Por Rafaela Dias Maciel Duarte e Pedro Henrique de Moraes Lee
A Lei nº 14.193/2021 (“Lei da SAF”) abriu portas para que diversos mecanismos relacionados à uma avançada e coesa gestão corporativa se consolidem e se tornem uma realidade nas decisões econômicas e administrativas de um time de futebol. A figura da Sociedade Anônima do Futebol (“SAF”) no contexto socioeconômico atual mostra a importância de uma governança corporativa compatível com um mercado bilionário e com a paixão de gerações de brasileiros, que é o futebol.
Mas o que é governança corporativa? Para o Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (“IBGC”), “governança corporativa é o sistema pelo qual as empresas e demais organizações são dirigidas, monitoradas e incentivadas, envolvendo os relacionamentos entre sócios, conselho de administração, diretoria, órgãos de fiscalização e controle e demais partes interessadas”1.
Na sequência, outro questionamento essencial é o seguinte: Mas por que governança é importante? A relevância da governança parte da premissa de que “um bom sistema de governança ajuda a fortalecer as empresas, reforça competências para enfrentar novos níveis de complexidade, amplia as bases estratégicas da criação de valor, é fator de harmonização de interesses e, ao contribuir para que os resultados corporativos se tornem menos voláteis, aumenta a confiança dos investidores, fortalece o mercado de capitais e é fator coadjuvante do crescimento econômico”2.
Diante dessas respostas, entendemos que o casamento entre governança corporativa e SAF não poderia ser mais acertado, tendo caído como uma luva na conjuntura do futebol brasileiro na qual foi inserida a Lei da SAF. Nesse contexto, a Lei da SAF converte preceitos básicos de governança em regras objetivas, “alinhando interesses com a finalidade de preservar e otimizar o valor econômico de longo prazo da organização, facilitando seu acesso a recursos e contribuindo para a qualidade da gestão da organização, sua longevidade e o bem comum”3. Sendo assim, além dos mecanismos de governança corporativa já previstos na Lei nº 6.404/76 (“LSA”) para as companhias em geral (considerada sua aplicação subsidiária), as SAFs deverão observar mecanismos adicionais de governança, conforme veremos a seguir.
Conselhos de Administração e Fiscal Permanentes
O artigo 5º da Lei da SAF é categórico sobre o tema: os conselhos de administração e fiscal de uma SAF são órgãos obrigatórios e permanentes. Em linhas gerais, o conselho de administração é um órgão colegiado, eleito pelos acionistas e que tem, dentre outras atribuições, a definição do direcionamento estratégico da companhia e a função de intermediar o relacionamento entre acionistas e diretoria, ou seja, entre propriedade e gestão, sempre buscando atender aos melhores interesses da companhia4. Já o conselho fiscal é um órgão que possui a função de controlar e fiscalizar os atos dos administradores da companhia5, sendo, portanto, fundamental para garantir aos acionistas e stakeholders maior segurança quanto à gestão da companhia. A existência destes dois órgãos em uma estrutura de gestão demonstra níveis de governança corporativa elevados, o que influencia na tomada de decisões, nos controles internos, e, potencialmente, no valor da companhia perante o mercado e demais investidores.
Como a existência e permanência dos dois órgãos é uma obrigatoriedade na SAF, conclui-se que o legislador se preocupou em exigir para esta estrutura societária um maior grau de governança e confiabilidade, inspirando mais segurança para os stakeholders. Tal peculiaridade se assemelha com a obrigatoriedade de existência de conselhos de administração em companhias abertas, em relação às quais há uma preocupação extra, já que lidam com a poupança popular.
Impedimentos Adicionais Para a Eleição/Remuneração de Membros da Administração
Tendo como subsidiário o regramento das sociedades anônimas, muitos dos dispositivos da LSA são aplicáveis para uma SAF, dentre os quais destacamos os requisitos e impedimentos para eleição dos membros da administração (diretoria e conselho de administração) e do conselho fiscal.
Os artigos 147 e 162 da Lei das S.A. preveem requisitos e/ou condições de inelegibilidade de uma pessoa para figurar como administrador (membro da diretoria ou do conselho de administração) ou como conselheiro fiscal de uma companhia, respectivamente. Já a Lei da SAF cumula tais disposições com normas específicas para as sociedades anônimas do futebol, também aplicáveis aos membros do conselho fiscal, conforme destacado abaixo.
Lei da SAF |
Membro de qualquer órgão de administração, deliberação ou fiscalização, bem como de órgão executivo, de: (i) outra SAF; (ii) clube ou pessoa jurídica original, salvo daquele que deu origem ou constituiu a SAF; (iii) entidade de administração (FIFA, CBF, FMF, etc.); Atleta profissional de futebol com contrato de trabalho desportivo vigente; Treinador de futebol em atividade com contrato celebrado com clube, pessoa jurídica original ou Sociedade Anônima do Futebol; e Arbitro de futebol em atividade. |
É válido ressaltar, ainda, que o estatuto social da SAF pode prever outros requisitos adicionais necessários para a eleição dos membros da administração. Além disso, o §4º, do artigo 5º, da Lei da SAF prevê o impedimento na eleição para o conselho fiscal ou diretoria da SAF de empregado ou membro de qualquer órgão de administração, deliberação ou fiscalização do clube ou pessoa jurídica original, enquanto permanecerem como acionista da SAF.
Tal impedimento para eleição não se estende para os membros do conselho de administração da SAF, sendo, contudo, vedada a remuneração para aqueles conselheiros que sejam associados e, cumulativamente, integrem órgão de administração, deliberação ou fiscalização do clube ou da pessoa jurídica original, enquanto permanecerem como acionista da SAF.
No mesmo sentido, importante observar também que os diretores da SAF devem ter dedicação exclusiva à sua administração, nos termos da Lei da SAF e do estatuto social.
Transparência, dever de informação e vedações
Dois dos principais princípios das melhores práticas de governança corporativa, também incorporados como pilares essenciais da SAF, são a transparência e o dever de informar. Nesse sentido e conforme disposto no artigo 8 da Lei da SAF, devem ser publicados e atualizados mensalmente no site da SAF: (a) o estatuto e as atas de assembleia geral; (b) a composição e a biografia dos membros dos conselhos de administração e fiscal e da diretoria; (c) o relatório da administração sobre os negócios da SAF, incluindo o Programa de Desenvolvimento Educacional e Social (PDE), que inclusive é tema de outro artigo deste Especial. Além dessas obrigações, vale lembrar que o clube ou pessoa jurídica original que estiverem em recuperação judicial, extrajudicial ou no RCE devem manter em seus próprios sites a relação ordenada de seus credores. Caso as obrigações de divulgação da SAF ou do clube sejam descumpridas, seus respectivos administradores respondem pessoalmente pela inobservância.
Além da transparência com relação às questões ora mencionadas, a informação do quadro acionário também ganha um importante espaço na SAF. Isso porque a Lei da SAF prevê que a Confederação Brasileira de Futebol – CBF e a SAF sejam obrigatoriamente informadas, pela pessoa jurídica com participação igual ou superior a 5% do capital social da SAF, de quem é a pessoa física caracterizada como beneficiária final da acionista direta (pessoa jurídica) ou que, direta ou indiretamente, exerça seu controle.
A relevância desta informação se justifica também pela vedação que a Lei da SAF trouxe de que o acionista controlador, seja individual ou integrante de acordo do controle, não pode ter participação, direta ou indireta, em outra SAF. Além disso, no caso de acionistas não controladores, mas com 10% ou mais do capital votante da SAF, esse poderá participar de outra SAF, no entanto, sem poder de voto nas assembleias gerais e com vedação para participação na administração, ainda que por pessoa indicada. Tal impedimento busca evitar que a mesma pessoa ou grupo de pessoas tenham poderes para dirigir as atividades sociais e tomar decisões em mais de uma SAF, evitando assim conflitos de interesse e até mesmo qualquer influência indevida no desempenho dos times. Nos parece aqui, que essas vedações devem ser conjugadas, no que couber, com as vedações existentes no artigo 27-A da Lei nº 9.615//1998 (“Lei Pelé”).
Ações Ordinárias Classe A
No caso de cisão do departamento de futebol do clube ou pessoa jurídica original e transferência do seu patrimônio relacionado à atividade do futebol para a SAF, esta deve obrigatoriamente emitir ações ordinárias de classe A para subscrição pelo clube ou pessoa jurídica original que a constituiu, nos termos do inciso II e do §2º, inciso VII, ambos do artigo 2º da Lei da SAF6.
Tal classe de ações, confere ao clube ou pessoa jurídica original o direito de, enquanto mantiverem ao menos 10% do capital social votante ou do capital social total da SAF o voto afirmativo nas matérias relacionadas à (a) transferência ou oneração de bem imobiliário ou de direito de propriedade intelectual conferido pelo clube ou pela pessoa jurídica original; (b) reorganização societária; (c) dissolução, liquidação ou extinção da SAF; e (d) participação em competição desportiva organizada em ligas regionais ou nacionais. Ou seja, na prática, os demais acionistas da SAF não podem aprovar tais matérias sem a anuência do clube ou pessoa jurídica original, ainda que tenham o controle da SAF.
As ações ordinárias classe A têm ainda, independente de percentual detido pelo clube ou pessoa jurídica original que constituiu a SAF, o poder de veto na (a) alteração de denominação; (b) modificação dos signos identificativos da equipe de futebol profissional, incluídos símbolo, brasão, marca, alcunha, hino e cores; (c) mudança da sede para outro município; e (d) alteração dos direitos conferidos para referida classe de ações. Lembrando que o estatuto social da SAF pode conferir direitos adicionais a tais ações.
Especificamente em relação à criação das ações ordinárias classe A e dos direitos e vetos que lhe são atribuídos, observa-se a importância da existência de um estatuto normativo próprio, que é a Lei da SAF, ainda que esta conte com a subsidiariedade da LSA, um outro robusto arcabouço normativo. Referidas ações são criadas para resguardar o direito do clube de participar de certas decisões estratégicas e para atender uma especificidade do desporto, que remete à paixão dos torcedores e a importância de determinados elementos, como aqueles signos identificativos da equipe de futebol e inerentes à história do clube. Isso porque mesmo enquanto atividade econômica, "o desporto apresenta singularidades ‘que o ordenamento desportivo não pode ignorar nem deve menosprezar"7.
Após termos abordado alguns dos mecanismos de governança instituídos para as SAFs, destacamos que os desafios apresentados pelo mercado do futebol são vários e, conforme discutido, a Lei da SAF trouxe uma estrutura mais robusta de boas práticas, que pode auxiliar no ganho de confiança pelos acionistas, investidores, colaboradores e demais stakeholders. No entanto, necessário pontuar que tais mecanismos não geram resultados mágicos, já “que não se trata de um recurso que, isoladamente, evitará sobre-e-subprecificações, dilapidação de patrimônios pessoais e coletivos, destruição de valor e movimentos históricos de ascensão e queda de grandes empreendimentos. Eventos deste tipo devem-se também a fatores externos às corporações e a descontinuidades de toda ordem, desde mudanças em estruturas de concorrência, até dissidências tecnológicas e rupturas comportamentais. Mas uma boa governança certamente torna os negócios mais seguros e menos expostos a riscos externos ou de gestão”8 .
Nesse sentido, é necessária a consciência de que a criação de uma SAF não basta para que todos os problemas de gestão e governança eventualmente existentes desapareçam como um passe de mágica. Aqui, importante também fazermos um contraponto e lembrarmos também das boas gestões existentes em determinadas associações – estrutura jurídica adotada pela grande parte dos times de futebol até então, indicando que o modelo por si só não é inviável. Além disso, ainda que a LSA e a Lei da SAF já instituam um conjunto de características mínimas que cada espécie societária deve seguir, nada impede que o estatuto social de uma associação seja tão completo e refinado, em termos de segurança corporativa, quanto um estatuto ou contrato social de uma empresa9.
Contudo, nos parece que a mensagem do legislador foi clara: a SAF chega como uma grande oportunidade para que os clubes adotem melhores e mais modernas práticas de governança corporativa; não só aquelas práticas obrigatórias já determinas pela Lei da SAF, mas também aquelas que podem ser voluntariamente implementadas pelos acionistas e pela administração, elevando o jogo para outro nível. Sendo que a adoção dessas práticas deve ocorrer de forma bem estruturada, para que as SAFs possam passar por essa transição de forma segura e estar 100% em compliance com as regras do jogo.
Bibliografia
1 IBGC. Código das Melhores Práticas de Governança Corporativa. 5ª Ed. São Paulo. 2018. p.20.
2 ANDRADE, Adriana. Governança Corporativa: fundamentos, desenvolvimento e tendências/Adriana Andrade, José Paschoal Rossetti. São Paulo: Atlas, 2004. p. 16.
3 IBGC. Código das Melhores Práticas de Governança Corporativa. 5ª Ed. São Paulo. 2018. p.20.
4 Instituto Brasileiro de Governança Corporativa. Código das Boas Práticas para Reuniões do Conselho de Administração. / Instituto Brasileiro de Governança Corporativa. São Paulo, SP: IBGC, 2010
5 CARVALHOSA, Modesto. Comentários à lei de sociedades anônimas, 3º volume: artigos 138 a 205 – 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 508.
6 Convidamos vocês para conferir o artigo anterior de nosso Especial - “O Juiz apita, começa o jogo e agora? Como a SAF pode ser constituída?” e relembrar a polêmica existente sobre referidos dispositivos legais.
7 MOTTA, Luciano. O mito do clube-empre$a. Sporto. 1ª edição. 2020. p. 34.
8 ANDRADE, Adriana. Governança Corporativa: fundamentos, desenvolvimento e tendências/Adriana Andrade, José Paschoal Rossetti. São Paulo: Atlas, 2004. p. 16.
9 MOTTA, Luciano. O mito do clube-empre$a. Sporto. 1ª edição. 2020. p. 296.