Possibilidade de integralização do capital social com criptoativos


Possibilidade de integralização do capital social com criptoativos


Por Júlia Alves, Sofia Araujo Padrão e Malu Visco Gordiano Borges*

Nos últimos anos, o mercado de criptoativos tem crescido significativamente em todo o mundo, atraindo a atenção de investidores e empresários que buscam novas formas de financiamento e investimento. Uma das discussões mais atuais é sobre a possibilidade de utilização de criptoativos para a integralização do capital social de empresas. Mas o que isso significa? 

Ao constituir uma empresa, os sócios precisam disponibilizar fundos para a abertura dos negócios e início das operações, o que chamamos de integralização do capital social. O capital social pode ser considerado como o conjunto de recursos aportados pelos sócios, em troca de participação social, com que conta a sociedade para desenvolvimento de suas atividades, a fim de garantir que ela tenha recursos suficientes para operar e crescer1

O capital inicial é formado pela contribuição de todos os sócios quando da subscrição e integralização de quotas/ações e deve ser expresso em moeda nacional, não obstante poder ser constituído com qualquer espécie de bens, corpóreos ou incorpóreos, suscetíveis de avaliação em dinheiro2, conforme preceituam o artigo 7º da Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976 (“Lei de Sociedades Anônimas”) e o artigo 997, inciso III da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (“Código Civil”).

Nesse sentido, diante da evolução da sociedade mundial e o progresso da tecnologia, com a criação de novos bens e direitos com valor econômico, a possibilidade de integralização do capital social com criptoativos se apresenta como mais uma alternativa interessante de capitalização para as empresas. Surge então a dúvida sobre a possibilidade, legalidade e viabilidade da utilização de criptomoedas3 para a constituição do capital social de uma sociedade.

O conceito de criptomoeda foi criado em 2009, com o Bitcoin, com o objetivo de atuar como um substituto para o dinheiro comum, mas sem intermediários, descentralizado e em quantidades limitadas, diminuindo, em consequência, o poder dos bancos, dos bancos centrais e dos governos.

À medida que o mercado de criptoativos expandiu, atraindo cada vez mais investidores individuais e institucionais, surgiu a necessidade crescente de regulamentação pelos órgãos governamentais e do sistema financeiro tradicional, objetivando fornecer maior segurança para aqueles que utilizam esses ativos.

Apesar de ainda não devidamente regulamentadas no Brasil, as criptomoedas estão no radar de instituições como o Banco Central do Brasil (BACEN), a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e a Receita Federal do Brasil (RFB). 

O BACEN limitou-se a explicar que as “moedas virtuais não são emitidas nem garantidas por qualquer autoridade monetária, por isso não têm garantia de conversão para moedas soberanas, e tampouco são lastreadas em ativo real de qualquer espécie, […] e nem se confundem com a definição de moeda eletrônica de que trata a Lei nº 12.865, de 9 de outubro de 2013”4

A CVM, por sua vez, informou que as criptomoedas, “a depender do contexto econômico de sua emissão e dos direitos conferidos aos investidores, podem representar valores mobiliários, nos termos do art. 2º da Lei 6.385/76”5.

Já a RFB definiu criptoativo, categoria que abrange as criptomoedas, como sendo “a representação digital de valor denominada em sua própria unidade de conta, cujo preço pode ser expresso em moeda soberana local ou estrangeira, transacionado eletronicamente com a utilização de criptografia e de tecnologias de registros distribuídos, que pode ser utilizado como forma de investimento, instrumento de transferência de valores ou acesso a serviços, e que não constitui moeda de curso legal”6.

Uma vez que as referidas entidades reconhecem as criptomoedas, efetivamente, como bens, cabe admitir, na esfera societária, a possibilidade de sua utilização para fins de integralização de capital social. No entanto, é importante ressaltar que a utilização de criptoativos na integralização do capital social ainda é um tema em discussão e que existem algumas questões que precisam ser consideradas. 

Um potencial empecilho à operação seria a exigência legal de que os bens aportados a título de integralização de capital social sejam compatíveis com o objeto social7, isso é, devem contribuir com o desenvolvimento da atividade econômica da empresa. Contudo, devido ao grau de liquidez dos criptoativos e sua utilidade, ainda que limitada, como meio de pagamento, pode-se inferir que essa questão não representaria um impedimento significativo.

Por ainda restarem dúvidas, a Junta Comercial do Estado de São Paulo formalizou uma consulta pública perante o Ministério da Economia, assim, o Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração (DREI), através do ofício circular SEI nº 4081/2020/ME, de 1º de dezembro de 2020, respondeu à consulta a respeito da possibilidade de utilização de criptomoedas como meio de pagamento de operações societárias e integralização de capital de sociedades.

O DREI, em linha com as manifestações da RFB, entendeu que as criptomoedas são “bens incorpóreos8, que, nessa condição, podem ser utilizados para integralização de capital social, não havendo vedação para tanto, devendo ser cumpridas, em relação a cada tipo societário, as formalidades exigidas pela legislação para integralização de capital com bens móveis. A deliberação também levou em conta as disposições da Lei de Liberdade Econômica9 no sentido de ter como premissa na interpretação do direito civil empresarial a preservação da autonomia privada e a livre formação das sociedades empresariais.  

Assim, no que diz respeito à operacionalização dessa integralização, considerando as sociedades limitadas e as sociedades anônimas, existem duas situações diferentes. 

Nas sociedades limitadas, a integralização com criptoativos deve ser realizada através de uma alteração no contrato social, não sendo exigível laudo de avaliação que comprove o valor atribuído pelos sócios aos bens, conforme previsto na Instrução Normativa DREI 81/202010. Nessa hipótese, a avaliação das criptomoedas fica a critério dos sócios, podendo ser baseada em qualquer parâmetro (custo de aquisição, valor de mercado em data específica etc).

No caso das sociedades anônimas, o aumento do capital social, em regra, ocorrerá por deliberação da assembleia geral extraordinária, e os bens que serão utilizados na integralização devem ser avaliados por 3 (três) peritos ou por empresa especializada, conforme dispõe o artigo 8º da Lei de Sociedades Anônimas e da Instrução Normativa DREI 81/202011. Nesse contexto, a integralização torna-se um pouco mais difícil de se operacionalizar tendo em vista que a volatilidade do mercado de criptoativos dificulta a sua precificação, portanto, a identificação de peritos competentes e de um método satisfatório de avaliação pode ser um desafio12. Uma saída possível seria pré-estabelecer a mecânica de avaliação, evitando futuras controvérsias entre os sócios. 

Vencidas as questões regulatórias, ou seja, uma vez obtidas todas as garantias legais de aceitação da criptomoeda com um efetivo bem, e validada a premissa exposta neste artigo, conclui-se que, apesar de ainda haver alguns pontos a serem esclarecidos, o posicionamento do DREI representa um avanço regulatório, especialmente no que diz respeito à perspectiva societária, pois esclarece como as autoridades de registro mercantil devem interpretar os criptoativos. 

Vale ressaltar que, além de reunir recursos financeiros para a criação e funcionamento da empresa, como exposto acima, o capital social tem, entre outras, a função de proteger os credores. Isso porque ele serve como um sinal de comprometimento dos sócios ou acionistas com a empresa. No entanto, o capital social não é uma garantia absoluta de proteção, uma vez que pode ser diluído ou reduzido ao longo do tempo. 

A volatilidade das criptomoedas poderia ser uma fragilidade para os credores, tendo em vista que a instabilidade do mercado pode representar um problema à disponibilidade de capital da sociedade, dado que os criptoativos historicamente se mostraram suscetíveis a bruscas quedas em seu valor de mercado13, o que torna difícil estimar com precisão o valor do capital social. Essa volatilidade pode criar incertezas e riscos para os credores, tendo em vista a possibilidade de perda de valor das criptomoedas.

Contudo, é possível a utilização de algumas medidas para mitigar essas incertezas, como a adoção de políticas de gerenciamento de riscos, a utilização de criptomoedas mais estáveis e a definição de critérios claros para a avaliação do valor do capital social.

Além disso, é importante ressaltar que o capital social não é a única garantia dos credores e que outros fatores, como a situação financeira geral da empresa, a qualidade do fluxo de caixa, a solvência e a liquidez, também devem ser considerados. Por isso, é fundamental que os credores avaliem não apenas o capital social, mas também o balanço e as demonstrações financeiras da empresa como um todo, a fim de verificar sua capacidade de adimplência.

Ao realizar a mencionada análise, os credores devem considerar, além dos dados contábeis, as condições do mercado em que a empresa atua, a competição, a qualidade dos produtos ou serviços, a gestão e outras variáveis relevantes para seu desempenho, sendo possível obter uma visão mais completa da situação financeira e do risco envolvido.

Portanto, é necessário que os credores e as empresas avaliem cuidadosamente as possibilidades envolvidas nesse processo, buscando sempre a orientação de especialistas no assunto, de modo a minimizar ao máximo os riscos atrelados a essas operações.

Referências:

1 EIZIRIK, Nelson. Lei das S/A Comentada. Volume I – Arts. 1º a 120. São Paulo: Quartier Latin, 2011.

2 EIZIRIK, Nelson. Lei das S/A Comentada. Volume I – Arts. 1º a 120. São Paulo: Quartier Latin, 2011. 

3 ?“Moedas privadas paralelas, sem curso forçado e com poder liberatório limitado àqueles que voluntariamente a contratam como meio de pagamento e liquidação de obrigações”. (MAIA, Felipe Fernandes Ribeiro Maia; ROCHA, Pedro Ernesto Gomes. Perspectivas jurídicas das criptomoedas: desafios regulatórios no Brasil.?In: PARENTONI, Leonardo.?Direito, Tecnologia e Inovação. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2018 

4 BANCO Central do Brasil, COMUNICADO N° 31.379, DE 16 DE NOVEMBRO DE 2017. Disponível em: https://www.bcb.gov.br/estabilidadefinanceira/exibenormativo?tipo=Comunicado&numero=31379. Acesso em: 21/02/2023

5 Nesse caso, seriam valores mobiliários por se enquadrarem nos parâmetros do artigo 2º da Lei nº 6.385/1976. COMISSÃO de Valores Mobiliários. Acesso em: 21/02/2023. 

6 Item 3, “Das Definições”, Instrução Normativa 1.888/2019 

7 Artigo 117, § 1º, “h”, da Lei de Sociedades Anônimas. 

8 O DREI usa como argumentos os artigos 997 do CC e 7º da LSA. 

9 Art. 3º, inciso V e o art. 4º, inciso VII da Lei da Liberdade da Econômica (Lei 13.874/2019). 

10 ?Item 4.3.4 do Capítulo II do Anexo IV. 

11 Item 5 do Capítulo II do Anexo V. 

12 Diversas entidades têm levantado esforços para definir um método de precificação de criptoativos. ?O diretor de pesquisa sobre alocação de ativos da T. Rowe Price Group, Stefan Hubrich, sugere que o preço de criptomoedas deve ser calculado a partir do seu valor de mercado frente ao volume em dólares das transações no blockchain, adotando para isso um período de quatro meses, ao invés dos doze meses normalmente utilizados para ações, devido à quantidade limitada de dados históricos. Nesse sentido:?https://www.lexmachinae.com/2018/05/17/criptomoedas-integralizacao-capital-social/;?https://www.valor.com.br/financas/5217243/o-que-esta-por-tras-da-precificacao-do-bitcoin. Acesso em 06/03/2023 

13 A título de exemplo, podemos analisar a variação no valor do Bitcoin, que observou elevações e quedas significativas em curtos períodos. Disponível em:?https://coinmarketcap.com/currencies/bitcoin/. Acesso em 06/03/2023.