agrege, que acrescente, que incremente o patrimônio do titular2. Não é à toa que, desde os primórdios, o conceito de “renda” é umbilicalmente atrelado ao tempo, ou seja, mede-se a “renda” dentro de certo período de dias (30, 90, 365, por exemplo), para permitir a comparação do “antes” e do “depois”.

Lembramo-nos, vividamente, de uma autuação fiscal lavrada em desfavor de uma empresa da área de turismo que, como todas as outras nesse setor, movimentava em suas contas bancárias os recursos (dos clientes) utilizados para remunerar os prestadores de serviços vinculados à viagem (a ser usufruída pelo cliente): compra de passagens aéreas, de traslados, hospedagens, vouchers de passeios, de espetáculos, de restaurantes e etc.... Era uma infinidade de transferências bancárias, ingressos e saídas de recursos, sendo que nada, quase nada, representava receita própria da agência de turismo, e muito menos “lucro”! O caso foi emblemático e torna-se exemplo que pode vir a se repetir.

A similitude ora apontada é válida porque o PIX também é uma operação de transferência de recursos, que, recomenda-se, deve ficar documentada de alguma maneira, permitindo a sua rastreabilidade e justificativa, se necessário. Parece óbvio, mas a agilidade desse instrumento atrai um certo “relaxamento” quanto a tais preocupações, que inexistem numa transferência bancária pelos métodos “tradicionais” (DOC e TED), ora ultrapassados.

No que diz respeito à irretroatividade, nunca é exagerado lembrar que o fisco pode efetuar o lançamento (ou seja, identificar o tributo e iniciar os procedimentos de cobrança, em termos bem genéricos) em relação aos (supostos) fatos geradores dos últimos 5 (cinco) anos; tudo o que ultrapassar esse limite não pode sofrer novas incidências/cobranças.

Nesse cenário, não custa avaliar, com rigor e cuidado, se o conjunto das operações de PIX realizadas pelo leitor, ao longo do ano passado, está compatível com a renda que deverá ser declarada ao fisco até o final do mês de maio. Obviamente, o alerta vale para as pessoas jurídicas também, num nível de controle bem mais intenso, já que, neste caso, há outros sistemas da Receita Federal que conversam entre si (ECF, EFD, eSocial, NF-e e etc...) e “turbinam” o fluxo de informações oriundo dos meios de pagamento.

Afinal, qualquer que seja a natureza do contribuinte, o velho e bom ditado de nossos avós permanece válido: cautela e canja de galinha nunca são demais!

Referências:

1 Código Tributário Nacional, artigo 113, parágrafo 2º.

2 Código Tributário Nacional, artigo 142.