Outorga coletiva: a escassez hídrica e o aperfeiçoamento dos instrumentos de gestão


Outorga coletiva: a escassez hídrica e o aperfeiçoamento dos instrumentos de gestão


Por Cynthia Cardoso

Tendências de escassez, de elevação da demanda, má distribuição territorial dos recursos hídricos, pouca eficiência no seu uso, disponibilidade e cenários de mudanças climáticas são alguns dos desafios que podem nos levar ao acirramento dos conflitos pelo uso das águas.

Neste sentido, além da responsabilidade pela racionalização do uso que recai sobre cada usuário, pessoas físicas ou jurídicas, permanecemos com o grande desafio institucional do poder público de amadurecer seus instrumentos de gestão e controle, de forma a ser mais eficiente para garantir o acesso, quantitativo e qualitativo, à água.

Embora sejamos fruto de uma sociedade claramente submetida às limitações do enfoque público nos mecanismos de comando e controle, esses instrumentos podem evoluir de forma a tentar modular o equilíbrio entre a inconsistência de planejamento, o crescente aumento da demanda e a realidade cada vez mais próxima da escassez.

Na perspectiva da gestão das águas, temos a outorga de direito de uso de recursos hídricos como principal instrumento. A outorga será emitida pela Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) para rios, reservatórios, lagos e lagoas sob o domínio da União e pelos órgãos gestores de recursos hídricos dos estados, nos casos de rios estaduais e águas subterrâneas.

Dentre as atribuições da ANA, se encontra a de declarar situação crítica de escassez quantitativa ou qualitativa de recursos hídricos nos corpos hídricos que impacte o atendimento aos usos múltiplos localizados em rios de domínio da União, por prazo determinado¹. Logo, a partir de estudos e dados de monitoramento que demonstrem a situação crítica de escassez, a ANA deverá emitir ato que discipline de forma diferenciada a utilização dos recursos hídricos em determinado território, a fim de garantir o atendimento aos diversos usos da água sob sua gestão e controle.

No âmbito estadual, Minas Gerais é referência em política pública de declaração de escassez hídrica, valendo-se dessa restrição há aproximadamente vinte anos. Atualmente, as diretrizes e critérios para a definição da situação crítica de escassez hídrica e as restrições de uso das águas superficiais se encontram estabelecidas pela Deliberação Normativa do Conselho Estadual de Recursos Hídricos n° 49/2015².

Por meio da mencionada norma o poder público escalonou a criticidade da situação de escassez e indicou três momentos: (i) o estado de atenção, quando não haverá restrição de uso para captações, mas o usuário deve ficar atento para eventuais alterações do estado de vazões dos recursos hídricos; (ii) o estado de alerta, em que o estado de vazão ou o estado de armazenamento dos reservatórios indicam a adoção de ações de alerta para restrição de uso para captações de águas superficiais e atenção a eventuais alterações do respectivo estado de vazões e (iii) o estado de restrição de uso, quando há escassez hídrica caracterizada pelo período de tempo em que o estado de vazão ou o estado de armazenamento dos reservatórios indicarem restrições do uso da água.

Caracterizado este último estágio, poderão ser adotadas condições especiais de uso para as diferentes finalidades, incluindo a redução do volume diário de captação, bem como de operação para reservatórios e outras estruturas hidráulicas no corpo hídrico. Também podem ser suspensas as emissões de novas outorgas de direito de uso consuntivo de recursos hídricos.

O Conselho Nacional de Recursos Hídricos (CNRH)³ considera como usos consuntivos, ou seja, aqueles que retiram água do manancial para determinado uso, o abastecimento humano e animal, a indústria, a mineração, a irrigação e a termoeletricidade.

Segundo dados nacionais da ANA[4], de 2020/2021, os usos consuntivos setoriais seriam responsáveis pelos seguintes percentuais aproximados de demanda no país: (i) irrigação, 50%; (ii) abastecimento urbano, 25%; (iii) indústria, 9%; (iv) uso animal, 8%; (v) termoelétricas, 5%; (vi) abastecimento rural, 2% e (vii), mineração 1%.

Voltando à gestão da escassez hídrica em Minas Gerais, uma vez constatado pelo poder público que, em dada porção territorial, a demanda de uso dos recursos hídricos superficiais é superior à sua disponibilidade, há Declaração de Área de Conflito (DAC).

Como consequência da decretação da DAC[5], os usuários dos recursos hídricos serão convocados pelo respectivo Comitê de Bacia Hidrográfica (CBH) para elaborar uma proposta de alocação negociada de recursos hídricos, que comporá um processo único de solicitação de outorga coletiva de direito de uso de recursos hídricos. Este processo coletivo contemplará os usuários que já detinham outorga assim como os interessados em obtê-la.

Logo, uma vez declarada área de conflito, o caminho para a regularização do uso dos recursos hídricos superficiais é o da outorga coletiva, que culminará em uma única portaria de outorga, que regularizará vários usuários por meio de um único processo.

Inicialmente, os interessados devem se organizar por meio da instituição de uma Comissão Gestora Local (CGL)[6], composta por todos os usuários impactados pela DAC. Por meio da CGL será dado andamento à gestão coletiva do uso dos recursos hídricos, de forma participativa, no intuito de mitigar os riscos de instalação de conflito e delegar aos próprios usuários a árdua tarefa da autocomposição.

Caso haja sucesso na autocomposição, os usuários chegarão a um acordo, dentre outros aspectos, sobre a forma de gerenciamento dos limitados recursos hídricos, pelo compartilhamento das vazões disponíveis, ações de racionalização de uso e diminuição de captação, quando necessário.

Frustrado o consenso, o respectivo Comitê de Bacia Hidrográfica aprovará uma proposta de alocação, a ser decidida pelo órgão gestor de recursos hídricos, no caso, o Instituto Mineiro de Gestão das Águas (IGAM).

Embora a outorga coletiva seja um avanço do basilar instrumento de comando e controle, a outorga de direito de uso de recursos hídricos, é certo que a regularização do uso da água em locais de escassez hídrica é um grande desafio, que enfrenta a necessidade de cooperação, transparência, mediação e avanços regulatórios diante de sua complexidade. Assim, fiquemos atentos aos desdobramentos de iniciativas normativas como o Projeto de Lei n° 754/2015[7], em trâmite perante a Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais, que visa regulamentar a outorga coletiva do direito de uso de recursos hídricos no Estado.

¹ Lei n° 9.984/2000, art. 4°, inc. XXIII.
³ Resolução do CNRH n° 232, de 22 de março de 2022.
5 Decreto Estadual n° 47.705/2019.
6 Portaria do Instituto Mineiro de Gestão das Águas n° 26/2020.