Covid-19: O cancelamento e as remarcações de viagens aéreas. Quem assumirá os prejuízos?


Covid-19: O cancelamento e as remarcações de viagens aéreas. Quem assumirá os prejuízos?


A pandemia do novo Coronavírus já influi negativamente em diversos setores da economia nacional, destacando-se, desde os primeiros dias, o impacto direto sobre as companhias aéreas, com perspectiva de piora no setor à medida que a situação se agrava.

Com as orientações de resguardo social como principal medida de contenção do COVID-19, o cancelamento de viagens já é uma realidade e causa preocupações nos órgãos do governo federal, que já falaram em colapso do setor. Isso se justifica com os dados iniciais, colhidos ainda na chegada do cenário ao Brasil, que apontavam, segundo a Associação Brasileira das Empresas Aéreas, redução de 30% da demanda por voos domésticos e 50% por viagens internacionais. Já entidades do setor de turismo enviaram carta ao Ministro do Turismo reportando cancelamento de 85% das viagens previstas para março.

Já no início da crise, com a constatação de contágio doméstico em diversos centros nacionais, a imprensa nacional noticiava a iminente atuação do Governo Federal, sugerindo algumas concessões e regulamentação, mas, de concreto, no primeiro momento, tivemos apenas o abono do cancelamento de slots determinado pela ANAC, como publicado no site da agência¹.

Por outro lado, algumas instituições da sociedade civil – especialmente os órgãos relacionados – têm manifestado preocupação com os direitos dos consumidores, visando garantir o ressarcimento integral ou remarcação das viagens sem qualquer ônus. O MPF, por exemplo, “recomendou à Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) que publique ato normativo que assegure aos consumidores a possibilidade de cancelar, sem ônus, passagens aéreas nacionais e internacionais para destinos atingidos pelo novo coronavírus (Covid-19)”². O órgão também pede que seja garantida a remarcação da viagem, com a possibilidade de utilização do bilhete em até 12 meses, sem custos adicionais. 

E, ao menos até que sobrevenha regulamentação específica, essa é a expectativa de trato no Poder Judiciário. Tanto que já se tem notícia de decisão proferida no 5º Juizado Especial Cível João Pessoa/PB³, declarando o direito de remarcação de passagens aéreas em uma companhia portuguesa sem qualquer custo adicional aos autores da ação, em deferimento de tutela urgência, com cominação de multa diária por descumprimento.

A expectativa de aplicação dos preceitos consumeristas, somada aos impactos antevistos – com o governo divulgando que, em apenas uma semana, os cancelamentos já atingiam 85% dos voos internacionais e 50%  dos voos nacionais -, o Ministério da Infraestrutura anunciou em seu site inciativas para socorrer o setor(4). 

Como resultado, foi publicada no último dia 19 de março a MP 925/2020, que “dispõe sobre medidas emergenciais para a aviação civil brasileira em razão da pandemia da covid-19”, prevendo, dentre o mais, a regulamentação do reembolso de passagens aéreas, pelas companhias aéreas a consumidores, no prazo de 12 meses, de forma a aliviar o fluxo de caixa das empresas e sem prejuízo da observância das regras de aplicação de penalidades pelo cancelamento, bem como a possibilidade de concessão de voucher para utilização, como crédito, pelos consumidores, também no período de doze meses, incentivando tal modalidade ao prever expressamente a proibição de cobrança das sanções contratuais decorrentes da rescisão do contrato de transporte.

Como as Companhias Aéreas estão no olho desse furacão, assumindo os prejuízos do setor pela redução significativa e ascendente de demanda e com a previsão de uma enxurrada de ações judiciais questionando devoluções, remarcações e indenizações, deve a gestão da crise ser feita também com foco nesse cenário, evitando a perspectiva de futuros processos judiciais e minimizando os impactos de contingência e incremento de prejuízos. 

Relembre-se que a situação das remarcações e cancelamentos deverá ser analisada inicialmente, como feito na decisão judicial acima referenciada, sob a ótica do Código de Defesa do Consumidor. Assim, embora a legislação civil ordinária condicione a configuração de onerosidade excessiva à imprevisibilidade de acontecimentos para justificar a revisão dos contratos, a legislação consumerista (5) dispensa o requisito e exige apenas a constatação de fato superveniente que torne excessivamente onerosa a obrigação. 

Conquanto essa interpretação nos pareça subsidiar a possível devolução de valores de passagens aéreas com a discussão sobre a aplicação das penalidades contratuais respectivas nessa hipótese, é igualmente importante pontuar que a situação de força maior ou caso fortuito impede a responsabilização por demais prejuízos eventualmente arguidos, nos termos do artigo 393 (6) do Código Civil, sendo certo que a MP 925/2020 parece vir exatamente para regulamentar as responsabilidades e os efeitos deste evento imprevisível, principalmente pelo fato de normatizar a possibilidade de isenção dos encargos de cancelamento caso o consumidor aceite a devolução em crédito. 

Chamamos a atenção de que os mesmos institutos (onerosidade excessiva e caso furtuito ou força maior) poderão subsidiar medidas judiciais visando reequilibro contratual entre as companhias aéreas com parceiros e fornecedores, de forma que os efeitos da crise sejam diluídos em toda a cadeia, incluindo os consumidores, ao receberem a devolução parcelada ou na forma de crédito, sem multa, uma vez que a imprevisibilidade aconteceu para todos os agentes, não sendo possível atribuir um culpado e, consequentemente, um único responsável por suportar todos os efeitos da crise.

Como visto, o Governo Federal já se adiantou para minimizar os efeitos sobre o setor, ressaltando sua importância para a economia nacional. O Ministério da Agricultura, na notícia que citamos acima, afirma que a aviação comercial representou 1,9% do PIB brasileiro em 2018, ressaltando, ainda, que transporte aéreo de carga é fundamental para assegurar a distribuição de medicamentos e equipamentos médico-hospitalares.

Essa sinalização do Governo – embora dependa de conversão em lei para ser definitiva – revela que é injusto onerar apenas um dos lados, as companhias aéreas, por todos os efeitos da crise, devendo-se, ao contrário, mitigar os litígios latentes, sob pena de inviabilizar a sobrevivência de tais empresas, com reflexos na própria prestação do serviço de transporte aéreo, como visto, tão indispensável ao país. 

Recomenda-se, assim, que a avaliação do cenário e das medidas de contenção dos efeitos da pandemia, capitaneados sempre pela preocupação com a saúde dos passageiros, tripulação e demais usuários do transporte aéreo – preceito basilar da situação, seja, desde já, acompanhada de monitoramento dos impactos como um todo no setor, incluindo a resolução de conflitos potenciais entre companhias aéreas, consumidores e fornecedores, ante o fato extraordinário e imprevisível que acomete o mundo inteiro. 

A Equipe de Contencioso Cível do Azevedo Sette Advogados se coloca à disposição para esclarecimentos adicionais sobre o tema. 


¹  In https://www.anac.gov.br/noticias/2020/nota-a-imprensa; acesso em 18 de março de 2020, 10:34h.

²  Covid-19: MPF recomenda cancelamento de passagens aéreas sem ônus | Agência Brasil | https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2020-03/covid-19-mpf-recomenda-cancelamento-de-passagens-aereas-sem-onus

³  Decisão proferida no processo n.º 0816318-47.2020.8.15.2001

4  In https://infraestrutura.gov.br/component/content/article.html?id=9591; acesso em 19 de março de 2020, 09:54h.

5 CDC. Art. 6º São direitos básicos do consumidor: [...] V - a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas;

6  Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado. Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir