Muito tem se falado sobre a criação de Sociedades Anônimas do Futebol (“SAF”) pelos clubes brasileiros. Assim como um técnico de futebol deve conhecer muito bem as diferentes peças do seu elenco quando da escalação para um jogo, aqui é preciso nos debruçarmos sobre as diferentes formas de constituição da SAF expressamente previstas na Lei nº 14.193/21 (“Lei da SAF”)2, para entrarmos em campo com a seleção mais acertada para cada caso.
A SAF pode ser criada por meio das seguintes vias: (i) pela transformação do clube ou da pessoa jurídica original em SAF; (ii) pela cisão do departamento de futebol, do clube ou pessoa jurídica original, e transferência do patrimônio relacionado à atividade do futebol para a SAF; (iii) pela iniciativa de constituir uma SAF por pessoa natural ou jurídica ou de fundo de investimento; ou (iv) pelo dropdown de ativos do clube ou pessoa jurídica original, integralizando o capital social da SAF4.
Adiante abordaremos com mais detalhes as possibilidades de constituição da SAF trazidas pela Lei da SAF, associadas, quando possível, aos casos dos times que já vem adotando esse subtipo societário. Na sequência, discutiremos algumas controvérsias relacionadas à redação da Lei da SAF em vista da estruturação das SAFs.
Especificamente em relação às vias da transformação e cisão, a previsão legal autorizativa para as SAFs parece afastar expressamente antigas discussões quanto ao cabimento e viabilidade destes meios em relação à uma associação civil.
Transformação
A transformação é um dos mecanismos que pode ser utilizado pelos clubes ou pelas pessoas jurídicas originais. Nos termos do art. 2, I, da Lei da SAF, quando constituídas por meio de transformação, tais entidades se tornariam uma sociedade anônima do futebol, o que consequentemente atrairia para seus associados ou sócios a condição de acionistas da SAF.
De acordo com o art. 220 da Lei nº 6.404/1976 (“LSA”)5, subsidiariamente aplicável à SAF, a transformação é a operação pela qual uma entidade6 passa, independentemente de dissolução e liquidação, de um tipo societário para outro. Dessa forma, a pessoa jurídica transformada não é extinta, o que ocorre é, única e exclusivamente, a alteração da sua natureza jurídica, sem interrupção das atividades, mantendo-se os direitos e deveres já existentes. Sendo assim, no fim do dia, uma única entidade segue existindo, a SAF.
Um exemplo de SAF, que se valeu da transformação como forma de constituição, foi o Cuiabá Esporte Clube – Sociedade Anônima do Futebol. Nesse caso, a pessoa jurídica original, uma sociedade limitada, que contava apenas com dois sócios pessoas físicas, foi transformada em SAF7.
Este caminho, porém, poderá gerar dificuldades de ordem prática, caso a associação ou sociedade objeto de transformação conte com milhares de associados ou sócios. Isso porque tais associados ou sócios se tornariam acionistas da SAF, não sendo tarefa fácil gerenciar um grupo tão vasto de acionistas. Além disso, caso houvesse, por exemplo, uma intenção de alienação de controle da SAF, seria necessário alinhavar os interesses de um número considerável de acionistas para se concretizar a operação, o que também não é tarefa fácil.
Da perspectiva tributária, via de regra uma transformação societária não implicaria em consequências tributárias, mas no caso específico de transformação de uma associação civil ou uma pessoa jurídica original numa SAF, consequência imediata, que será abordada mais adiante em nosso Especial, será a obrigatória sujeição ao Regime de Tributação Específica do Futebol (TEF) em detrimento da isenção ou tratamento diferenciado para diversos tributos.
Cisão
A SAF pode ser constituída também via cisão, operação pela qual ocorreria a transferência de parte ou da totalidade do patrimônio de determinada entidade8 para outra sociedade, existente ou constituída para tal fim, conforme indica o art. 229 da LSA, no caso, do patrimônio associado ao futebol. Como compensação pela parte do patrimônio cindido do clube ou da pessoa jurídica original para criação da SAF, as novas ações da companhia criada seriam atribuídas aos titulares da entidade cindida, a princípio, na proporção das participações originais.
Dessa forma, depreende-se que os associados do clube ou os sócios da pessoa jurídica original receberiam as novas ações da SAF em decorrência da cisão realizada e transferência do patrimônio ligado à atividade futebol. Sendo assim, no fim do dia, restariam existentes 2 entidades diferentes, sendo uma delas o clube ou a pessoa jurídica original e, a outra, a SAF.
A Lei da SAF trata especificamente da hipótese de cisão de parte do patrimônio do clube ou pessoa jurídica original – aquele relacionado à atividade futebol – e constituição da SAF com tal patrimônio cindido, nos termos do inciso II do art. 2º e outros dispositivos da referida lei. Aqui, da mesma forma que na transformação, ressalta-se que tal alternativa pode trazer dificuldades operacionais na gestão dos futuros acionistas e possível alienação de controle da SAF, a depender do número de associados ou sócios da entidade cindida.
Destaque-se que o patrimônio a ser transferido na cisão deve ser um acervo líquido positivo, ou seja, o valor dos bens e direitos deve superar o valor das obrigações. Assim, a determinação deste patrimônio a ser vertido deve ser objeto de consideração criteriosa e estratégica, levando-se em consideração a combinação dos bens, direitos e deveres, atentando-se ainda para a obrigatoriedade ou facultatividade de se transferir determinados ativos ou passivos, nos termos da Lei da SAF.
Constituição por Iniciativa de Pessoa Natural, Jurídica, ou por Fundo de Investimento
Outra hipótese de constituição de uma SAF ocorre por iniciativa de uma pessoa natural ou jurídica ou por fundo de investimento, nos termos do inciso III do art. 2º da Lei da SAF. Nesse caso, não há clube ou pessoa jurídica original anterior à criação da SAF. Seria criada uma nova entidade com objeto social relacionado ao futebol.
Sob o prisma do direito societário, há doutrinadores que entendem que esse dispositivo da Lei da SAF afasta o requisito da pluralidade de acionistas para a constituição de sociedades anônimas, presente no inciso I do art. 80 da LSA9. Tal requisito já é atenuado pelo art. 251 da própria LSA, quando trata de uma companhia subsidiária integral. Contudo, a Lei da SAF, que tem preponderância sobre a LSA para as companhias reguladas por esta, parece ir além, permitindo que o único acionista possa ser pessoa física, fundo de investimento, ou mesmo sociedade estrangeira, ao contrário da LSA, que limita a hipótese de único acionista a sociedade brasileira10.
Dropdown
Por fim, há interpretação de que a SAF também pode ser constituída por meio da integralização de capital social via transferência, por parte do clube ou da pessoa jurídica original, para a SAF de ativos relacionados ao futebol, como nome, marca, dísticos, símbolos, propriedades, patrimônio, ativos imobilizados e mobilizados, inclusive registros, licenças, direitos desportivos sobre atletas e sua repercussão econômica, nos termos do artigo 3º da Lei da SAF. Nessa hipótese de dropdown, o clube ou a pessoa jurídica original recebem ações da SAF como contrapartida, ou seja, tornam-se acionistas da companhia.
Importante que não se confunda a estrutura do dropdown com a da cisão. No dropdown, o clube, por exemplo, usa uma parcela do seu patrimônio para integralizar o capital social da SAF e ele, o clube, vira acionista da SAF. Na cisão, é segregada uma parte do patrimônio do clube para a criação da SAF, e os associados viram acionistas da SAF, e não o clube. No caso do dropdown, sob a perspectiva contábil, os ativos integralizados são substituídos pela participação societária na SAF no balanço do clube.
Destaca-se que referido instituto não está expressamente previsto no artigo 2º da Lei da SAF, o qual elenca as possibilidades expressas de constituição. Nesse sentido, é possível (i) entender que referido artigo seria taxativo em suas hipóteses, afastando a possibilidade de constituição via dropdown, sem prejuízo de sua realização após ou conjuntamente à constituição; ou (ii) interpretar que referido artigo seria exemplificativo, possibilitando a constituição da SAF por meio de tal modalidade, inclusive mediante uma leitura conjunta com o artigo 3º da Lei da SAF, que menciona expressamente a possibilidade de realização de um dropdown pelo clube ou pela pessoa jurídica original, nos parecendo ser essa a análise mais coerente com o contexto no qual a Lei da SAF foi instituída.
Sem prejuízo, o dropdown parece ser o caminho que vem sendo adotado pelos clubes pioneiros na criação da SAF. É possível observar nos atos constitutivos de algumas SAFs, que sua criação é realizada por um único acionista, o clube, que integraliza o capital social com bens e direitos, notadamente compostos pelos direitos federativos e econômicos de determinados atletas. Por outro lado, observa-se que em alguns desses documentos constitutivos há referência expressa ao dispositivo de criação da SAF via cisão do departamento de futebol, aos quais estão diretamente associados outros dispositivos legais, ainda que a constituição tenha sido realizada via dropdown.
A zona cinzenta
Se por um lado, o modelo de dropdown parece ter atraído alguns dos primeiros exploradores da SAF, inclusive em razão da titularidade das ações da SAF ser mantida inicialmente pelo clube, e não pelos associados, o que tende a facilitar a gestão dos acionistas e a eventual busca por investidores, por outro lado, temos que a lei associa determinados direitos e garantias importantes para a transição especificamente aos modelos de transformação e cisão, e, em alguns casos apenas à cisão. É o caso, por exemplo, da sucessão do clube pela SAF nas relações concernentes à atividade do futebol e em todos os campeonatos dos quais o clube participava, nas mesmas condições em que se encontravam no momento da sucessão, conforme determina o art. 2º, §1º da Lei da SAF. Ocorre que tal dispositivo da lei garante expressamente esses direitos apenas para as hipóteses de transformação e cisão do departamento de futebol, conforme previstas nos incisos I e II, do art. 2º da Lei da SAF.
Diante dessa situação, temos duas possíveis interpretações, (i) uma que limitaria as garantias de sucessão nas relações do futebol apenas para as SAFs constituídas via instrumento societário de transformação ou cisão, ainda que por um lapso do legislador, ou (ii) outra, que estenderia tais garantias concedidas pela lei também às demais formas de constituição, como o dropdown, seja (a) diante uma interpretação teleológica da Lei da SAF, que tem como um dos objetivos uma transição tranquila e sem prejuízos para as atividades futebolísticas, ou (b) diante de uma interpretação genérica do termo cisão, contido no inciso II, do art. 2º, entendendo-o como qualquer operação relativa à segregação e posterior transferência do patrimônio/departamento do futebol, o que poderia valer, por exemplo, para o dropdown. Temos que, até o momento, as entidades de administração11 do futebol parecem não ter objetado à extensão das referidas garantias aos modelos extra transformação e cisão (nos termos preceituados pela LSA, que denominaremos de “cisão no sentido estrito”).
Outra polêmica que surge diante da redação do art. 2º, §2º da Lei da SAF, expressamente relacionada à cisão do departamento de futebol (inciso II, do art. 2º), refere-se ao inciso VII do referido dispositivo, o qual determina: “a Sociedade Anônima do Futebol emitirá obrigatoriamente ações ordinárias da classe A para subscrição exclusivamente pelo clube ou pessoa jurídica original que a constituiu”. No entanto, ao determinar que o clube ou pessoa jurídica original emitam ações ordinárias de classe A no caso de cisão, a lei parece ter criado uma situação impossível, visto que na cisão no sentido estrito, os associados se tornariam acionistas da SAF, e não o clube ou pessoa jurídica original. Aqui voltamos na possibilidade de interpretação do termo cisão no sentido amplo, correspondente à segregação no geral do patrimônio/departamento do futebol, seguida da sua transferência para a SAF. Será essa a intenção do legislador? Ou estaríamos diante de um incorreto desvirtuamento do termo “cisão” nos termos previstos na LSA?
Ademais, não se descarta a possibilidade de se mesclar a modalidade de cisão (no sentido estrito) com a emissão pela SAF de ações ordinárias classe A, cujo direito de subscrição é reservado ao clube ou pessoa jurídica original. A integralização de referidas ações poderia ser realizada, inclusive, mediante dropdown de ativos.
Por fim, apesar de ainda não existirem respostas concretas para algumas das questões aqui colocadas, diante do contexto de incertezas geradas pelo texto legislativo e pelo pouco tempo decorrido desde a sua implementação, temos que as opções viáveis para constituição das SAFs devem ser estudadas com cuidado, analisando qual estratégia melhor se adequa com a estrutura e os anseios do clube ou da pessoa jurídica original, incluindo o contexto de sua situação financeira e de eventual intenção pela futura captação de investidores.
Bibliografia
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2 BRASIL. Lei nº 14.193, de 6 de agosto de 2021. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2021/Lei/L14193.htm. Acesso em: 07 jul. 2022.
3 Conforme definição da Lei da SAF, Pessoa Jurídica Original é a sociedade empresarial dedicada ao fomento e à prática do futebol.
4 A inclusão do dropdown como uma forma de constituição é uma das interpretações possíveis diante da leitura dos artigos 2º e 3º da Lei da SAF.
5 BRASIL. Lei n° 6.404, de 15 de dezembro de 1976. Dispõe sobre as Sociedades por Ações. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6404consol.htm. Acesso em: 07 jul. 2022.
6 O termo original veiculado na LSA é “sociedade”, o qual foi por nós adaptado para “entidade” tendo em vista a natureza jurídica dos clubes.
7 Conforme 10º Instrumento Particular de Alteração do Contrato Social e Transformação do Tipo Jurídico do Cuiabá Esporte Clube Ltda., registrada na Junta Comercial do Estado de Mato Grosso em 13/12/2021, sob o nº 51300018870.
8 O termo original veiculado na LSA é “companhia”, o qual foi por nós adaptado para “entidade” tendo em vista a natureza jurídica dos clubes.
9 CASTRO, R. M. et al. Comentários à Lei da Sociedade Anônima do Futebol Lei nº 14.193/2021. São Paulo: Quartier Latin do Brasil, 2021. p. 93.
10 Art. 251. A companhia pode ser constituída, mediante escritura pública, tendo como único acionista sociedade brasileira.
11 Conforme art. 1º, §1º, inciso III da Lei da SAF: entidade de administração: confederação, federação ou liga, com previsão na Lei nº 9.615, de 24 de março de 1998, que administra, dirige, regulamenta ou organiza competição profissional de futebol