A emissão de debêntures-fut e a capitalização das SAFs


A emissão de debêntures-fut e a capitalização das SAFs


Dentre as formas de financiamento da SAF, há a possibilidade de emissão de debêntures, que, neste contexto futebolístico, são denominadas “debêntures-fut”, conforme previsto na Lei nº 14.193, de 6 de agosto de 2021 (“Lei da SAF”), que instituiu a Sociedade Anônima do Futebol (“SAF”).

Para tratar deste assunto, impossível se dissociar do ponto já discutido no primeiro artigo deste Especial SAF, de que a criação das SAFs foi fortemente guiada, dentre outras questões, para auxiliar na sobrevivência financeira dos clubes de futebol. Sendo assim, a possibilidade de emissão de debêntures pelas SAFs surge como um instrumento alternativo de capitalização e arrecadação de recursos para a atividade futebolística. 

A SAF, por sua vez, como emissora das debêntures-fut, teria como incentivo a vantagem de possivelmente, consideradas as condições de mercado, conseguir financiamento de maneira mais proveitosa, a taxas menores, se comparada, por exemplo, à obtenção de empréstimo junto a instituições bancárias, especialmente se de curto prazo.

Entretanto, a despeito das inovações especificas que as debêntures-fut parecem trazer, o que veremos a seguir é que, na prática, emitir debêntures-fut ao invés das debêntures convencionais já regulamentadas pela Lei das S.A. não representa necessariamente uma vantagem. Pelo contrário, o avanço mais significativo inicialmente previsto no projeto da Lei da SAF, referente à concessão de um incentivo fiscal na tributação das debêntures-fut, foi vetado pela Presidência da República, instigando a seguinte reflexão: quais os benefícios práticos na emissão das debêntures-fut?

Debêntures-fut vs. Debêntures

O ponto de partida para tal discussão perpassa, necessariamente, pelo fato da Lei da SAF não trazer a regulamentação procedimental completa para emissão destes títulos, sendo necessária a aplicação subsidiária do regramento da Lei nº 6.404/76 (“Lei das S.A.”), nos termos do art. 1º da Lei da SAF. 

Sendo assim, de acordo com o art. 52 da Lei das S.A., as debêntures conferirão aos seus titulares direito de crédito contra ela, nos termos constantes da escritura de emissão e, se houver, do certificado. Deste modo, são títulos de crédito que funcionam como um mútuo contraído pela companhia, mediante a emissão de títulos de dívida, cujas condições são previstas na escritura de emissão.

Além disso, seguindo também as regras previstas na Lei das S.A., a emissão das debêntures deve ser aprovada pela assembleia geral da companhia, a quem cumpre, também, fixar as condições da emissão, tais como (i) o valor da emissão e seu limite; (ii) número de debêntures e valor nominal; (iii) as garantias, se houver; (iv) as condições da correção monetária, se houver; (v) a conversibilidade em ações; (vi) a época e as condições de vencimento, amortização ou resgate; (vii) a época e as condições de pagamentos de juros, participação nos lucros e prêmio de reembolso, se houver; e (viii) o modo de subscrição ou colocação e o tipo das debêntures (cf. art. 59 da Lei das S.A.).

Entretanto, apesar da aplicação subsidiária da Lei das S.A., a emissão das debêntures-fut é restrita às SAFs, e, por serem uma modalidade de debêntures criada pela Lei da SAF, possuem características próprias, descritas no art. 26 da Lei da SAF. Tais características estabelecidas pela Lei da SAF têm como objetivo proteger o investidor, que, muitas vezes, pode ser o próprio torcedor do time, de modo que se mostrou necessário tratar de especificidades nesta modalidade. 

Além da restrição da emissão das debêntures-fut exclusivamente pelas SAFs, o art. 26 da Lei da SAF estabelece que as debêntures-fut podem ser emitidas desde que (i) ofereçam remuneração por taxa de juros não inferior ao rendimento atualizado da poupança; (ii) tenham prazo igual ou superior a 2 (dois) anos; (iii) não possam ser recompradas pela SAF ou por parte a ela relacionada, ou liquidadas antecipadamente por meio de resgate ou pré-pagamento, salvo na forma a ser regulamentada pela Comissão de Valores Mobiliários (“CVM”); (iv) ofereçam o pagamento periódico de rendimentos; e (v) sejam registradas em sistema de registro devidamente autorizado pelo Banco Central do Brasil - Bacen ou pela Comissão de Valores Mobiliários - CVM.

Ademais, todos os recursos captados pela sociedade anônima de futebol através da emissão de debêntures-fut devem ser destinados ao desenvolvimento das atividades ou no pagamento de gastos, despesas ou dívidas relacionadas às atividades da SAF, ou às atividades previstas em seu estatuto social, nos termos do §1º, do art. 26, da Lei da SAF. Outro aspecto previsto pela Lei da SAF é a possibilidade de se estipular cumulativamente ao rendimento fixo das debêntures-fut, uma remuneração variável, vinculada às atividades ou ativos da SAF.

Algumas das diferenças entre as debêntures-fut e as debêntures reguladas pela Lei das S.A., são que estas (i) não possuem prazo mínimo de vencimento, ainda que na grande maioria possuam prazo de vencimento superior a 2 anos; e (ii) podem ser resgatadas antecipadamente e podem ser adquiridas pela própria companhia que as emitiu, nos termos do art. 55, caput, e §3º, da Lei das S.A.

Portanto, consideradas as diferenças mencionadas acima, como esclarecido anteriormente, a Lei das S.A. deve ser aplicada subsidiariamente às debêntures-fut, no que for compatível com as disposições da Lei da SAF, especialmente no que tange aos procedimentos para emissão, aos direitos dos debenturistas e ao registro, os quais a Lei da SAF não cuidou de tratar em detalhes como a Lei das S.A.

Veto ao modelo específico de tributação e o prejuízo aos investidores

Sob a perspectiva de atrair investimentos para a sobrevivência financeira da atividade futebolística, a redação original do Projeto de Lei nº 5.516/20191, que deu origem à Lei da SAF, previa um benefício fiscal aos investidores que adquirissem as debêntures-fut: os rendimentos decorrentes de investimentos em debêntures-fut estariam sujeitos à incidência do imposto sobre a renda, exclusivamente na fonte, às alíquotas de (i) 0% quando auferidos por pessoa natural residente no país; e (ii) 15% quando auferidos por pessoa jurídica ou fundo de investimento com domicílio no país, ou por qualquer investidor residente ou domiciliado no exterior2

Entretanto, antes de a Lei da SAF ser sancionada, a redação do §2º, do art. 26, que regulamentava as alíquotas do imposto sobre a renda incidente sobre as debêntures-fut, foi vetada pela presidência da república – veto que foi mantido pelo Congresso Nacional. 

Em termos práticos, o veto ao incentivo fiscal impediu um grande avanço no financiamento das SAFs no Brasil, haja vista que a não concessão do incentivo fiscal a investidores representa uma deficiência no fomento às captações via debêntures-fut. A título de exemplo, as debêntures de infraestrutura estão sujeitas a esse incentivo fiscal, nos termos da Lei nº 12.431/2011, e têm se revelado um grande instrumento de fomento a tais atividades no Brasil. 

Portanto, em um olhar mais cuidadoso, com o veto ao incentivo fiscal, percebe-se que as debêntures-fut não apresentam grandes vantagens quando comparadas com as debêntures reguladas na Lei das S.A. Dessa forma, caso desejada essa forma de financiamento, para a SAF pode ser mais atrativo optar por emitir as debêntures tradicionais, o que também lhes é permitido. 

A proteção do investidor garantida pela Lei da SAF

No cenário do futebol, sob uma ótica mais otimista, imperioso ressaltar que a paixão do torcedor parece não ter sido esquecida pela Lei da SAF, de modo que as debêntures-fut podem também ser vistas como uma oportunidade ao torcedor de ajudar no financiamento do seu time do coração e, ao mesmo tempo, investir no mercado de valores mobiliários. Dessa forma, viabiliza-se uma participação ativa do torcedor que, até então, com exceção de alguns programas de “sócio torcedor”, ocupava um papel secundário, de espectador no financiamento dos seus times, e agora poderá “entrar em campo” e “jogar junto”, através da aquisição das debêntures-fut3.

Justamente por lidar com essa paixão do torcedor que a Lei da SAF se preocupou em impor alguns limites para a emissão das debêntures com o objetivo de proteger o torcedor que decide investir no seu time e impedir que o amor à camisa leve o investidor a aceitar condições esdrúxulas para ajudar a financiar o seu time - como a fixação de uma remuneração mínima - ou a realizar investimentos sem que tenha conhecimento efetivo dos riscos envolvidos.

Outro ponto de atenção refere-se à possibilidade de uma baixa liquidez dos valores mobiliários de entidades focadas no futebol. Um comparativo pode ser realizado, por exemplo, com o cenário internacional de ações de entidades de futebol negociadas em mercados de valores mobiliários, onde é possível verificar, por vezes, que determinadas ações não são negociadas por várias semanas, implicando em uma baixa liquidez dos papéis4

De qualquer forma, a possibilidade de emissão de  debêntures-fut, ainda com o veto ao incentivo fiscal, constitui uma das ferramentas alternativas para captação de recursos pelas SAFs, podendo auxiliar no financiamento e na recuperação financeira do futebol brasileiro, dadas as condições de mercado da época. 

Bibliografia

1 BRASIL. Projeto de Lei n° 5.516, de 15 de outubro de 2019. Disponível em: https://www.congressonacional.leg.br/materias/materias-bicamerais/-/ver/pl-5516-2019. Acesso em: 02 ago. 2022.

2 “§ 2º Os rendimentos decorrentes de aplicação de recursos em debênture-fut sujeitam-se à incidência do imposto sobre a renda, exclusivamente na fonte, às seguintes alíquotas: 

I – 0% (zero por cento), quando auferidos por pessoa natural residente no País; e 

II – 15% (quinze por cento), quando auferidos por pessoa jurídica ou fundo de investimento com domicílio no País, ou por qualquer investidor residente ou domiciliado no exterior, incluindo pessoa natural ou jurídica ou fundo de investimento, exceto nos casos em que os rendimentos sejam pagos a beneficiário de regime fiscal privilegiado, nos termos dos arts. 24 e 24-A da Lei nº 9.430, de 27 de dezembro de 1996, hipótese em que o imposto sobre a renda na fonte incidirá à alíquota de 25% (vinte e cinco por cento).”

3 SALES, Fernando Augusto de Vita Borges de. A Sociedade Anônima do Futebol. Editora Mizuno. p. 179.

4 MOTTA, Luciano. O mito do clube-empre$a. Sporto. 1ª edição. 2020. p. 287, apud AGLIETTA; ANDREFF; DRUT, 2010, p.8; MORROW, 2000, p. 14-16.