Por Maíra Sampaio Cavalcanti e Regiane Alves Ribeiro dos Santos
Prestes a completar 135 anos de abolição da escravatura, infelizmente fomos expostos ao surgimento de diversas notícias sobre trabalhadores resgatados de suas atividades laborais por estarem submetidos a condições degradantes e/ou análogas à escravidão. O artigo 149 do Código Penal definiu a condição análoga à de escravo, como sendo a submissão de um indivíduo à execução de trabalhos forçados ou à jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto.
Recentemente, a discussão sobre o tema veio à tona após a operação deflagrada pela Polícia Federal em conjunto ao Ministério do Trabalho e Emprego, envolvendo trabalhadores de vinícolas localizadas em Bento Gonçalves no Rio Grande do Sul, que libertou mais de 200 homens submetidos a condições degradantes de trabalho. Somente em 2022, de acordo com dados apurados pelo Governo Federal, a Inspeção do Trabalho resgatou 2.575 trabalhadores expostos à essa realidade, em um total de 462 fiscalizações realizadas no ano em todo país.
Sob a ótica privada e contratual, é importante observar que será atribuída, tanto à empresa quanto aos seus administradores, responsabilidade administrativo-trabalhista em razão da contratação ilegal de trabalhadores. Sob a ótica penal, aos administradores é possível imputar a responsabilidade criminal prevista no artigo 149 do Código Penal.
Além da empresa contratante direta da mão de obra ilegal, as empresas indiretamente envolvidas nesse tipo de exploração, seja por terceirização, quarteirização ou por qualquer outra cadeia de prestação de serviços, também devem estar atentas à responsabilização por exploração de mão de obra ilegal, uma vez que a mera alegação de desconhecimento não é suficiente para afastar a culpa. Atualmente, segundo o entendimento dos tribunais conjuntamente à legislação trabalhista, essa responsabilidade é caracterizada como subsidiária e as sanções aplicadas a estas empresas podem ser agravadas caso seja comprovado que tinham conhecimento e compactuavam com esse tipo de contratação e/ou não realizaram as devidas fiscalizações sobre o serviço contratado, em razão do vínculo contratual estabelecido entre empresas.
Em recente decisão proferida pela Justiça Federal, os sócios de uma empresa de moda feminina foram absolvidos da acusação de utilização de mão de obra escrava feita pelo MPF, sob o argumento de que não era possível supor que os acusados possuíam conhecimento das condições degradantes em que os produtores de suas peças se encontravam, uma vez que não eram responsáveis pela produção e fiscalização do processo de confecção, e tão somente pela aquisição dos produtos finalizados.
Embora, nestes casos, a responsabilidade das empresas possa ser eventualmente revertida na esfera judicial, os principais danos causados à empresa vinculada à contratação de mão de obra ilegal estão relacionados à sua imagem e credibilidade no mercado. Para que riscos neste sentido possam ser mitigados, é imprescindível a adoção de práticas que proporcionem maior nível de segurança no momento da contratação, seja de prestação de serviços, na aquisição de produtos e/ou eventuais terceirizações de processos produtivos. Uma dessas medidas é a inclusão de cláusula contratual específica onde a contratada declara e garante que trata seus colaboradores de forma digna e respeitosa, que cumpre com a legislação trabalhista, criminal e cível, não utilizando trabalhadores submetidos ou forçados a condições ilegais, tais como trabalho infantil, forçado, escravo ou análogo à escravo, sob pena de rescisão contratual.
A inclusão de dispositivos contratuais neste sentido, e que preveem a declaração de idoneidade pela parte contratada, tem se tornado cada vez mais comum, pois resguarda o contratante e possibilita a rescisão contratual por inadimplemento da parte contrária, com a consequente cobrança de multa e ressarcimento por perdas e danos que a contratação de mão de obra ilegal possa dar causa.
Outro ponto importante que as empresas contratantes devem observar é se a empresa contratada pratica o pagamento de valores de mercado aos seus empregados, bem como o recolhimento de verbas e direitos trabalhistas, e se o pagamento acordado pelos serviços contratados também está dentro da média do mercado, o que demonstra, além de um compromisso de boa-fé entre as partes, que os trabalhadores estão sendo propriamente remunerados conforme os valores legalmente previstos ao tipo de serviço contratado. Paralelamente, nada obsta que a contratante crie a obrigação periódica, de apresentação de documentos suplementares pela contratada, como comprovantes e declarações, como forma de comprovação do cumprimento das referidas obrigações.
Adicionalmente à diligência contratual, existem diversos mecanismos que podem ser utilizados como medida de proteção no momento da contratação de serviços de modo que estejam alinhados com a lei e com os padrões de ética e responsabilidade social da empresa, tais como a adoção de melhores práticas de ESG, que vêm sendo amplamente promovidas pelo mercado, seja pelo emprego de comitês e auditorias especializadas na fiscalização do trabalho contratado e criação de políticas internas de compliance, ou pela consulta a documentos oficiais como a “Lista Suja”, cadastro promovido pelo Governo Federal que elenca todos os empregadores condenados administrativamente pelo Ministério Público do Trabalho pela exploração de trabalho em situação análoga à de escravidão. Mais informações sobre este tema podem ser encontradas no artigo escrito pela equipe Trabalhista de nosso escritório pelo seguinte link https://www.azevedosette.com.br/noticias/pt/o-trabalho-em-condicoes-analogas-as-de-escravo-nos-tempos-atuais-a-escravidao-digital-o-burnout-e-o-quiet-quitting/6945.
Dessa forma, do ponto de vista contratual, é de suma importância que as empresas prezem pela elaboração cautelosa de seus contratos, com previsões claras sobre a temática trabalhista e capazes de resguardar seus direitos. Por outro lado, é também fundamental que a iniciativa privada adote premissas e padrões capazes de incentivar o combate ao trabalho realizado de forma degradante e em condições análogas a de escravo, bem como propagar uma cultura econômica mais sustentável, voltada para o meio ambiente e social, que inclui a garantia constitucional da manutenção da dignidade da pessoa humana e dos valores sociais do trabalho.
Referências:
https://www.conjur.com.br/2018-mai-19/crime-trabalho-escravo-acontece-empregado-perder-liberdade