Saneamento: padronização legal e regulatória


Saneamento: padronização legal e regulatória


Um dos principais elementos do novo marco regulatório de saneamento – visto de maneira positiva por quase todos os prestadores, públicos e privados – é a atribuição, à Agência Nacional das Águas (“ANA”), da competência de expedir normas de referência com intuito de reduzir a disparidade regulatória resultante da existência de dezenas de agências reguladoras em todo o Brasil. Sobre o papel da ANA no novo marco do saneamento, recomendamos a leitura de nosso artigo “ANA: Reguladora das Reguladoras”.

Para além do papel fortalecido da ANA, o Governo Federal criou uma rede de incentivos à concertação e alinhamento dos municípios e estados ao novo marco. Por exemplo:

1. Criação do Comitê Interministerial de Saneamento Básico, com a finalidade de assegurar a implementação da política federal de saneamento básico e de articular a atuação dos órgãos e das entidades federais na alocação de recursos financeiros em ações de saneamento básico;

2. Apoio técnico e financeiro da União à adaptação dos serviços públicos de saneamento básico às disposições da lei;

3. Regras para a aplicação de recursos não onerosos da União, com vistas à priorização de investimentos na prestação de serviços regionalizada, por meio de blocos regionais, quando a sua sustentabilidade econômico-financeira não for possível apenas com recursos oriundos de tarifas ou taxas;

4. Concessão de benefícios ou incentivos orçamentários, fiscais ou creditícios pela União como contrapartida ao alcance de metas de desempenho operacional;

5. Observância das normas de referência para a regulação da prestação dos serviços públicos de saneamento básico expedidas pela ANA será condição para alocação de recursos públicos federais e os financiamentos com recursos da União ou com recursos geridos ou operados por órgãos ou entidades da União; etc.

Na mesma linha, merece elogios o intuito de padronizar os contratos celebrados entre os titulares do serviço e os prestadores, sobretudo considerando o esperado boom de investimentos no setor decorrente da aprovação do novo marco, tanto em razão da segurança jurídica conferida quanto da arrojada – e mais do que necessária – meta para a universalização dos serviços até 31 de dezembro de 2033.

É importante reconhecer que essa segunda atribuição apresenta relevo ainda maior quando se considera a multiplicidade de leis que regem um único contrato e que, frequentemente, não dialogam entre si, produzindo resultados contraditórios que arriscam minar um dos principais motes do novo marco, a já mencionada segurança jurídica.

Um dos modelos mais prováveis para as rodadas de licitações que virão é o das parcerias público-privadas promovidas por empresas públicas ou sociedades de economia-mista estaduais, que atualmente sejam titulares de contratos de concessão ou de programa. A modelagem desse tipo de projeto deverá levar em conta, ao menos, 10 (dez) leis federais distintas, incluindo a Lei Geral das Concessões (Lei nº 8.987/1995), a Lei das PPPs (Lei nº 11.079/2004), a Lei das Estatais (Lei nº 13.303/2016, além da Lei do Saneamento Básico (Lei nº 11.445/2007), principal foco de alteração do novo marco legal, e ainda leis locais sobre licitações, concessões e PPPs. Ainda que falemos das “concessões comuns”, este quadro muda pouco. Basicamente, exclui-se a Lei das PPPs.

Além da complexidade inerente à multiplicidade de normas, ressalta-se que o legislador nem sempre trabalha com os mesmos conceitos e premissas ao elaborar normas conexas. E há, ainda, o intervalo temporal entre as normas. Não é raro, nesse ínterim, a sociedade ter alterados seus costumes, dinâmicas ou percepções.

Em um exemplo de menor relevância, o novo marco alterou – de forma singela – dispositivo sobre a possibilidade de interrupção da prestação dos serviços em decorrência do inadimplemento do usuário. Ocorre que esse mesmo tema também foi tratado em norma aprovada em junho de 2020, estabelecendo que a interrupção não pode se dar nos finais de semana, feriados ou em suas vésperas.

Em maior grau, todavia, vale focar na Lei das Estatais. Editada para preencher a lacuna existente desde 1988 com relação à regulamentação do art. 173, §1º, da Constituição Federal, a lei cuidou de forma mais minuciosa das normas internas de governança das empresas públicas e sociedades de economia mista e de suas subsidiárias, deixando o tema das licitações e contratações públicas em segundo plano. Em decorrência disso, apesar das inovações trazidas, é manifesto que a norma se preocupou em endereçar as contratações rotineiras das estatais, anteriormente regidas pela Lei de Licitações (Lei nº 8.666/93), sem se atentar para a possibilidade de que essas entidades poderiam assumir papel de destaque na contratação de concessões e parcerias público-privadas.

Cabe rememorar que o marco do saneamento é apenas uma das frentes em que o Governo Federal tem atuado para desburocratizar o setor público e fomentar investimentos. Outros projetos de lei dignos de nota são a nova lei de licitações (PL 1.292/95) e o novo marco legal das concessões e parcerias público-privadas (PL 7.063/17), ambos com avanços substanciais em 2019. É de suma importância que a redação final desses projetos leve em consideração os preceitos e conceitos utilizados no novo marco do saneamento, de forma a evitar a manutenção da atual colcha de retalhos normativa que deixa gestores públicos receosos de tomar decisões assertivas e inovadoras, sujeita projetos a atrasos e interrupções decorrentes de questionamentos dos órgãos de controle e/ou do Poder Judiciário e, em última análise, frustra as expectativas da população quanto à prestação do serviço adequado e arrefece o interesse dos investidores no setor.

Espera-se que a padronização regulatória e contratual seja um catalizador para a maior e mais importante padronização, que é a universalização dos serviços. Padronizar a oferta de acesso a água tratada e a destinação adequada do esgotamento sanitário é a meta.