Sociedade Anônima do Futebol: surgimento e panorama geral após um ano de lei


Sociedade Anônima do Futebol: surgimento e panorama geral após um ano de lei


Por Gabriela Lima Nogueira, Thales Estevam Ramalho e Adriana Akemy Hatano

Há um ano o país do futebol ganhava nova lei para regulamentar a recente figura jurídica do mundo da bola: a Sociedade Anônima do Futebol (“SAF”). Jogadora em campo e já conhecida pelos torcedores e pelo mercado, a SAF é consequência de uma discussão acalorada que circunda o esporte desde muitos anos, inclusive diante da Lei nº 9.615/98 (“Lei Pelé”), trazendo novamente à tona o debate acerca do caráter empresarial da atividade futebolística. 

A despeito do profissionalismo do futebol ter surgido sob a perspectiva de associação, portanto, sem fins lucrativos, não demorou para a realidade do futebol se distanciar desta premissa e para que o amor à camisa, que ainda sustenta toda a engrenagem do futebol, passasse a dividir espaço com os interesses econômicos e lucrativos.

Para concretizar este afastamento do modelo associativo e se aproximar das figuras jurídicas que cuidam da organização de atividades econômicas – as sociedades empresárias, a Lei 14.193/21 (“Lei da SAF”)1 utiliza-se da Lei nº 6.404/76 (“LSA”)2, instituindo uma espécie de figura especial da "sociedade anônima". 

Apesar de reconhecido como subsidiário o caráter que a LSA tem na Lei da SAF, conforme artigo 1º desta última, a relação entre as leis é de intensa complementariedade, haja vista que a base da sociedade anônima é herdada, praticamente em integralidade, da LSA. Noutras palavras, a Lei da SAF dispõe sobre particularidades deste tipo societário em seus artigos, mas precisa da LSA para sua inteligibilidade por completo.

Na prática, a SAF traz ferramentas mais robustas para viabilizar que os clubes-associação possam se transformar em clubes-empresa, fazendo jus ao mercado econômico altamente vantajoso que o futebol representa, que chegou a movimentar R$ 52,9 bilhões na economia nacional em 2018, conforme estudo realizado pela consultoria EY em 2019, a pedido da Confederação Brasileira de Futebol3

E neste sentido, apesar do enorme capital movimentado com o futebol, os comentários sobre o surgimento da SAF não podem se dissociar da realidade drástica que alguns dos clubes mais tradicionais brasileiros enfrentam, com gestões ineficientes, déficits acumulados e dívidas que ultrapassam, em média por clube, quinhentos milhões de reais4. Diante desse cenário, o parlamentar Rodrigo Pacheco (PSD), criador do projeto de Lei da SAF, acredita que “a transformação do regime de tutela do futebol vai possibilitar a recuperação da atividade futebolística, aproximando-a dos exemplos bem-sucedidos que se verificam em países como Alemanha, Portugal e Espanha”5. 

Portanto, a SAF surge como uma ferramenta de soerguimento da atividade futebolística, viabilizando instrumentos para sobrevivência financeira dos clubes, principalmente os mais endividados, que para o consultor financeiro de futebol Amir Somoggi são o público-alvo da lei6. Para isso, visa melhorar a gestão dos clubes dentro de uma lógica empresarial mais profissionalizada, de acordo com regras mais claras e que facilitem seu funcionamento e lucro.

Entretanto, há que se dizer que a SAF não é uma solução milagrosa para as dívidas e gestão dos clubes, de modo que apenas oferece meios para tal, com regras que vão desde a gestão do clube, até medidas reparadoras para renegociar o seu passivo como Recuperação Judicial e Regime Centralizado de Execuções (artigo 13, inciso I, da Lei da SAF), bem como a adoção do regime de tributação específica do futebol (artigos 31 e 32 da Lei das SAF), todos aspectos que serão melhor tratados durante este Especial – 1 Ano de SAF. 

Dentre os elementos referentes ao surgimento da SAF, é importante tratar das alterações que a nova legislação trouxe à Lei Pelé - legislação específica que determina normas e diretrizes do esporte e das entidades desportivas no Brasil - em especifico, da alteração do §2º do art. 27, pelo art. 34 da Lei da SAF. 

Como se verá mais adiante, uma das formas que a Lei da SAF prevê para a criação da companhia voltada ao futebol é por meio da constituição da SAF pelo próprio clube, com a integralização do capital social desta por meio de ativos dedicados ao desenvolvimento das atividades do futebol, inclusive nome, marca, dísticos, símbolos, propriedades, patrimônio, ativos imobilizados e mobilizados da associação, ou pessoa jurídica original, para a companhia constituída – dropdown.  

Antes, dentro da premissa de associação, a Lei Pelé dispunha que os clubes de futebol não poderiam “utilizar seus bens patrimoniais, desportivos ou sociais para integralizar sua parcela de capital ou oferecê-los como garantia, salvo com a concordância da maioria absoluta da assembleia geral dos associados ou sócios e na conformidade do respectivo estatuto ou contrato social”7.  

Visando facilitar tal forma de criação da SAF e a realização do futebol como atividade comercial e lucrativa, a Lei da SAF reduziu para maioria dos presentes o quórum legal para dropdown dos ativos do futebol para a SAF e para utilização de tais ativos como garantia de negócios. A redução do quórum ajuda na medida em que os clubes, que possuem alguns milhares de associados, enfrentam uma baixa adesão, presença e participação destes associados nas deliberações, o que poderia inviabilizar tentativas de constituição das SAFs8. Agora, de acordo com a redação atual, no silêncio do estatuto ou contrato social, o dropdown de ativos e a utilização deles como garantia poderão ocorrer, desde que “mais da metade dos associados presentes na assembleia geral especialmente convocada para deliberar o tema” 9 aprove a medida.

Ainda, a Lei da SAF dispõe, expressamente, que podem ser objeto de dropdown e concessão de garantias também bens imobiliários e de propriedade intelectual do clube, o que não existia na redação anterior da Lei Pelé.

Neste contexto, no aniversário de 1 ano da Lei da SAF, a adesão dos clubes é significativa, sendo que dentre os clubes mais tradicionais com a SAF constituída, destacam-se Botafogo e Cruzeiro, que também já atraíram investimento, transferindo 90% das ações da companhia a investidores10. O Vasco da Gama, por sua vez, pretende seguir o mesmo caminho, tendo anunciado parceria com a investidora 777 Partners, para transferência de parte das ações da SAF que será constituída. O próximo passo é a convocação de seus órgãos sociais para votação da criação da SAF e venda das ações ao investidor11

Além de Botafogo e Cruzeiro, outros clubes também já tiveram suas SAFs constituídas, a exemplo de América/MG, Gama e Figueirense12. O Cuiabá, por sua vez, difere da maioria dos outros clubes, pois desde a sua constituição já era um clube-empresa, funcionando sob a forma de sociedade empresária limitada, de modo que apenas fez a transformação da sociedade para SAF13

Nesse mesmo caminho, diversos outros clubes do Brasil estudam ou estão em processo para adotar a SAF. Dentre alguns daqueles, temos: Atlético/MG, Bahia, Athletico/PR, Portuguesa, Atlético/GO, Náutico e Santo André14.  

Mas nem tudo são gols e vitórias na SAF. Se de um lado a legislação se apresenta como uma ferramenta apta a resolver um problema estrutural de gestão econômica, favorecendo o soerguimento dos clubes, de outro temos grandes desafios jurídicos em sua aplicação prática, uma vez que o instrumento traz favorecimentos não experimentados por outros setores empresariais, já que se resguarda no direito de manter algumas particularidades diante da LSA e do ordenamento jurídico brasileiro. Dentre alguns aspectos polêmicos, têm-se o tratamento pouco técnico do instituto da cisão, que em alguns momentos parece ser confundido com o dropdown pela Lei da SAF, e a exceção à regra da sucessão empresarial.

Por todo o exposto, a criação da SAF tem inequívoca função social nos clubes de futebol e na representatividade econômica deles no cenário financeiro nacional e internacional. Entretanto, como ainda está em fase incipiente, precisará ser experimentada e consolidada em um importante ramo: o poder judiciário.

Alguns aspectos focais da Lei, que serão melhor tratados ao longo deste Especial, já estão sendo objeto de discussões judiciais, o que está evidenciado, por exemplo, na SAF do Cruzeiro, já demandada em juízo por ex-funcionários, decorrentes de dívidas trabalhistas do clube anteriores à criação da SAF. Dentre essas discussões, as decisões estão divergentes, com casos de condenação do Cruzeiro SAF e outros que livraram a sociedade da cobrança direta, o que certamente evidencia a inexistência de entendimentos consolidados na jurisprudência15.  

Com o jogo ainda esquentando, é cedo para afirmar com exatidão como se dará a consolidação da nova legislação no ordenamento jurídico e como a jurisprudência irá reagir diante das inovações que a Lei da SAF pretende sob pretexto de salvar a atividade econômica do futebol.

Assim, a despeito da adesão crescente dos clubes e da euforia midiática em torno do tema, ainda estamos no primeiro tempo deste jogo decisivo, com muita bola para rolar até o apito final.

Bibliografia

1 BRASIL. Lei nº 14.193, de 6 de agosto de 2021. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2021/Lei/L14193.htm. Acesso em: 07 jul. 2022.

2  BRASIL. Lei n° 6.404, de 15 de dezembro de 1976. Dispõe sobre as Sociedades por Ações. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6404consol.htm. Acesso em: 07 jul. 2022.

3  EY. Impacto do Futebol Brasileiro. 2019. p. 49.

4  OLIVEIRA, Nelson. Novo modelo de clubes de futebol, SAF começa a se tornar realidade. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/infomaterias/2022/01/novo-modelo-de-clubes-de-futebol-saf-comeca-a-se-tornar-realidade#:~:text=%C3%89%20importante%20lembrar%20que%20a,na%20forma%20de%20sociedades%20an%C3%B4nimas. Acesso em 07 jul. 2022.

5  Justificação do Projeto de Lei da SAF. Disponível em https://www.hojeemdia.com.br/esportes/senador-rodrigo-pacheco-apresenta-projeto-para-fortalecer-poder-financeiro-dos-clubes-1.748841. Acesso em 07 jul.2022.

6  OLIVEIRA, Nelson. Novo modelo de clubes de futebol, SAF começa a se tornar realidade. Disponível em https://www12.senado.leg.br/noticias/infomaterias/2022/01/novo-modelo-de-clubes-de-futebol-saf-comeca-a-se-tornar-realidade#:~:text=%C3%89%20importante%20lembrar%20que%20a,na%20forma%20de%20sociedades%20an%C3%B4nimas. Acesso em 07 jul. 2022.

7  BRASIL. Lei nº 9.615, de 24 de março de 1998. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9615consol.htm. Acesso em: 07 jul. 2022.

8  CASTRO, R. M. et al. Comentários à Lei da Sociedade Anônima do Futebol Lei nº 14.193/2021. São Paulo: Quartier Latin do Brasil, 2021. p. 285.

9  BRASIL. Lei nº 14.193, de 6 de agosto de 2021. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2021/Lei/L14193.htm. Acesso em: 07 jul. 2022.

10  OLIVEIRA, Nelson. Novo modelo de clubes de futebol, SAF começa a se tornar realidade. Disponível em https://www12.senado.leg.br/noticias/infomaterias/2022/01/novo-modelo-de-clubes-de-futebol-saf-comeca-a-se-tornar-realidade Acesso em 18 jul. 2022. 

11  Disponível em: https://www.lance.com.br/vasco/conselho-deliberativo-do-vasco-aprova-a-inclusao-da-saf-no-estatuto-social-em-reuniao-na-sede-da-lagoa.html. Acesso em 18 jul. 2022.

12  Disponível em: https://www.ultimadivisao.com.br/times-que-viraram-saf-novo-clube-empresa/. Acesso em: 18 jul. 2022.

13  Disponível em: https://ge.globo.com/mt/futebol/times/cuiaba/noticia/clube-empresa-desde-a-fundacao-cuiaba-vira-saf-e-abre-caminho-dentre-os-times-da-serie-a.ghtml. Acesso em: 18 jul. 2022.

14  Disponível em https://www.uol.com.br/esporte/futebol/colunas/rafael-reis/2022/03/07/5-investidores-estrangeiros-que-podem-comprar-clubes-no-futebol-brasileiro.htm#:~:text=Cruzeiro%2C%20Botafogo%20e%20Vasco%20j%C3%A1,los%20em%20um%20neg%C3%B3cio%20lucrativo. Acesso em 11 jul. 2022.

15 Disponível em https://www.uol.com.br/esporte/colunas/lei-em-campo/2022/05/03/saf-decisoes-da-justica-sobre-responsabilidade-mostram-incerteza-juridica.htm. Acesso em 11 jul. 2022.