Por Caroline Martinez Moura, Mariana Alves de Oliveira Galvan e Maristela Miglioli
O ICMS na transferência de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo titular - será a 2ª “tese do século"?
Como é de conhecimento geral e após uma espera de exatos dois anos, na semana passada o Supremo Tribunal Federal encerrou o julgamento dos Embargos de Declaração opostos em face da decisão proferida na Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 49.
Com este capítulo final, esperava-se que a novela do ICMS na transferência de mercadorias entre estabelecimentos de um mesmo contribuinte estivesse encerrada, trazendo estabilidade e previsibilidade acerca do tema. Contudo e infelizmente, ainda estamos longe disso.
Primeiro, porque tal julgamento não resolveu a questão da transferência dos créditos, ponto relevantíssimo aos contribuintes, dentre outros.
Segundo, porque a modulação de efeitos aplicada ao tema criou um esdrúxulo – e talvez único – antagonismo entre duas decisões do STF idênticas de conteúdo, mas opostas quanto aos respectivos períodos de eficácia.
Estamos nos referindo à decisão proferida no ARE nº 1.255.885, que resultou no Tema 1.099 e à qual foi reconhecida a repercussão geral, mas sem modulação de efeitos.
Desde o trânsito em julgado (em 10.10.2020) da decisão proferida nesse caso concreto, os contribuintes puderam se comportar de acordo com aquela diretriz, não recolhendo o ICMS nas transferências entre seus próprios estabelecimentos. E os Estados também o fizeram: a grande maioria deixou de exigir o imposto nessa situação (há raras exceções). E tudo isto aconteceu mesmo na ausência de Resolução do Senado Federal1 e/ou de súmula vinculante do STF que a substituísse2, instrumentos tecnicamente hábeis a, de fato, subtrair a norma declarada inconstitucional do ordenamento jurídico.
Ou seja, ainda que a decisão do STF em controle difuso produza efeitos vinculantes somente para os integrantes da estrutura do Poder Judiciário (não obrigando terceiros e a administração pública), ainda assim criou-se uma justa expectativa dos contribuintes de que não sofreriam qualquer tipo imposição/sanção por assim se conduzirem.
Em termos estritamente processuais, é sabido que tal conduta só estaria 100% acobertada se o contribuinte tivesse ajuizado ação própria e, com isso, assegurado a aplicação do Tema 1.099 ao seu processo3, buscando a coisa julgada em seu favor. Contrariu sensu, os contribuintes que não adotaram tal medida assecuratória não poderiam ter deixado de recolher o ICMS em tais saídas, assumindo o risco de eventual e futura mudança de entendimento.
Mas, por uma visão pragmática, cabe indagar: a decisão do STF em controle difuso de constitucionalidade (Recurso Extraordinário), ao qual se atribuiu o efeito de repercussão geral, seria suficiente para atribuir segurança jurídica aos contribuintes não-litigantes em ação própria?
A resposta é claramente positiva, sob dois fundamentos:
- fundamento jurídico: ao julgar os Temas 881 e 885, o STF parece ter firmado o entendimento4 de que as decisões proferidas em controle concentrado ou na sistemática de repercussão geral (como a decisão no Tema 1.099) se assemelham a uma norma jurídica, aplicando-se, de forma automática e imediata, aos fatos geradores verificados a partir da publicação da ata de julgamento do precedente do STF;
- fundamento fático: os próprios Estados deixaram de exigir o imposto e alguns, inclusive, tiveram suas normas internas (referentes ao tema) declaradas inconstitucionais pelos Tribunais locais.
Ora, (i) se a norma estadual que previa a incidência do ICMS nessa situação foi declarada inconstitucional pelo Tribunal competente, na esteira de idêntico entendimento do STF em relação à norma nacional (Lei Kandir); (ii) se o precedente do STF com repercussão geral (no Tema 1.099, julgado em 2020) se aplica aos fatos geradores verificados a partir da publicação da ata de seu julgamento (como sói acontecer agora em relação à CSLL nos Temas 881 e 885); e, por fim, (iii) se os legítimos interessados na arrecadação (os Estados) “abriram mão” desse imposto, estes três elementos já não justificam a completa confiança do contribuinte na não-tributação dessa transferência, habilitando-o a seguir dessa forma? Evidente que sim!
E agora? Como ficamos com a modulação dos efeitos na ADC nº 49, que resultou na eficácia da decisão (repita-se: uma decisão idêntica à do Tema 1.099) somente a partir de 01.01.2024? Afinal, a rigor, tal modulação significa que, até aquela data, o ICMS permanece devido nas transferências entre estabelecimentos de um mesmo titular.
Ou seja, hoje (Abril/2023) temos duas decisões do STF que, embora sinalizem no mesmo sentido, trazem resultados concretos totalmente opostos quando aplicadas aos contribuintes que não ingressaram com ação própria ou o fizeram após a “data de corte” adotada na modulação (29/04/2021):
(i) pelo Tema 1.099, o ICMS não é devido naquelas transferências hoje;
(ii) pela ADC 49, o ICMS é devido na mesma hipótese.
Na tentativa de achar uma solução ao impasse, recorremos à teoria do Direito Constitucional para buscar uma eventual “hierarquia” entre essas duas decisões do STF, considerando que a mais antiga foi proferida em controle difuso (Recurso Extraordinário com efeitos originariamente inter partes, mas estendidos aos membros do Poder Judiciário por força da repercussão geral atribuída ao caso), enquanto a atual resulta do controle concentrado (efeitos naturalmente erga omnes dentro dos limites da modulação, vinculando a todos).
Nesse confuso cenário, a única certeza é a incerteza, fazendo-nos recordar a montanha russa vivenciada na “tese do século”.
Por isso, é fundamental avaliar as peculiaridades de cada contribuinte, para adotar a conduta mais adequada. Está lançado o desafio!
Referências:
1 CF, artigo 52, inciso X, da CF. Vale lembrar que existe um projeto de lei do Senado para tal fim, de nº 332.
2 Artigo 103-A, introduzido pela Emenda Constitucional nº 45/2004.
3 CPC, artigo 927, inciso V.
4 A conferir quando da divulgação ao acórdão.