Nova Lei de Licitações: o fim do formalismo e o aumento da judicialização


Nova Lei de Licitações: o fim do formalismo e o aumento da judicialização


Aqueles que lidam diariamente com compras públicas – sejam eles licitantes ou aqueles que os assessoram juridicamente – vem cada vez mais notando a tendência de comissões, tribunais de contas e do Poder Judiciário de rechaçarem o formalismo que outrora era uma das pedras fundamentais dos procedimentos licitatórios, em prol da conclusão célere dos certames.

Essa tendência vem amparada no princípio da eficiência (art. 37 da Constituição Federal) e da necessidade da perseguição e proteção do interesse público envolvido, resultando na construção da noção do “formalismo moderado”, em substituição ao denominado “formalismo exacerbado”, amplamente atacado em recursos administrativos e mandados de segurança em todo o país.

A burocracia mecanicista da Administração Pública é tão notória e prevalente a ponto de não só ser fonte de frustração e raiva, mas também tópico de humor caricato não apenas no Brasil como em países desenvolvidos1

Assim, são mais do que salutares alterações normativas recentes que visam flexibilizar regras, simplificar a interação entre administrados e administradores e remover o peso – por vezes intransponível – da burocracia sobre o setor econômico. Nesta seara, vale citar a Lei Federal nº 13.726/2018 (“Lei da Desburocratização”), Lei Federal nº 13.874/2019 (“Declaração de Direitos de Liberdade Econômica”) e as alterações promovidas em 2018 no Decreto-Lei nº 4.657/1942 (“Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro”).

Especificamente no âmbito das licitações públicas, atenta-se para a Lei Federal nº 13.303/2016 (“Lei das Estatais”) que tornou regra geral, para todas as licitações realizadas pelas entidades por ela reguladas, a exceção anteriormente prevista apenas para concessões de serviços públicos (desde 2005) e parcerias público-privadas (desde 2004) com relação à chamada “inversão das fases” de habilitação e julgamento das propostas. A alteração do procedimento – em linha com o que já havia sido demonstrado nas licitações de maior vulto regidas por legislação própria – tende a agilizar os certames, concentrando o exame da documentação de habilitação apenas quanto ao licitante com a melhor proposta, poupando, assim, uma guerra de recursos administrativos e medidas judiciais cruzadas entre licitantes independentemente da ordem de classificação.

Essa agilidade, todavia, tem seu custo.

É notório – e até mesmo compreensível – que cientes da diferença de valores entre as propostas das licitantes, tanto o Poder Público quanto o Poder Judiciário mostrem-se reticentes em eliminar de certame aquela que tenha apresentado a proposta mais econômica e aparentemente “vantajosa” (i.e: maior valor de outorga, menor valor de tarifa, menor preço pela aquisição de equipamento ou para prestação de serviço, etc.), ainda que, efetivamente, não tenha atendido a todos os requisitos previstos pela legislação de regência e pelo instrumento convocatório. É então que surgem os apelos e remissões ao “formalismo moderado”, de forma a ignorar os vícios existentes, sejam (i) eles triviais e genuinamente releváveis, ou (ii) grosseiros e estruturalmente incompatíveis com a legalidade do certame.

O cerne da questão é que formalismo exacerbado, ou seja, a aplicação mecanicista, implacável e literal da letra da lei, ainda que potencialmente desarrazoada, desproporcional e ineficiente, é previsível. 

Por outro, o formalismo moderado – melhor alinhado com uma noção de Administração Pública moderna, eficiente e consciente de seus objetivos de melhor prover aos administrados – por necessidade, é subjetivo e depende da perspectiva e limites de cada comissão de licitação. E é nessa subjetividade que residem os riscos de quebra da isonomia e da moralidade pública com a flexibilização imprevisível de regras para um licitante que talvez não fosse extensível aos demais.

Todas as considerações acima, contudo, dizem respeito à situação atual, já consolidada.

A questão pendente de respostas é a evolução do cenário de compras públicas com a aplicação – por hora pontual, mas em breve obrigatória – da Lei Federal nº 14.133/2021 (“Nova Lei de Licitações”). 

A nova lei, seguindo a tendência de simplificação, racionalização e desburocratização, exemplificativamente:

expressamente incluiu o interesse público no rol de princípios norteadores da licitação;

estabeleceu que o desatendimento de exigências meramente formais que não comprometam a aferição da qualificação ou a compreensão do conteúdo não importará o afastamento da licitante;

estabeleceu a “inversão de fases” como regra geral; e

previu que os documentos de habilitação somente serão entregues após a identificação da proposta mais bem colocada.

As alterações são louváveis e necessárias. O problema reside na sua conjugação com as previsões contidas no “Capítulo XI – Da Nulidade dos Contratos”.

O art. 147 da nova lei prevê que, constatada irregularidade no procedimento licitatório, caso não seja possível o saneamento, “a decisão sobre a suspensão da execução ou sobre a declaração de nulidade do contrato somente será adotada na hipótese em que se revelar medida de interesse público”. Para a aferição do interesse público envolvido, devem ser levados em consideração, entre outros elementos, os impactos econômicos e financeiros e os riscos sociais decorrentes do atraso na fruição dos benefícios do objeto do contrato, as medidas adotadas pelo órgão ou entidade para sanear os indícios de irregularidade, o fechamento de postos de trabalho diretos e indiretos decorrentes de eventual paralisação e o custo da realização de nova licitação ou celebração de novo contrato.

Com efeito, o leque de variáveis que devem ser consideradas é tão amplo a ponto de, na prática, permitir que o administrador público – ainda que bem intencionado – sempre consiga justificar a não-economicidade da suspensão/anulação de um contrato em execução. Se o administrador dotado da mais plena boa-fé pode preservar um contrato que, a toda prova, é nulo, quiçá aquele que não tem o interesse público em mente e tem o objetivo claro – ainda que íntimo – de beneficiar ou prejudicar determinado licitante.

Não se ignora que a nova lei não permite a convalidação de ato irregular sem quaisquer repercussões. O dispositivo mencionado indica que, caso a anulação de contrato não seja compatível com o interesse público, a irregularidade deverá ser resolvida por meio de indenização por perdas e danos, entre outras medidas. Todavia, enquanto os artigos 147 e 148 são omissos, o art. 149 menciona expressamente o dever da Administração de indenizar apenas o contratado em caso de nulidade. Dito de outra forma, a Nova Lei de Licitações não é expressa sobre o direito de terceiros que porventura sejam prejudicados em decorrência do certame viciado serem indenizados em razão dos prejuízos sofridos, tanto no caso de uma exclusão indevida do certame quanto da habilitação viciada do “vencedor”.

Ante tal incerteza é possível imaginar que os concorrentes em futuros certames buscarão se precaver contra a consolidação de uma situação jurídica que, ainda que demonstravelmente viciada, pode vir a não ser desconstituída pela Administração Pública à luz do interesse público alegado. Assim, os benefícios decorrentes dos esforços de simplificação dos procedimentos licitatórios – a exemplo da já mencionada racionalização dos recursos administrativos oriunda da análise da habilitação apenas da licitante classificada em primeiro lugar – podem ser neutralizados pelo aumento na judicialização dos certames, da agressividade dos licitantes na tentativa de obter decisões que suspendam as licitações, e na cautela dos julgadores que concluam que sua não intervenção pode contribuir para a concretização de atos viciados e, por vezes, eivados de corrupção.

 1.Recomendam-se as séries televisivas “Yes Minister” e “Yes, Prime Minister” sobre a administração pública britânica na década de 1980.

*Contribuição do estagiário João Filipe Izar