O reconhecimento de parentesco socioafetivo e seus efeitos no planejamento patrimonial e sucessório


O reconhecimento de parentesco socioafetivo e seus efeitos no planejamento patrimonial e sucessório


Por Stephanie Kim e Victoria Covre Fernandez

Historicamente, o conceito jurídico de família sofreu alterações significativas que acompanharam a evolução da sociedade. Nesse sentido, atualmente, a Constituição Federal de 1988 (“CFRB”) admite diversas formas de constituição de família e filiação. A Carta Magna dispôs que a entidade familiar é formada por qualquer dos pais e seus descendentes (CFRB, art. 226, §4º) e, por sua vez, o artigo 1.593 do Código Civil de 2002 estabeleceu: “O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem”. A jurisprudência brasileira entende que, dentre as demais origens de parentesco compreendidas na expressão “outra origem”, encontra-se o afeto.

Nessa linha de raciocínio, é possível afirmar que o afeto presente nas relações interpessoais possui força para consubstanciar parentesco civil, consolidando o disposto no Enunciado 103 da I Jornada de Direito Civil.1 Logo, enquanto o instituto da adoção constitui procedimento legal formal, fixando um novo vínculo parental com base em intervenção judicial, a paternidade socioafetiva se baseia em laços afetivos e familiares, podendo ocorrer sem formalidades legais.

O Provimento nº 63 de 14 de novembro de 2017, emitido pelo Conselho Nacional de Justiça, dispõe sobre o reconhecimento voluntário e a averbação da paternidade e maternidade socioafetiva. O referido dispositivo estabeleceu, entre os requisitos necessários para o reconhecimento da paternidade ou maternidade socioafetiva, a comprovação da afetividade mediante documentos, tais como apontamento escolar como responsável ou representante do aluno, inscrição da criança no plano de saúde ou em órgão de previdência, registro oficial de que residem na mesma unidade domiciliar, vínculo conjugal com o ascendente biológico, fotografias de celebrações relevantes e declarações de testemunhas com firma reconhecida. Logo, o requerente que observar os requisitos legais e puder comprovar os laços afetivos conforme acima poderá ter a filiação ou parentesco legalmente concedido.

Assim, atualmente, o reconhecimento voluntário da paternidade socioafetiva passou a ser autorizado, em cartório, perante oficiais de registro civil das pessoas naturais, sendo irrevogável, e apenas podendo ser desconstituído através da via judicial em casos de vício de vontade, fraude ou simulação. Contudo, apesar de ser aceito pelo ordenamento jurídico, o tema ainda é controverso, suscitando questionamentos, principalmente em relação aos direitos dos filhos biológicos e socioafetivos.

Partindo do pressuposto que o planejamento patrimonial constitui um conjunto de práticas com o objetivo de zelar pelo patrimônio de uma pessoa ou família, a fim de garantir a proteção, crescimento e transferência adequada desses bens para seus herdeiros ou beneficiários, é imperativo considerar a existência, ou não, de filhos. O presente artigo analisa os desdobramentos da paternidade socioafetiva, oferecendo definições detalhadas e explorando implicações específicas, especialmente no tocante ao aspecto econômico do ponto de vista do planejamento patrimonial e sucessório.

Durante a elaboração de um mapa sucessório, é preciso analisar a existência de descendentes do indivíduo e considerar que a CRFB veda quaisquer discriminações relativas à filiação. A identificação dos efeitos jurídicos próprios do reconhecimento da parentalidade socioafetiva e da possibilidade de não se atribuir eficácia patrimonial a esse vínculo vem ganhando força. Ocorre que, uma vez reconhecida a parentalidade fundada em qualquer vínculo, não seria possível deixar de atribuir determinados efeitos, inclusive o de cunho patrimonial, sob pena de ofensa ao princípio da igualdade. Nesse sentido, o reconhecimento do parentesco socioafetivo afeta diretamente o planejamento patrimonial e sucessório, na medida em que produz os mesmos efeitos do parentesco biológico, tanto sociais, quanto patrimoniais, não havendo distinção entre filhos biológicos e filhos socioafetivos.

O papel da jurisprudência na validação da paternidade socioafetiva é evidenciado em decisões marcantes, como a do Supremo Tribunal Federal (“STF”), que, em diversos casos, reconheceu a paternidade socioafetiva como um instituto jurídico válido. O julgamento do Recurso Extraordinário 898.060/MG em 2016 é emblemático nesse sentido. Nele, o STF decidiu que a paternidade socioafetiva não poderia ser desconsiderada em detrimento da biológica, destacando a importância dos laços afetivos na formação da identidade familiar: "A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios".

No caso em apreço, como já ressaltado, o autor não requereu o reconhecimento concomitante do vínculo biológico, mas tão somente o reconhecimento como herdeiro para participar da sucessão causa mortis de sua falecida mãe biológica. Na hipótese, o vínculo do autor com sua mãe biológica já era conhecido e restou extinto pela adoção, não havendo qualquer intenção por parte deste de restabelecer a relação biológica como forma de preservar uma verdadeira parentalidade existente, mas tão somente com mero interesse patrimonial. Inclusive, o autor/apelante descreve em seu recurso que não estabeleceu qualquer vínculo socioafetivo com sua mãe biológica, requerendo o reconhecimento do seu direito à herança como forma de compensar uma suposta “punição que a vida impôs ao indivíduo que não escolheu ser preterido, por razões muitas, de ter o seu convívio com a sua mãe biológica”.2

Da mesma forma, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (“TJMG”), em julgamento celebrado em 09/11/2017, se posicionou sobre o tema, em demanda investigatória de paternidade em que

também se pretendia a reserva de quinhão hereditário. Os julgadores ponderaram que somente é possível o ajuizamento desta ação para que se conheça a real ascendência, em atendimento ao princípio da dignidade da pessoa humana, sendo imprescindível a demonstração de interesse moral, e não apenas econômico. Acentua, por fim, que a investigação de paternidade proposta não pode alcançar efeitos patrimoniais.3

Por outro lado, a valorização da afetividade pregressa, mesmo após o rompimento do vínculo, tem sido um critério orientador na jurisprudência, evidenciado em casos como o REsp 1704972/CE. Trata-se de demanda declaratória de paternidade socioafetiva proposta em desfavor de um espólio, na qual o autor alega ter sido criado pelo falecido desde os primeiros dias de vida, tendo sido, inclusive, registrado como seu filho, mesmo sendo notória a ausência de vínculo biológico entre as partes. A parte recorrente, em suas razões, argumentou que o autor, naquela oportunidade recorrido, respondia a ação penal na condição de coautor do homicídio do pai socioafetivo e, por esse motivo, não seria possível o reconhecimento da parentalidade. Pondera, ainda, “que os sentimentos de filiação deixaram de existir, pois o falecido, nos últimos meses de vida, demonstrava medo em relação ao filho socioafetivo”.

Em contrapartida, um fundamento recorrente que surge nas decisões que atribuem efeitos patrimoniais ao reconhecimento da parentalidade socioafetiva é o de que não cabe ao Poder Judiciário fazer ilações de ordem moral sobre as razões do pedido do filho, i.e., se realmente são de cunho unicamente financeiro ou não. Logo, pela análise das jurisprudências supramencionadas, o debate sobre as razões que levam ao pedido de reconhecimento de parentesco socioafetivo, ainda se encontra em fase de solidificação, vez que a definição do termo “socioafetivo” meramente dito é considerado extremamente subjetivo, dificultando na imposição de limitações e regramentos que a adoção, por exemplo, já possui no nosso ordenamento jurídico.

Em conclusão, observa-se que o instituto que permite o reconhecimento da filiação com base no afeto, apesar de ampliar a compreensão das relações familiares, ainda suscita opiniões divergentes. Embora não esteja plenamente estabelecido, o reconhecimento da filiação pelo afeto é de grande relevância e atinge diretamente o planejamento patrimonial e sucessório. Portanto, recomenda-se que os envolvidos na gestão do patrimônio familiar estejam seguros e conscientes da filiação afetiva, já sob o pressuposto de que a futura sucessão resultará na inclusão obrigatória desta filiação.