Herdando gigabytes | Herança digital


Herdando gigabytes | Herança digital


Hoje em dia, chama a atenção a velocidade com que o mundo digital se desenvolve, o que foi potencializado e acelerado especialmente na pandemia da COVID-19. A tecnologia, os diversos meios de comunicação, as plataformas que modificam e aprimoram as relações humanas, tornando-as gradativamente mais digitais, desenvolvem um acervo infinito de documentos, opiniões, músicas, fotos, vídeos, áudios, contas virtuais, senhas, mensagens e até mesmo o uso de diferentes moedas virtuais, como, por exemplo, as bitcoins.

Segundo uma pesquisa realizada pela “We are social e Hootsuit” em janeiro deste ano, mais da metade da população mundial está diariamente conectada a algum tipo de plataforma virtual. Assim, temos criado avatares de uma “vida” digital que fica registrada e guardada na rede, e sobre a qual raramente ponderamos acerca de seu destino ou finalidade futura.  

E assim surge a chamada Herança Digital, que nada mais é do que o patrimônio digital, o legado deixado de um conjunto de bens publicados e armazenados nas plataformas e servidores virtuais, podendo ter ou não valor financeiro, valor simbólico ou apenas um valor subjetivo e afetivo. Um patrimônio construído e alimentado, quase que diariamente, por cada um, virtualmente, podendo ser contas na internet – como, por exemplo, facebook ou instagram, plataformas digitais que traduzem com mais clareza a vida social e que hoje são ferramentas de trabalho para diversas pessoas – contas de bancos, senhas, moedas digitais (criptomoedas), perfis empresariais, assinaturas, fotos, vídeos e troca de mensagens, enfim, literalmente uma “vida digital”. 

Imagine a situação de falecimento de um empresário que acumulou milhares de milhas aéreas devido as diversas viagens de trabalho realizadas. Tais bens, assim como pontos do cartão de crédito, poderiam ser comercializados ou utilizados? E no caso de um influencer digital? O que acontece com todos os dados divulgados, as fotos, os vídeos postados e os patrocínios que recebia por cada publicação?

Em 2004, nos Estados Unidos, ocorreu um dos primeiros casos em que a herança digital foi objeto de discussão judicial. Justin, um militar de 20 anos de idade, que estava há algum tempo no Iraque, utilizava a plataforma digital Yahoo! para se comunicar com a família e amigos e já havia relatado ao seu pai que, caso algo ocorresse, gostaria que fizesse um álbum de recordações com as mensagens trocadas durante o tempo que estava fora do país. Justin veio a falecer no Iraque e logo em seguida seu pai entrou com um pedido de acesso à conta do filho, alegando que era seu herdeiro quanto a este bem pessoal. Apesar de o Yahoo! ter negado o pedido do pai, ele foi à corte de Michigan, que, posteriormente, autorizou que ele tivesse o acesso aos dados da conta do filho. Havia um vínculo pessoal e afetivo de Justin com as informações acumuladas nesta plataforma digital em específico e era de seu desejo que este laço fosse compartilhado com a família após seu falecimento. Deste modo, se Justin tivesse deixado testamento declarando que aqueles dados digitais, ou mesmo a conta do Yahoo!, constituíssem sua herança e destinando-a a seu pai, todo este percurso teria sido muito menos complicado e custoso.

Hoje, algumas redes sociais, como é o caso o Twitter, o Instagram, o Facebook, e a Conta Google, já existem ferramentas que permitem o gerenciamento das contas após a morte do usuário. Estes meios possibilitam o acesso pelos familiares, a exclusão ou inativação da conta e até mesmo a criação de um “memorial” online com todos os conteúdos divulgados e registrados nestas plataformas.

Quando falamos em herança, nos vem à cabeça nosso patrimônio físico, palpável, bens e direitos de valor econômico. No entanto, em um mundo cada vez mais virtual, nossa herança passa a englobar também bens digitais, que estão acumulados e guardados nas redes virtuais, não palpáveis, podendo ter ou não valor econômico. Apesar de suas diferenças, tanto a herança digital quanto a herança “convencional” podem ser transmitidas de formas semelhantes.

A sucessão é a transmissão da herança, que pode ocorrer por força da lei e por manifestação de vontade, na forma de um testamento. Segundo o Código Civil de 2002, em seu artigo 1.857, §2, permite-se que o testamento tenha um conteúdo extrapatrimonial, ou seja, não é delimitado apenas à inclusão de bens tangíveis neste documento. Desta forma, apesar de não haver uma legislação específica sobre a herança digital, é possível manifestar sua vontade em relação à transmissão de seus bens e direitos digitais, por meio da elaboração de um testamento, ou com criação de um planejamento sucessório que direcionará o gerenciamento do seu patrimônio digital.

As discussões sobre a herança digital ganham força e se tornam cada vez mais comuns com o passar dos anos e o crescente uso das plataformas. O ordenamento jurídico brasileiro vem se posicionando de maneira oscilante, na medida em que aparecem novos casos sobre este tema no Brasil, pois ainda não há jurisprudência pacificada para definir quais ativos digitais são transmissíveis para herdeiros, enquanto nós continuamos na construção da nossa história virtual. Em virtude da novidade do tema e ainda certa insegurança, torna-se ainda mais relevante dispor sobre suas manifestações individuais de vontade relacionadas a esse patrimônio.

O judiciário, que há algum tempo começou a receber os primeiros pedidos relacionados a herança digital, profere diferentes decisões, que se tornarão precedentes dos novos processos que virão. Em um caso ocorrido em Pompeu (MG) no ano de 2012, a mãe de uma menina falecida requereu ao Poder Judiciário o acesso aos dados da filha em uma conta virtual: o magistrado negou o pedido considerando o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas (processo nº 002337592.2017.8.13.0520). Já em 2013, no Estado do Mato Grosso do Sul, houve uma decisão em sentido contrário, uma vez que a 1° Vara do Juizado Especial aceitou o pedido de uma mãe que desejava excluir as redes sociais de sua falecida filha (processo nº 0001007-27.2013.8.12.0110). 

Assim, com a realidade em que vivemos e o crescente uso da tecnologia, as lembranças passam a ser cada vez mais intangíveis, registradas e acessadas rapidamente com um simples clique, assim como também podem se perder digitalmente no tempo e na memória. Não se adaptar ao novo é inviável. Acompanhar os desenvolvimentos e evoluções atuais, mudar e se adaptar ao presente é imprescindível. E então, já pensou no destino da sua vida digital?

Bibliografia:

LMEIDA, Juliana Evangelista de. A TUTELA JURÍDICA DOS BENS DIGITAIS APÓS A MORTE: Análise da possibilidade de reconhecimento da herança digital.

IEGAS, Cláudia de Almeida Mara. A DESTINAÇÃO DE BENS DIGITAIS POST MORTEN. Disponível em: https://claudiamaraviegas.jusbrasil.com.br/artigos/700728316/a-destinacao-dos-bens-digitais-post-mortem

MARTINS, Renata Maria Gomes. HERANÇA DIGITAL EM CASO DE MORTE, O QUE ACONTECIA COM NOSSO PATRIMÔNIO DIGITAL? Migalhas, 2019 , Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/298119/heranca-digital-em-caso-de-morte--o-acontecera-com-o-nosso-patrimonio-digital

RICARTE, F.R; MANZEPPI, E.M. AINDA SEM LEGISLAÇÃO ESPECÍFICA, HERANÇA DIGITAL REQUER ATENÇÃO, Consultor Jurídico, 2020, Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-fev-17/opiniao-legislacao-especifica-heranca-digital-requer-atencao#:~:text=N%C3%A3o%20obstante%2C%20o%20PL%204.099,ser%C3%A1%20transmitida%20aos%20herdeiros%20leg%C3%ADtimos

VALOR ECONÔMICO: JUSTIÇA RECEBE OS PRIMEIROS CASOS SOBRE HERANÇA DIGITAL, Colégio Notarial do Brasil, 2018, Disponível em: https://www.cnbsp.org.br/?url_amigavel=1&url_source=noticias&id_noticia=16822&lj=1280

DIGITAL 2021: THE LATEST INSIGHTS INTO THE “STATE OF DIGITAL”, We are social, 2021, Disponível em: https://wearesocial.com/blog/2021/01/digital-2021-the-latest-insights-into-the-state-of-digital