A intervenção do Poder Judiciário nas relações contratuais no cenário pós-pandemia


A intervenção do Poder Judiciário nas relações contratuais no cenário pós-pandemia


Neste mês de março, a pandemia pela Covid-19 completa um ano no Brasil, deixando mais de dez milhões de pessoas contaminadas e já ultrapassa 250 mil mortes. Mesmo com a chegada da vacina, a solução não parece próxima, já que no último dia 27 de fevereiro o País bateu novo recorde da média móvel de morte, o que significa dizer que nos últimos sete dias morreram em média 1.180 pessoas por dia. 

Além da vacina, recém-chegada ao Brasil e ainda enfrentando o negacionismo e a falta de gestão governamental, adotaram-se medidas preventivas de combate ao vírus, especialmente o isolamento social e o uso de máscara. O objetivo é manter a distância entre as pessoas, quebrando o ciclo de transmissão do vírus e, ainda, prevenir o colapso do sistema de saúde. Recomenda-se, assim, que quem puder fique em casa, e saiam apenas os que precisam trabalhar e não têm a opção de trabalho remoto. 

Nesse cenário, durante boa parte do ano de 2020, o comércio e as indústrias tiveram que fechar as portas, o que parece estar se repetindo neste mês de março em alguns Estados brasileiros. 

Como não poderia ser diferente, muitos perderam o emprego e, segundo o IBGE, o Brasil bateu o recorde ao atingir 13 milhões e meio de desempregados. Em 2020, menos da metade da população em idade para trabalhar estava ocupada no País, onde o nível de ocupação foi de 49,4%. 

Apesar de todas as incertezas que rodeiam o fim da crise sanitária e econômica, especialistas preveem um crescimento do PIB brasileiro de 4,2% em 2021, mencionando até que a retomada da economia se dará em “V”, ou seja, após a queda do crescimento, o Brasil voltará ao nível observado no período de pré-pandemia. 

A recuperação, porém, depende de diversos fatores. Depende de a vacina chegar ao Brasil em maior quantidade, do seu alcance à população com a maior rapidez possível e de toda a gestão política e econômica que será empreendida pelos governos. Depende, também, da atuação dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, além, é claro, da sociedade.  

Por hora, o foco é o Poder Judiciário e o protagonismo que ele pode assumir no combate aos efeitos da pandemia. 

Imagine que a consequência do isolamento social foi, no primeiro momento, o fechamento das empresas e tudo o que isso significou: queda de faturamento, impossibilidade de cumprir contratos (de trabalho, de locação, de prestação de serviço, de fornecimento, e tantos outros), encerramento de atividade, ou mesmo readaptação do modelo de negócio, instalando-se uma inédita crise de insolvência. 

Tudo isso envolve mudanças de expectativas das partes envolvidas, que, muitas vezes, não são solucionadas de modo amigável e, então, chegam ao Judiciário, que tem a missão de entregar a solução do conflito. 

A solução, nesse caso, envolve a adoção de medidas necessárias à retomada das atividades e à reestruturação das empresas, que geram empregos, receitas e arrecadação, mas também o cumprimento das suas obrigações perante terceiros.  

A mediação, então, parece bem se encaixar nesse papel equilibrista, tanto que o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo criou, já no mês de abril de 2020, um projeto-piloto de mediação pré-processual para questões empresariais na Grande São Paulo, voltado para demandas de competência das varas de Direito Empresarial, com o objetivo de oportunizar o diálogo entre as partes na busca por um acordo antes do ajuizamento de uma ação.

Nem sempre, porém, as partes conseguem chegar a um consenso e daí a importância da intervenção do Poder Judiciário, especialmente no cenário de pós-pandemia. 

No início da crise no País, devido à paralisação das atividades empresariais, o Poder Judiciário proferiu uma série de decisões que permitiram a suspensão e/ou a revisão dos contratos, isentando os requerentes de custear serviços essenciais ou de pagar integralmente seus aluguéis, por exemplo.

Muitas dessas decisões, porém, foram reformadas pelos Tribunais, criando um movimento inverso. Os juízes passaram a negar os pedidos de revisão e suspensão de contratos, ao argumento de que ao Judiciário não é permitido intervir nas relações privadas, sob pena de violar o Princípio da Liberdade Econômica. 

“A virtude está no meio”

Com isso, quer-se dizer que a resposta do Judiciário não é tão simples e não pode se resumir a permitir ou negar a suspensão e/ou revisão do contrato, de modo superficial e momentâneo. 

Se é verdade que a pandemia é um acontecimento extraordinário e imprevisível e, por isso, reclama a aplicação do art. 478 do Código Civil, que admite a resolução do contrato, não significa dizer que a crise importou à execução contratual onerosidade excessiva para uma das partes. 

Tal conclusão, porém, exige do julgador uma análise casuística na busca de elementos que justifiquem a intervenção do Poder Judiciário. É preciso estar diante de uma situação excepcional e limitada (art. 421, parágrafo único e 421-A, III, do Código Civil), que importe em onerosidade excessiva de um lado e extrema vantagem do outro lado. Mas, mais do que isso, deve-se estar atento à função social do contrato, que perpassa os interesses individuais dos contratantes (art. 421, Código Civil). 

Feito esse percurso, e concluído que a melhor solução é a revisão e/ou suspensão do contrato,  acredita-se não estar violada a Lei da Liberdade Econômica (Lei nº 13.874, de 20 de setembro de 2019) que, embora preveja a intervenção mínima nas relações contratuais, reconhece a revisão como medida excepcional. Quase nada é mais excepcional do que uma pandemia!

Em pesquisa a decisões recentes, portanto, o que se conclui é que a maioria dos Tribunais está reconhecendo a intervenção do Poder Judiciário nas relações privadas a fim de reequilibrar os contratos em circunstâncias imprevisíveis que tenham tornado a obrigação excessivamente onerosa ou vantajosa para uma das partes. 

É o caso dos Tribunais de Justiça do Estado de Minas Gerais; Ceará; Rio de Janeiro; São Paulo; Paraná e Santa Catarina. Nestes, é possível se deparar com decisões permitindo ao locatário que teve seu estabelecimento fechado redução do aluguel pela metade; ou suspendendo o pagamento das parcelas de contrato de financiamento pelo prazo de seis meses; ou, ainda, reduzindo parcialmente as mensalidades devidas em razão de contrato de venda e compra de quotas sociais de sociedade empresária. 

Nas razões de decidir, diz-se que compete ao Poder Judiciário intervir nas relações privadas a fim de reequilibrar os contratos quando circunstâncias imprevisíveis tornem as obrigações desproporcionalmente onerosas ou vantajosas para apenas uma das partes, possibilitando que seja restabelecido o equilíbrio e a paridade entre os contratantes, conforme prevê o próprio contrato. 

O raciocínio é, e deve ser, exatamente esse. No País em que a pandemia agravou ainda mais a instabilidade política, econômica e social, é preciso buscar soluções possíveis, que atendam interesses de ambas as partes, ainda que não seja na sua integralidade. 

Pensando de uma maneira simplista, é melhor que todos ganhem, ainda que pouco, ainda que menos do que gostariam, do que não ganhem nada. Nesse momento, tal postura milita em favor da liberdade econômica, permitindo a sobrevivência e o soerguimento dos negócios. Contrário a isso é fomentar a crise de insolvência.