Famílias Mosaico: seu enteado pode ser considerado seu herdeiro?


Famílias Mosaico: seu enteado pode ser considerado seu herdeiro?


Quem tem um(a) enteado(a) deveria se preocupar com eventuais efeitos patrimoniais e sucessórios decorrentes desta relação, bem como saber como determinados instrumentos jurídicos podem evitar conflitos entre herdeiros.

Já ouviu falar no caso do Tim Maia? Leo Maia e Carmelo Maia são filhos de Geise Gomes, antiga companheira de Tim Maia, mas apenas Carmelo é filho biológico do cantor. No entanto, Leo, na condição de enteado, ajuizou Ação de Reconhecimento de Paternidade na qual alega que foi criado por Tim desde o seu nascimento, mas nunca foi legalmente adotado. 

O processo judicial ainda está em tramite, mas certamente a decisão levará em conta todos os requisitos tratados neste artigo, como a posse de estado, convivência, afeto e até mesmo o sobrenome usado pelo Leo. A certeza que temos é que o que ficar decidido no litígio sobre a paternidade de Tim Maia, irá impactar na partilha do patrimônio do grande cantor brasileiro.

As progressivas transformações nas relações sociais têm tornado legislar sobre direito de família uma tarefa cada vez mais difícil. Acompanhando tendências sociais, a afetividade está ganhando cada vez mais destaque em detrimento dos vínculos biológicos, o que traz para o foco os efeitos práticos de relações não biológicas e não formalizadas, como as famílias mosaico. 

As chamadas “famílias mosaico” são o fruto desta reinvenção da família enquanto instituição e advêm, necessariamente, de uma família monoparental, ou seja, de uma família formada por apenas 1 dos genitores com seus descendentes, a qual passa a ser reconstituída com uma nova relação conjugal do genitor, surgindo a família mosaico1.  

Trabalhando na acepção da palavra, mosaico é um embutido de pequenas peças distintas, que formam, em conjunto, um desenho só. Assim é a família mosaico. Pessoas diferentes, sem vínculo biológico, que constituem, em conjunto, uma família, em suas mais variadas formas.

Em termos práticos, a família mosaico é aquela que acontece na união de casais formados por pelo menos uma das partes com filho de união anterior, sendo este o requisito fundamental para reconhecimento desta entidade2.  

Se existe uma expressão popular que pode definir bem as famílias mosaico, esta expressão é: os seus, os meus e os nossos. E é justamente pelos aspectos legais e patrimoniais que as dinâmicas familiares têm é que se faz necessário analisar este assunto à luz dos potenciais impactos patrimoniais e na necessidade de realização de um planejamento sucessório muito bem elaborado para o caso especifico da família.  

Diz-se isso porque, a despeito da relação entre padrasto/madrasta não gerar automaticamente expectativas patrimoniais para enteado(a), a partir do desenvolvimento de uma socioafetividade é possível que existam desdobramentos neste sentido, podendo haver discussão, inclusive, sobre a legitimidade do(a) enteado(a) como herdeiro legitimo, como já foi recentemente decidido pelo Superior Tribunal de Justiça.

A reflexão se faz ainda mais pertinente em um país como o Brasil, que bateu o recorde com o número alarmante de 80.573 divórcios registrados nos notariados no ano de 2021, além de ser o país que melhor aceita o divórcio, segundo pesquisa conduzida pela Universidade de Granada, na Espanha, em 35 países. Portanto, inegável que o país é campo fértil para a reconstituição familiar que desencadeia as famílias mosaico3

Para entender melhor este fluxo, precisamos primeiro compreender que há muito já se discute no ordenamento jurídico sobre a dualidade entre o aspecto biológico e afetivo da família, de modo que ao longo dos anos foi necessário ao direito se adaptar à ideia de que interpretar algo que trata da família pressupõe, necessariamente, um olhar mais voltado ao amor e ao afeto, os quais passam a ser elementos fundamentais neste assunto.

A socioafetividade está positivada no art. 1.593 do Código Civil brasileiro, que determina que “o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem”4. Portanto, desde 2002 já foi reconhecido pela Lei que a parentalidade não depende de fator biológico. 

Seguindo esta linha, a maior parte da doutrina entende que a paternidade, assim como a maternidade, não está ligada exclusivamente ao vínculo sanguíneo5, pois atualmente os laços biológicos ou as ‘simples’ formalizações jurídicas não estão aptos a demonstrar, sozinhos, a existência de paternidade.  

Portanto, se de um lado podemos garantir a existência de parentesco socioafetivo, de outro existe o desafio de identificar a socioafetividade em cada caso, para perceber seus efeitos jurídicos.

Em resposta a este conflito, a doutrina é pacífica no entendimento de que que a filiação socioafetiva se funda na “posse de estado” do filho6, que significa dizer que para ser uma filiação socioafetiva devem estar presentes requisitos extrínsecos perante a sociedade que envolvem a paternidade, os quais podem ser resumidos como: a utilização do sobrenome do padrasto ou madrasta; ser tratado como filho publicamente e também ser enxergado como tal, não necessariamente requisitos cumulativos. 

Entretanto, haja vista o fato desta posição atrair deveres e diversos outras consequências, há ainda um outro pressuposto considerado: a inequívoca intenção do genitor em ser visto como pai/mãe juridicamente7.

E é neste ponto que reside a reflexão levantada pelo presente artigo já que, atraída a condição de pai/mãe formalmente, o(a) enteado(a) poderá ser considerado herdeiro necessário e concorrerá em igualdade com filhos biológicos pela herança do padrasto ou madrasta. 

Daí é que se faz necessário zelo absoluto em estabelecer o parentesco socioafetivo, sob pena de prejudicar o pretenso ascendente e seus filhos biológicos. É por isso que doutrinadores como Renata Almeida Barbosa defendem que deve haver uma vontade exteriorizada de pretensão ou, no mínimo dedutível, por meio de prova idôneo, particular ou público. Caso contrário, entendem que o vínculo fica prejudicado. 

Este também tem sido o entendimento propagado na jurisprudência atual, conforme decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) de 2018, no Recurso Especial nº 1.704.972/CE8, a qual considerou que o desfrute público e contínuo do tratamento como filho, juntamente com o preenchimento dos requisitos de afeto, carinho e amor, configuram a relação socioafetiva.

Especificamente sobre a família mosaico, o STJ decidiu recentemente (2021) pela equivalência de tratamento e dos efeitos jurídicos entre as paternidades biológica e socioafetiva justamente em uma hipótese de enteada com padrasto e mesmo que a enteada também tivesse pai biológico (multiparentalidade). Neste sentido, a decisão do REsp nº 1487596/MG assegurou para a enteada todos os efeitos sucessórios e patrimoniais decorrentes da paternidade do padrasto9.  

Esta é a perspectiva que merece atenção: o impacto que uma família mosaico pode ter nos efeitos sucessórios, mais um tema que reforça a importância do planejamento sucessório e patrimonial.

Podemos assumir, pelo panorama jurídico que se opera atualmente no Brasil, principalmente a partir da decisão do STJ, que é necessário atenção dos integrantes de famílias mosaico ao manejar esta relação e expressar suas intenções, sob pena de atrair efeitos indesejados ao seu patrimônio. 

Em outras palavras, aos chamados padrastos e madrastas é aconselhável expressar de maneira indubitável suas intenções perante os descendentes de seus companheiros e sociedade. Para que sua vontade seja formalizada, os genitores poderão utilizar de instrumentos de planejamento sucessório e patrimonial, por meios públicos ou privados, como testamento, seguro de vida, doação em vida, dentre outros, seja para evitar futura discussão sobre a presença dos requisitos da socioafetividade, seja para caracterizar como reconhecido vínculo de parentesco que coloque os potenciais filhos socioafetivos em competição com filhos biológicos. 

“Aos padrastos e madrastas é aconselhável expressar de maneira indubitável suas intenções perante os descendentes de seus companheiros e a sociedade, por meio da formalização de testamentos, seguro de vida, doação, dentre outros instrumentos jurídicos. A ausência de dúvida sobre a presença dos requisitos que configuram a socioafetividade, evita longas discussões judiciais, seja para caracterizar como reconhecido o vínculo de parentesco ou não.”

Do contrário, se a pretensão é a nobre condição de ser pai/mãe, da mesma forma é importante externalizar esta intenção e constituir provas e elementos da socioafetividade, através da posse de estado e de todos os elementos subjetivos que envolvem o afeto, ou mesmo da formalização de documentos que indiquem esta condição de parentalidade.

Apesar da atual orientação jurídica dada pelo Superior Tribunal de Justiça, decorrente de toda a construção do conceito de socioafetividade no direito de família, é sempre importante ressaltar que o reconhecimento desta socioafetividade não será automática e não acontece em todos os casos de famílias mosaico.

Ao contrário, é comum que as relações entre padrastos e madrastas com seus enteados seja isenta da intenção de atrair direitos e obrigações paternais. Apenas o tratamento cordial, respeitoso e carinhoso não é o suficiente para atrair efeitos patrimoniais e sucessórios, sendo necessária análise prática, em cada caso, dos requisitos subjetivos, razão pela qual é importante que os envolvidos sempre façam prova de sua intenção, seja ela a de ser pai/mãe ou não.

Felizmente, nosso ordenamento está em constante tentativa de acompanhar as formas plurais de família e hoje permite que estas entidades se formem no amor, seu elemento mais puro.

1 GLANZ, Semy. A família mutante - sociologia e direito comparado: inclusive o novo Código Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 157-158.
2 GRISARD FILHO, Waldyr. Famílias reconstituídas. Novas relações depois das separações. Parentesco e autoridade parental. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coord.). Afeto, ética, família e o novo Código Civil. Belo Horizonte: Del Rey, 2004.
4 BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm. Acesso em: 08 jul. 2022.
5 VILLELA, João Baptista. Desbiologização da paternidade. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, ano XXVII, n. 21, p. 409, maio de 1979.
6 DIAS, Maria Berenice, Manual de Direito das Famílias, 10ª ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 2015p. 405.
7 ALMEIDA Renata Barbosa de; Rodrigues Júnior, Walsir Edson, Direito Civil – Famílias, Editora Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2010, p. 390/391.