Por Leandra Guimarães e Luciana Tolentino
Parece engraçado, talvez um novo romance, mas é pura construção jurisprudencial.
Com base no antigo artigo 22 da Lei nº 9.249/95, existe permissão legal para que a entrega de bens e direitos do ativo da pessoa jurídica a título de devolução de capital se faça pelo valor contábil ou de mercado, à critério do contribuinte, sem que tenha sido estabelecido qualquer requisito para escolha do critério de avaliação a ser adotado.
Como decorrência desta autorização legal, na transferência por valor contábil não há tributação imediata, nem para pessoa jurídica que tem o capital reduzido, nem para sócio que recebe o bem. Por outro lado, ocorrerá tributação somente e se quando da eventual alienação do ativo pelo quotista/acionista que houver recebido o bem, a venda ocorrer por valor superior àquele por qual o recebeu, apurando ganho de capital tributável segundo alíquotas progressiva de 15% a 22,5%, conforme valor do ganho de capital.
Sendo assim, nada obstaria que, uma vez que uma sociedade apresente capital social excessivo em relação ao seu objeto social, parte de seus bens sejam entregues aos sócios, em devolução de parte do capital social. Também não haveria impedimento para que, posteriormente, o sócio que tenha recebido os bens os aliene por valor superior.
O plano de fundo dessa discussão é o seguinte: se uma pessoa física que anteriormente recebeu bens avaliados pelo critério contábil em devolução de capital social e em seguida os aliena, teria praticado elisão fiscal ou evasão fiscal? O argumento que defende que seria evasão fiscal subsiste no fato de que o contribuinte teria simulado a redução de capital e a celebração da venda apenas para alcançar uma tributação mais favorecida, que o real alienante seria, de fato, a pessoa jurídica e, neste caso, a tributação ganharia patamares superiores.
Existem precedentes de autuações nas quais as autoridades fiscais alegam que o fato, a alienação pela pessoa física, foi simulado, ilegítimo, carente de causa própria e extra tributária de natureza empresarial, econômica ou social. Alegam ainda que o único intuito das “engenharias societárias engendradas”, de validade apenas formal, teria sido o desvio artificial da forma de tributação do ganho de capital que seria menor na pessoa física. Ou seja, o entendimento da Receita Federal do Brasil é de que se trata de um planejamento tributário sem propósito negocial além da economia de tributos.
Por outro lado, diversos Acórdãos1 de instâncias inferiores do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (“CARF”) já manifestaram o entendimento de que nessas circunstâncias seria possível a venda pela pessoa física e que isto não caracterizaria simulação, pois, o fato dos sócios ou acionistas terem planejado a redução do capital social visando a subsequente alienação do ativo a terceiros, tendo tributado o ganho de capital na pessoa física, não teria o condão de caracterizar a operação de redução de capital como simulação. Há casos2 em que a simulação foi descaracterizada já que o sócio dissidente efetivamente se retirou da atividade e o sócio remanescente continuou mantendo a empresa operando na atividade. Em algumas decisões frisa-se também que enquanto não houver lei ordinária que regulamente o parágrafo único do art. 116 do CTN, não pode o fisco alegar abuso de direito de auto-organização.
Em sessão ocorrida em 07 de novembro de 2018, a 1ª Turma da Câmara Superior do CARF se deparou pela primeira vez com um processo envolvendo a alienação de bens por pessoa física em operações tal como as comentadas neste artigo3. A empresa entregou ativos a seus sócios em devolução de capital para que estes, por sua vez, fizessem a venda do bem recebido – fato que levou a as autoridades fiscais a cobrar o IRPJ e a CSLL sobre as transações como se o real alienante houvesse sido na pessoa jurídica.
Nesta decisão, a posição da Câmara foi de que face à ausência de divergência jurisprudencial, tal recurso não deveria ser conhecido, sendo mantida a decisão de 1ª instância do CARF, que fora favorável ao contribuinte. No mesmo sentido foi o Acórdão nº 9101004.163, em sessão da Câmara em 07 de maio de 2019.
Entretanto, algo diferente suscitou uma nova abordagem na Câmara e, apesar da jurisprudência administrativa até então favorável ao contribuinte, ao final de 2019, através do Acórdão nº 9101-004.506, um novo jargão foi construído para refutar validade da operação: “separa-sem-separar”!
O argumento utilizado pelos julgadores foi que houve desvirtuamento da legislação atual acerca da redução de capital a valor contábil, quando as operações societárias visam exclusivamente se esquivar integral ou parcialmente do ganho de capital, concretizando-se o que foi chamado de “separa-sem-separar”, uma nova versão da antiga operação apelidada de “casa-separa”.
A ementa da decisão estipula que o ativo objeto de alienação da pessoa jurídica é transferido para o sócio retirante (ou seja, há uma separação entre o ativo e a pessoa jurídica), por meio de uma devolução de capital social artificial, sem se demonstrar a efetiva ocorrência de situação de perdas irreparáveis ou capital excessivo em relação ao objetivo da sociedade empresária. Ainda segundo o recente acórdão, na realidade, o ativo nunca se “separou” da pessoa jurídica, tendo sido transferido artificialmente para que pudesse ser alienado por um sujeito passivo com tributação mais favorável. Daí o nome da operação de “separa sem separar”; o bem nunca se separou da pessoa jurídica, porque a transação para a alienação do bem a terceiro se deu, efetivamente, entre a pessoa jurídica que originariamente detinha o ativo e o adquirente, e não entre o sócio retirante e o adquirente.
Ora, a existência de propósitos e motivações outras que não a exclusiva economia tributária na realização das operações societárias é um tema já muito debatido pela doutrina e pelo CARF.
No contexto das discussões sobre temas tributários, a jurisprudência tributária brasileira evidencia uma forte preocupação quanto à substância dos negócios jurídicos, sua finalidade para além da economia tributária, surgindo uma teoria da necessidade de propósito negocial.
O racional adotado para definição de propósito negocial, é a existência de uma motivação econômica que justifique a realização da operação distinta da vantagem tributária.
O ponto crítico a ser destacado é que a legislação tributária nacional não prevê o propósito negocial como requisito para que uma transação ou negócio seja considerado lícito, sendo que a conhecida norma antielisiva tributária, prevista no parágrafo único do art. 116 do CTN, apenas dispõe que a autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária.
O que se pode extrair da norma antielisiva é que a finalidade do negócio jurídico não pode ser de ocultar ou disfarçar o fato gerador. Porém, não é mencionado que a operação deve possuir um propósito extrafiscal.
De toda forma, esta foi, sem dúvida, uma das razões desta decisão desalinhada em relação aos precedentes anteriores envolvendo o tema da redução de capital seguida de alienação de bens pela pessoa física, mas certamente não foi a única.
Visitando o caso concreto, alguns aspectos foram destacados que diferenciam a operação em questão de uma regular redução de capital para devolução de capital social excessivo aos sócios com posterior alienação de bens pelo sócio que os recebeu.
Segundo o contrato de compra e venda tratou-se, de fato, de operação envolvendo a alienação de “negócios” abrangendo os direitos de exploração e carteira de clientes, aliás, o próprio contrato descreveu toda “reestruturação societária” que seria levada à cabo para segregação do “negócio” a ser alienado na forma de uma nova sociedade constituída para ser o “veículo” da alienação do negócio. A nova sociedade não teve nenhuma operação antes de ser alienada por milhões.
Foi com base neste contexto que as autoridades fiscalizadoras e julgadoras, consideraram que a operação realizada fora, de fato, a alienação de um “negócio” pela pessoa jurídica que o detinha, aqui chamada real alienante. Assim, concluíram que a “engendrada” estruturação societária que resultou na redução de capital teve o propósito exclusivamente tributário de mover a tributação para o patamar da pessoa física do sócio da pessoa jurídica real alienante. Novamente, o bem alienado nunca se “separou” da pessoa jurídica de fato; separou sem separar. E assim nasceu este novo jargão.
Aliás, esta mesma construção pode causar efeitos adversos para o adquirente do negócio na forma de participação societária com ágio, mas estas são cenas de um próximo capítulo.
De toda forma, o tema da exigência de comprovação de propósito negocial ainda não é pacificado, embora se apresente como tendência nos tribunais. Inclusive este assunto ganhou novos contornos no último ano, com a publicação da Lei nº 13.874/2019 que instituiu a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, estabelecendo normas de proteção à livre iniciativa e ao livre exercício de atividade econômica e, na parte cuja aplicação não foi excepcionada ao direito tributário - sem adentrar na controvérsia que envolve esta pretensão - dentre outros, alterou a redação do art. 421 do Código Civil, que passou a prescrever que “a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato, observado o disposto na Declaração de Direitos de Liberdade Econômica”. E não é só. Foi introduzido ainda um parágrafo único nesse mesmo dispositivo, dispondo expressamente que: “nas relações contratuais privadas, prevalecerá o princípio da intervenção mínima do Estado, por qualquer dos seus poderes, e a revisão contratual determinada de forma externa às partes será excepcional”.
Neste ponto, há os que cogitam que diante da nova redação do referido art. 421 do Código Civil, operou-se uma inversão do ônus da prova de defeito no negócio jurídico do particular, inclusive para fins tributários, na contramão da jurisprudência do CARF.
Nos resta aguardar como será o desdobramento das próximas decisões do CARF acerca do tema, bem como se haverá alteração da jurisprudência que enfatiza a necessidade de propósito específico face à Lei da Liberdade Econômica.
1 Acórdãos nºs 1201-001.920, 1201-002.149, 1302-003.229, 1201-001.920, 1201-001.809
2 Acórdão nº 1201-002.149
3 Acórdão nº 9101-003.880