Por Lucielly Matos Oliveira, Jaíne Rodrigues de Matos e Victoria Rocco Melo
A sociedade torna-se cada vez mais digitalizada e, com isso, as discussões sobre a destinação das contas mantidas pelos usuários em plataformas digitais pós falecimento ganham especial relevância diante do inegável aspecto econômico que os perfis podem ter.
Trata-se de um recorte dentro do tema “herança digital”, posto que o acervo resultante das nossas interações na rede mundial de computadores não se limita aos perfis mantidos nas redes ou canais sociais, mas pode envolver, por exemplo, conteúdo criado e armazenado na internet (mídias, músicas, livros etc.), milhas aéreas, pontos de cartão de crédito, criptomoedas, dentre outros. Aliás, no atual ordenamento jurídico brasileiro sequer existe a conceituação de herança digital, embora este tema tenha sido objeto de projeto de lei há mais de uma década¹.
O falecimento de pessoas famosas geralmente potencializa o debate sobre este assunto. Após a morte precoce da cantora do segmento sertanejo, Marília Mendonça, em novembro de 2021, por exemplo, circularam notícias de uma suposta disputa judicial sobre a administração das contas digitais da artista² que ainda tem mais de 41 milhões de seguidores no Instagram³ e 26 milhões de inscritos no canal do Youtube 4.
Não obstante isso, o tema faz parte do nosso cotidiano. Nos Tribunais do país já existem casos em que a família ou terceiro buscam tutela judicial para manutenção ou administração de perfis de usuários falecidos por inúmeras razões que vão desde a preservação de memórias até divulgação de homenagens, de ações e de produtos. Em algumas situações, o pedido é de exclusão do perfil do usuário falecido ante o confronto com interesses de pessoas vivas. E, além destes, muitos litígios versam sobre contas vinculadas às pessoas jurídicas.
E as questões não se restringem ao dilema se os perfis em redes sociais seriam bens transmissíveis ou não por ocasião da morte dos respectivos usuários, mas abrangem aspectos dos direitos de personalidade de terceiros e do próprio falecido, bem como a própria avaliação do conteúdo econômico atrelado a um determinado perfil.
Do ponto de vista legislativo, o Código Civil de 2002, principal lei que rege as relações privadas e a sucessão, não regulamenta especificamente a transmissão de bens e deveres relacionados aos conteúdos digitais. Tampouco o Marco Civil da Internet (Lei n.º 12.965/14) e a Lei Geral de Proteção de Dados (Lei n.º 13.709/18) dispõem de modo específico sobre o uso e destinação de dados de pessoas falecidas.
Paralelamente a essa omissão legislativa, algumas plataformas tentam resguardar suas condutas mediante estipulações em suas políticas e termos de uso. Assim, tem sido comum a disponibilização de duas opções aos usuários em caso de óbito: (i) escolher previamente pela exclusão da conta ou (ii) requerer a manutenção do perfil, com a indicação ou não de um contato herdeiro nesse último caso, oportunidade em que a conta será transformada em memorial.
Já existem empresas, inclusive, que oferecem a prestação de serviço de auxílio de gestão das contas virtuais para os usuários que desejam estabelecer previamente, quem poderá acessá-las e administrá-las em caso de seu falecimento. Ou seja, no âmbito da própria internet estão disponíveis mecanismos para auxiliar os usuários na transmissão de contas virtuais, ao passo que a legislação caminha de forma lenta para regular essa realidade – que já não é tão nova.
Acreditamos que o que tende a acontecer nesses casos é o conflito entre a manifestação eventualmente solicitada junto a plataforma e a formalizada em vias usuais de transmissão de bens e direitos por morte (por exemplo, os testamentos). Outro problema que pode ocorrer, ante a dificuldade de valoração econômica do próprio perfil, é a aferição do somatório da herança para fins de estipulação da repartição entre os herdeiros, ante a existência da chamada legítima.
Percebam que há vários pontos de reflexão sobre os perfis de redes sociais dentro da chamada herança digital. E embora no Brasil, como dito, ainda não exista legislação específica que regule de forma abrangente a herança digital, alguns princípios atinentes à autonomia privada, à autodeterminação, à dignidade da pessoa humana, à livre iniciativa, bem como normas gerais de direito sucessório podem ser usados para solução de conflitos.
Certamente, a gestão adequada da herança digital torna-se crucial, em especial para quem explora economicamente perfis em redes sociais.
Neste contexto, o planejamento sucessório é essencial para tentar evitar litígios e garantir a realização dos desejos do titular. Nele pode incluir, dentre outros mecanismos, a elaboração de testamentos digitais e a designação de um executor específico para lidar com questões relacionadas à herança digital.
Em síntese, a herança digital e a monetização dos perfis mantidos em redes sociais representam desafios jurídicos significativos, exigindo uma abordagem individualizada a partir de uma legislação formalizada e clara a respeito da matéria e das regulamentações propostas pelas próprias plataformas digitais aos seus usuários, enquanto se firma no Poder Judiciário os precedentes que também nortearão a solução dos casos concretos.
Certo é que o impacto das redes sociais é tão significativo, que já alteraram nossa forma de experenciar a vida e de lidar com a morte em diversos aspectos.