Por Luciana Tolentino, Lívia Costa e Iara Sampaio
A tributação é elemento fundamental para o funcionamento do Estado, pois é por meio dela que são arrecadados os recursos necessários para financiar as atividades governamentais essenciais às garantias constitucionais, preservando os valores instituídos pela Constituição. É importante, no entanto, que a tributação seja realizada de forma justa e equitativa, respeitando as garantias constitucionais dos cidadãos, como a igualdade perante a lei e a proteção dos direitos individuais.
A despeito dessa premissa, evidencia-se, no Brasil, um sistema tributário pautado na regressividade, pela qual os impostos recaem com maior impacto sobre os contribuintes de baixa renda, em decorrência da opção do legislador pela tributação mais expressiva do consumo, e não da renda e/ou da propriedade. Assim, num país em que um dos princípios que norteiam o sistema tributário é o da capacidade contributiva, a regressividade se torna responsável pela relativização desse princípio.
Apesar da presença da mulher no mercado de trabalho ter se consolidado nas últimas décadas, ainda persistem disparidades salariais entre homens e mulheres, que podem ser atribuídas a uma série de fatores, tais como discriminação de gênero, segregação ocupacional e, até mesmo, interrupções na carreira devido a responsabilidades familiares (como a maternidade), além da falta de políticas eficazes de promoção da igualdade salarial.
Além disso, pesquisa do Instituto Justiça Fiscal revela que as mulheres pagam alíquotas efetivas de Imposto de Renda mais elevadas do que os homens, basicamente porque os homens possuem maiores rendimentos isentos, oriundos, por exemplo, dos lucros e dividendos de investimentos, que não são tributados atualmente e, ainda, os homens também são maioria entre os beneficiários de deduções tributárias e de restituições de Imposto de Renda.
Ademais, além do trabalho remunerado, recai sobre as mulheres, em geral, o trabalho não remunerado de cuidado doméstico e, consequentemente, os gastos a ele inerentes, como compra de alimentos, medicamentos e outros bens de consumo imediato. Somado a isso, elas ainda apresentam necessidades fisiológicas diferentes em relação aos homens, exigindo o consumo de itens que não estão presentes no universo masculino, os quais também são responsáveis pelo aumento do custo de vida das mulheres.
Além de todo o exposto, ainda há o fenômeno denominado “pink tax”, pelo qual produtos direcionados às mulheres são mais caros do que produtos similares ou idênticos voltados aos homens. Essa circunstância se traduz num aumento do custo de artigos de saúde e higiene pessoal, roupas e até mesmo serviços, simplesmente porque são voltados para o público feminino. Assim, o “pink tax” não é responsável apenas pelo incremento do valor individual do produto, mas, como consequência da política fiscal adotada no país, também contribui para o aumento na carga tributária suportada pelas mulheres, exacerbando as disparidades financeiras já enfrentadas.
Um exemplo clássico é uma lâmina de barbear cor-de-rosa, que custa três vezes mais em relação a outra, igualzinha, na cor azul. Pesquisas demonstram que, em produtos praticamente iguais, nos quais só muda a cor ou a embalagem, as versões ditas “femininas” são mais caras. Outro exemplo de produto que contribui para a disparidade do impacto tributário entre homens e mulheres é o absorvente, de consumo recorrente e exclusivamente feminino, traduzindo-se num produto essencial para as mulheres. A carga tributária sobre este produto está próxima de 27,5%. O mesmo cenário se observa nos métodos contraceptivos femininos, tributados à alíquota média de 30%, enquanto métodos utilizados por homens gozam de isenções de IPI e, em Minas Gerais, também de ICMS.
Esses dados mostram a necessidade de um olhar mais atento ao desequilíbrio da tributação incidente sobre produtos predominantemente femininos ou majoritariamente adquiridos por mulheres, frente aos produtos similares destinados ao público masculino, além de exigir a adoção de mecanismos para a mitigação dessas disparidades, com o objetivo de atenuar a regressividade e promover, de forma mais equânime, a justiça fiscal.
A recentemente aprovada reforma tributária sobre o consumo propõe uma revisão profunda do sistema tributário vigente, visando simplificar e tornar mais justo o regime de tributos incidentes sobre bens e serviços. O projeto buscou eliminar a complexidade e a cumulação de tributos sobre o consumo, adotando um regime de imposto de valor agregado (IVA) dual por meio da cobrança de dois tributos distintos: a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), que substitui o PIS, a Cofins e o IPI, que são tributos de competência federal, e o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), que substitui os impostos sobre consumo de competência estadual e municipal, quais sejam, o ICMS e o ISS. Além disso, pretende-se reduzir a carga tributária sobre produtos essenciais, como alimentos e medicamentos, com a aplicação de alíquota zero.
Dessa forma, enquanto se discute a regulamentação da reforma, é imperioso que sejam considerados os fatores de gênero para a promoção da justiça fiscal. Sendo assim, devem ser aplicadas medidas que direcionem tratamentos tributários que ativamente contribuam para a redução da tributação sobre produtos femininos ou majoritariamente adquiridos por mulheres.
Nesse sentido, a Emenda Constitucional nº 132/2023, oriunda da aprovação do texto da reforma tributária sobre o consumo (PEC 45), trouxe, em seu artigo 9º, a possibilidade de instituição de regimes diferenciados de tributação no âmbito do IBS e da CBS, que possibilitam a redução de 60% na alíquota de diversos produtos, dentre eles os de cuidados básicos à saúde menstrual, de uso exclusivamente feminino. O mesmo regime também pode ser aplicado a medicamentos, alimentos de consumo humano e produtos de higiene pessoal e limpeza majoritariamente consumidos por famílias de baixa renda, o que mostra a intenção do legislador em promover ações que visem à equalização de gênero e eliminação da regressividade tributária.
É importante destacar, no entanto, que a implementação desse benefício é uma liberalidade do legislador, que poderá prever a redução de alíquota quando da instituição do IBS e da CBS por meio de lei complementar. Ou seja, é uma possibilidade, e não uma garantia ou certeza do contribuinte.
E, para além dos produtos previstos na emenda constitucional, outros produtos ligados à fisiologia feminina e trabalho de cuidado familiar também carecem de redução ou até mesmo desoneração da carga tributária, a exemplo de métodos anticoncepcionais, medicamentos utilizados no tratamento da menopausa, fraldas infantis ou geriátricas e outros produtos relacionados ao cuidado materno.
No entanto, não somente a tributação sobre o consumo é responsável pela manutenção das desigualdades já expostas. É necessário que a reforma da tributação sobre a renda, ainda não apresentada, também seja utilizada para essa finalidade, sugerindo medidas que viabilizem o aumento da renda das mulheres, como a criação de benefícios fiscais para empresas que contratem mulheres e as coloquem em cargos de gestão, bem como a criação de oportunidades para mulheres em situação de vulnerabilidade. Como demostrado, é necessária uma atenção especial para que o processo de reforma tributária em implementação no Brasil seja utilizado, também, como instrumento para mitigar a desigualdade de gênero.
Para além disso, a diminuição da regressividade, por meio de políticas que redistribuam a carga fiscal de forma mais equitativa, é essencial para reduzir a desigualdade acentuada pela tributação. Dessa forma, é necessária a implementação de políticas que virão a atuar de forma sistêmica para diminuir o impacto da tributação sobre o consumo e aumentar a tributação sobre a renda e a propriedade, de modo a promover uma tributação mais justa e igualitária entre homens e mulheres.