Os recentes aumentos da alíquota do ICMS no Estado de São Paulo e a segurança jurídica


Os recentes aumentos da alíquota do ICMS no Estado de São Paulo e a segurança jurídica


Recentíssimos acontecimentos no âmbito do Supremo Tribunal Federal deixaram todos perplexos, independentemente do viés político de cada um. Para nós, operadores do Direito, a surpresa foi acompanhada de uma sensação de completa insegurança jurídica, comprometedora da credibilidade do país no cenário global. 

E não é para menos, especialmente para os que militam em algumas áreas específicas do Direito, como a criminal e a tributária, que possuem diversos princípios convergentes. Afinal, com rigor reforçado nestas searas (porque lidam com valores ultrassensíveis ao ser humano), estabilidade e previsibilidade são palavras de ordem intransponíveis. 

Essa ideia, contudo, só funciona nos bancos acadêmicos. Na prática – e o exemplo vem “de cima” – o que importa são os interesses (políticos ou econômicos) do momento. Assim também se deu com o recente aumento de alíquotas do ICMS incidente na venda de veículos, novos ou usados, decretada pelo governador do Estado de São Paulo no âmbito de um “Pacote de Ajuste Fiscal”. 

De plano, um novo espanto: aumento de tributo durante a maior crise econômica de que se tem conhecimento no último século. Ou será por mais tempo? Isso, por si só, já representa um contrassenso sem precedentes. 

Mas a análise estritamente jurídica aprofunda a indignação: o aumento veio travestido de um eufemismo1 denominado “complemento do imposto” de 1,3% sobre a alíquota, até então vigente, de 12% (ou seja, alíquota final de 13,3%), com vigência para o período de 15 de janeiro a 1º de Abril de 2021. A partir desta data, o “complemento” eleva a alíquota para 14,5%, aplicável para os 24 (vinte e quatro) meses subsequentes, tudo a título de “redução de benefícios".

Segundo a Secretaria da Fazenda, a opção do Executivo foi fazer um “corte linear” de 20% dos benefícios, representativo de um incremento de arrecadação na casa dos R$ 7 bilhões. Para os veículos usados, também abrangidos pelas medidas, o conjunto de medidas provocará um aumento de 207% no valor do imposto global (considerando toda a cadeia), na avaliação do presidente da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), Luiz Carlos Moraes, em entrevista coletiva sobre o tema.  

Os Decretos 65.253/2020 e 65.453/2020 foram expedidos pelo Poder Executivo2 e a pergunta mais óbvia é a seguinte: um ato infralegal pode alterar a alíquota prevista em lei? Qualquer estudante de 1º ano no Curso de Direito responderia que não, mas o governo estadual foi mais esperto: em outubro de 2020 e algumas horas antes da edição dos decretos (foi tudo feito no mesmo dia!), editou-se uma lei (nº 17.293/2020, ato do Poder Legislativo) autorizando o governo (Poder Executivo) a reduzir os benefícios fiscais do ICMS. 

O “pulo do gato” (com o perdão do leitor a esta expressão tão pouco técnica, mas de fácil compreensão) dessa lei foi estabelecer que “para efeitos desta lei, equipara-se a benefício fiscal a alíquota fixada em patamar inferior a 18%”.

Com base nisso, a Secretaria da Fazenda alega que, atualmente, qualquer alíquota de ICMS inferior a 18% (alíquota padrão) é considerada como “benefício fiscal”, podendo ser revogada a qualquer tempo pelo “dono do cofre”, assinalando que tal regra estaria em consonância com o determinado pela Lei de Responsabilidade Fiscal. Ou seja, a alíquota de 12% já teria nascido com a “tarja” de incentivo fiscal, atraindo uma maior “maleabilidade” nas mãos do Poder Executivo. 

O raciocínio, contudo, não se sustenta, principalmente porque: 

  • A Lei de Responsabilidade Fiscal3 não diz o que a Secretaria da Fazenda alega: seu artigo 14, parágrafo 1º, apenas anuncia o que se considera como “renúncia fiscal”, conceito que abrange a “(...) alteração de alíquota ou modificação de base de cálculo, (...)”;  
  • Em sentido paralelo à Lei de Responsabilidade Fiscal, a Lei Complementar nº 24/75, recepcionada pela atual Constituição, exige que todos os benefícios fiscais devam ser concedidos ou revogados sempre mediante prévia autorização do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz);
  • O Convênio Confaz no qual a Lei nº 17.293/2020 pretensamente se baseia (nº 42/2016) é genérico e trata de outros temas, alheios a esta questão. 

Em resumo, há uma “cadeia viciada” de fundamentos: o Convênio Confaz nº 42/2016 (âmbito nacional) não dá suporte à Lei nº 17.293/2020 (âmbito do Poder Legislativo Estadual), que, contaminada na origem, espalha esse vício para os Decretos dela decorrentes (âmbito do Poder Executivo Estadual). 

É a denominada “teoria dos frutos da árvore envenenada”, criada na jurisprudência norte-americana, encampada em terras brasileiras e base para a rejeição das provas ilícitas (por exemplo), dentre muitas outras “aplicações”, inclusive para anular as condenações impostas ao ex-presidente Luis Inácio Lula da Silva4, recentemente. 

Outra questão é que a alíquota de 12% não foi fixada, pela lei que a introduziu, como um “benefício”: ela simplesmente existe ao lado da alíquota normal (18%), como exercício do princípio da seletividade, “(...) em função da essencialidade das mercadorias e dos serviços5, ao qual o ICMS se sujeita. 

Um terceiro aspecto questionável nesses decretos é que, salvo raríssimas exceções (que aqui não se aplicam), a autorização “genérica” da Lei nº 17.293/2020 não pode suprir a análise individual, pelo Poder Legislativo, de cada uma das mudanças, especialmente as que afetam aspectos nucleares da quantificação do tributo (base de cálculo e alíquota).

Tal exigência não surgiu “no bar da esquina”: está na nossa Constituição Federal, mais especificamente no artigo 150, inciso I, que vale a pena aqui transcrever: “Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I – instituir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça; (...)”

Tal exigência – acrescente-se – carrega um caráter legitimador à norma de tributação, se considerarmos que os seres humanos que exercem a atividade de “criar leis” foram escolhidos pelos cidadãos, pelo voto direto, consciente e presumivelmente lúcido. Tal legitimidade é jurídica e – mais importante de tudo – política, insubstituível pela vontade unilateral de um governante.  

Tal exigência – finalize-se – existe exatamente para que a tributação, assim como as acusações e condenações no âmbito penal, seja precedida da mais ampla e cuidadosa análise, tanto no aspecto formal (competência e legitimidade) quanto material (o conteúdo propriamente dito e sua compatibilidade com outras normas do sistema jurídico brasileiro). Essa tarefa prévia deveria garantir que as leis, uma vez editadas, pudessem orientar a conduta dos cidadãos/contribuintes com previsibilidade e estabilidade.

As leis e as decisões judiciais (que nada mais são do que “leis” para o caso concreto), mais do que tudo, PRECISAM refletir tais anseios, sob pena de se tornarem instrumentos a favor dos interesses, políticos ou econômicos, de plantão, passageiros por natureza. Segurança jurídica é isso, tão necessária quanto a vacina da COVID-19, pois ambas asseguram a sobrevivência de uma sociedade. 

1 Segundo o dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, representa uma “expressão que atenua uma ideia desagradável, grosseira ou indecente.”.

2 Na mesma data, houve outros dois Decretos (nºs 65.254/2020 e 65.255/2020) também com medidas que, em conjunto, representam aumento da carga tributária para diversos setores, inclusive o agronegócio. 

3 Lei Complementar nº 101, de 04.05.2000.

4 Sendo incompetente o Juízo de origem, todas as suas decisões tornam-se nulas. 

5 Constituição Federal, artigo 155, parágrafo 2º, inciso III.