A “saga” da tese do século: o crédito sobreviverá?


A “saga” da tese do século: o crédito sobreviverá?


Por Maristela Miglioli

É entendimento do homem comum que as decisões do STF, gostando ou não, precisam ser aplicadas. E ponto final. 

Mas, como toda regra tem sua exceção, quando se trata da chamada “tese do século” (para quem não sabe, é o “nome popular” da discussão que envolveu a exclusão do ICMS da base de cálculo das contribuições ao PIS e à COFINS) não é bem assim! 

Inconformada com o resultado que lhe foi desfavorável, a Receita Federal continua se valendo de todas as manobras possíveis para limitar o direito dos contribuintes de usufruir daquela decisão, pela qual esperaram por mais de 10 (dez) anos!

Como se não bastasse a insegurança da longa espera – os primeiros processos foram ajuizados ainda no século passado! – novas inseguranças se apresentam a cada etapa dessa longa jornada.

Logo após a decisão de mérito em favor dos contribuintes, proferida pelo STF em 2017, a Receita Federal fez uma primeira tentativa de reduzir seus efeitos, editando norma no sentido de que o ICMS a ser excluído seria o efetivamente pago (ou seja, aquele resultante da apuração mensal), e não o ICMS destacado em cada nota fiscal. 

Tentativa frustrada, mas o fisco ainda não se deu por vencido!

Como se sabe, a recuperação dos valores pagos a maior de PIS e de COFINS, resultantes da incidência considerada indevida pelo STF (a “tese do século”), se dá por meio da compensação tributária, pela qual, o contribuinte envia ao fisco federal um documento (“Pedido de compensação”) indicando: (i) o montante do seu crédito; (ii) a origem desse crédito; (iii) o montante do seu débito que será “pago” com aquele crédito.

Essa forma de “pagamento” de tributos está prevista no Código Tributário Nacional – lei complementar com amparo na Constituição Federal – e na lei ordinária, sendo amplamente aceita e regulamentada. A mais recente norma sobre o tema foi editada em dezembro de 2023 e representa a segunda tentativa do governo em restringir o uso dos créditos gerados pela “tese do século”.

Estamos nos referindo à Medida Provisória nº 1.202/23, cuja exposição de motivos foi induvidosa: “A partir do ano de 2019, os créditos judiciais têm representado 38% (trinta e oito por cento) dos créditos utilizados em compensações (...) A estimativa é que 90% (noventa por cento) dos créditos judiciais utilizados em compensações sejam relativos à exclusão do ICMS da base de cálculo dos tributos. (...) Para resguardar a arrecadação federal ante a possibilidade de utilização de créditos bilionários para a compensação de tributos, propõe-se a alteração do art. 74 da Lei nº 9.430, de 1996, e inclusão do art. 74-A, para que seja implementado um limite mensal à compensação de débitos utilizando créditos oriundos de ações judiciais, fracionando sua utilização no tempo.”  (grifos nossos)

Ou seja, instituiu-se um limite mensal para o contribuinte utilizar o seu crédito, ou seja, para resgatar aquele dinheiro que foi pago indevidamente ao fisco, ficou em suas mãos por um período indecente e, agora, só está sendo “devolvido” por intervenção do Poder Judiciário e para quem ingressou com ação, própria ou coletiva!

Esse limite só existe para créditos acima de R$ 10.000.000,00 (dez milhões de reais) e, acima disso, o escalonamento está detalhado na Portaria nº 14/2024. Para valores mais expressivos (acima de R$ 500.000.000,00), o prazo mínimo para uso da totalidade do crédito é de 60 (sessenta meses). 

E aqui está o ponto de maior preocupação: esse mesmo período (60 meses) corresponde ao limite de tempo máximo (e não mínimo!) para o titular de um crédito buscar o seu uso (no caso específico, para o contribuinte providenciar o “pedido de compensação” perante a Receita Federal); é a chamada “prescrição quinquenal”, que também se aplica aqui!

Criou-se, então, uma autêntica “sinuca de bico” (com o perdão do dito popular....): por um lado, há norma válida no sistema compelindo o contribuinte a utilizar todo o seu crédito no prazo de 5 (cinco) anos, contados a partir do trânsito em julgado da decisão da qual o crédito se origina (é a chamada “prescrição”). Por outro lado, há outra norma válida no sistema (introduzida pela MP nº 1.202/23), ordenando que o contribuinte ultrapasse os 5 (cinco) anos no uso de seu crédito!

Na linguagem jurídica, trata-se de um conflito de normas (“antinomia”), visto que a norma “A” manda fazer algo (não ultrapassar 5 anos, sob pena de perder o restante do crédito não utilizado dentro desse período), que a norma “B” proíbe. 

A própria Medida Provisória pretendeu resolver esse impasse, ao determinar que a prescrição (aquele prazo de 5 anos contra o contribuinte, para que ele consuma todo o seu crédito) estará interrompida com a entrega, pelo contribuinte, do primeiro “Pedido de compensação” (Per/dcomp). Assim o fazendo – por essa regra – o contribuinte paralisaria os efeitos do tempo (a prescrição) para o saldo de crédito ainda não “consumido”. 

Parece uma solução mágica, não fossem dois aspectos a serem considerados:  

  • Além das limitações acima, a MP nº 1.202/23 também promoveu alterações no Perse (Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos) e na desoneração da folha de pagamento, o que lhe rende uma excepcional “instabilidade” e coloca em risco sua sobrevivência;
  • Ainda que a referida MP venha a ser convertida em lei – o prazo expira no final deste mês de março – o dispositivo que trata da interrupção da prescrição (e que, em tese, “salvaria” os contribuintes de “perderem” parte do crédito como consequência dos limites mensais impostos à compensação) poderá ter sua validade questionada no Poder Judiciário, por uma razão muito simples: a Constituição Federal reserva à lei complementar (quórum de aprovação mais complexo) o tratamento de várias matérias, entre as quais a prescrição; a MP, se e quando convertida em lei, se transformará em lei ordinária (quórum de aprovação mais simples).

Estes pontos resultam em grande insegurança aos contribuintes que possuem créditos de PIS e COFINS em montantes mais expressivos e que, ao obedecerem aos limites impostos pela MP nº 1.202/23, precisariam de mais tempo do que os 5 (cinco) anos para consumir todo o crédito. 

Vale lembrar, neste ponto, que os contribuintes não têm o poder de “escolher” o volume de seus tributos federais gerados a cada período, na tentativa de agilizar o uso de todo o crédito disponível! É uma circunstância que depende de fatores mercadológicos alheios à vontade dos contribuintes!

A preocupação dessas breves linhas é que o poder de regulamentar a compensação (aspecto inquestionável) não pode, mediante imposição de restrições excessivas, aniquilar o crédito do contribuinte, ainda que parcialmente. Admitir-se o contrário importaria em violar o patrimônio do contribuinte, ao qual o crédito pertence.   

É lamentável que, após a longa jornada para ver seu direito reconhecido, o contribuinte ainda tenha que enfrentar o inconformismo do governo, que o leva a adotar manobras incompatíveis com a segurança jurídica.