Série Saneamento Básico | ANA: Reguladora das reguladoras


Série Saneamento Básico | ANA: Reguladora das reguladoras


O novo marco legal do saneamento confronta diretamente a fragmentação regulatória no setor, em grande parte responsável por causar insegurança jurídica nas relações contratuais que acobertam a delegação da prestação dos serviços de saneamento.

Essa instabilidade poderá ser mitigada com as novas atribuições outorgadas à ANA no Novo Marco Regulatório? Eis a questão a ser respondida.

No quadro atual, cada titular dos serviços de saneamento pode estabelecer suas próprias regras para os operadores daquelas localidades. Esta multiplicidade de entes reguladores traz uma elevada percepção de riscos regulatórios e insegurança jurídica. Ademais, torna a regulação existente desconexa, por vezes contraditória, e ocasiona maior dificuldade de acesso para novos atores nesse mercado. Também não são todos os municípios que possuem o preparo técnico e institucional para elaborar normas adequadas e fiscalizá-las, afetando negativamente a entrega aos cidadãos e o nível dos investimentos.

A solução encontrada para este problema estrutural foi a “nacionalização” da regulação. Na verdade, não se trata de alteração das competências para regular, mas sim de uma convergência regulatória coordenada pela Agência Nacional de Águas (ANA). Ela editará normas de referência para a regulação dos serviços públicos de saneamento básico por seus titulares e respectivas entidades reguladoras. O intuito é a uniformização da regulação, ao menos em relação às regras gerais, deixando às agências reguladoras locais as questões específicas ou o detalhamento das “normas gerais”.

Ao levar a coordenação da regulação macro do setor para a ANA, busca-se normas elaboradas de forma transparente e técnica, com previsibilidade, com agenda regulatória, mas sem negligenciar as especificidades e necessidades locais na prestação dos serviços. Também busca-se privilegiar a integração do saneamento com o tema das bacias hidrográficas, competência já tradicional da agência. Cria-se um verdadeiro norte para a regulação do setor, de forma integrada e com visão holística.

Como objetivos da regulação para o setor, o novo marco elenca a livre concorrência, competitividade e sustentabilidade econômica dos serviços, lado-a-lado com a prestação adequada, universalização e a cooperação federativa. 

Caberá à ANA dispor sobre (i) tarifas, (ii) padronização de contratos para prestação dos serviços, (iii) metas de universalização, (iv) metodologia de cálculo de indenizações, (v) governança das entidades reguladoras, (vi) qualidade e eficiência dos serviços, entre outros temas.

Essas normas de referência serão posteriormente complementadas, preenchidas e aplicadas pelos entes reguladores locais de forma a moldá-las à sua realidade. A posição de poder concedente em contratos e a fiscalização dos serviços, assim, continua sendo atribuída aos entes locais, mas agora com a devida observância das normas de referência nacionais, o que parece ser a forma mais adequada de tratar o tema e respeitar a divisão constitucional de competências. 

A legislação não prevê, porém, penalidades para as entidades reguladoras que não adotarem as normas de referência, nem prevê nulidade para as regras que contrariarem essas normas. Como mecanismo de incentivo à adoção das normas de referência, o novo marco estabeleceu que o acesso a recursos ou financiamentos federais para o setor será condicionado à adoção dessas normas nacionais. Para tanto, a ANA publicará lista de entidades reguladoras que atendem às normas de referência, devendo cada entidade reguladora periodicamente comprovar que adota e aplica tais normas.

O novo marco também se cerca de previsões para que a regulação siga as melhores práticas em busca de qualidade, independência, tecnicidade e transparência. Estabelece que as normas de referência deverão ser elaboradas mediante consultas e audiências públicas e com a realização de Análise de Impacto Regulatório (AIR). Tudo desempenhado com independência decisória e autonomia administrativa, bem como afeitas à transparência, tecnicidade, celeridade e objetividade das suas decisões. 

Embora não seja garantia absoluta, a condução da regulação por entidades independentes (ao estilo das agências reguladoras federais) tende a reduzir o risco político nas concessões e evitar motivações indevidas (ex.: eleitorais) na gestão dos contratos (ex.: revisão das tarifas). Isso é de especial cuidado em um setor com tanta carência e impacto social, cujos resultados na qualidade de vida das pessoas são evidentes, mas que dependem de muito planejamento e sustentabilidade financeira, inadmitida a manipulação por outros interesses momentâneos.

Acreditamos, porém, que nem tudo será tranquilo. Existe a possibilidade de o Partido dos Trabalhadores ajuizar nova ação direta de inconstitucionalidade, à semelhança do que fez na ADI 6128 em relação à MP 868/18, quando questionou a reestruturação da ANA, “para lhe conferir competências novas e complexas, além de centralizar o planejamento do saneamento brasileiro em prejuízo das autonomias locais”1. Frise-se que citamos o Partido dos Trabalhadores não por qualquer razão ideológica, mas porque foi a única bancada no Senado a votar em bloco contra o novo marco. Todas as demais bancadas foram unânimes ou majoritariamente a favor.

O novo marco do saneamento, portanto, traz sólida proposta de mudança estrutural da regulação do setor no país. A “nacionalização” de regras gerais, referenciais, a serem complementadas pelos entes locais trará maior segurança jurídica e maior qualidade das normas regulatórias. Ganham os poderes públicos, os investidores e, principalmente, os usuários. A ANA será a reguladora das reguladoras.

1 https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=410888