Pode o credor do clube se tornar acionista da SAF?


Pode o credor do clube se tornar acionista da SAF?


A Sociedade Anônima do Futebol (“SAF”) foi introduzida pela Lei 14.193/21 (“Lei da SAF”) e vem sendo recebida com grande otimismo pelos clubes de futebol do país. Sendo que, sem dúvidas, um dos principais fatores para tanto é a possibilidade de se tomar um fôlego ou, até mesmo, de se superar as crescentes dívidas que assolam o esporte.

Dentre as formas de constituição da SAF, o modelo mais utilizado até então envolve a criação de uma nova pessoa jurídica, a SAF, distinta do clube ou da pessoa jurídica original. Nesse sentido, surgem discussões acaloradas sobre o tratamento dos credores dos clubes, assim como sobre a alocação de responsabilidade entre o clube/pessoa jurídica original e a SAF, as quais foram abordadas em outros artigos deste Especial SAF. 

Fato é que a Lei da SAF prevê mais de um mecanismo para pagamento dos credores do clube. Dentre outras possibilidades previstas pela lei, o artigo 20 da Lei da SAF responde à pergunta apresentada no título deste artigo, ao prever que o credor titular do crédito poderá ter a opção de converter, no todo ou em parte, a dívida que detinha contra o clube ou pessoa jurídica original em ações da SAF ou em títulos emitidos por ela, desde que previsto em estatuto.

Ao tratar deste assunto, é imprescindível estabelecer que não existe confusão entre o clube ou pessoa jurídica devedora original com a própria SAF, as quais são entidades distintas. Diz-se isso porque para interpretar referido artigo é importante partir da premissa de que o credor é titular de crédito perante o clube ou pessoa jurídica original, o qual não é transferido para a SAF automaticamente nos casos de constituição via criação de uma nova pessoa jurídica, conforme artigos 9 e 10 da Lei da SAF.  

Portanto, a Lei prevê que este credor, que detém um crédito contra o clube ou a pessoa jurídica original, poderá converter referido crédito em participação na nova sociedade – a SAF. Em termos práticos, a disposição constituiu uma relação entre três partes diferentes sem, no entanto, confundir a SAF com a figura de devedora do credor. Para se efetuar a conversão nos termos da Lei da SAF, o credor precisaria integralizar o crédito que detém contra o clube ou a pessoa jurídica original no capital social da SAF. Nessa operação, a dívida do clube ou da pessoa jurídica original, por sua vez, não deixaria de existir, ocorre que a credora passa a ser a SAF, ao ter incorporado tal crédito ao seu patrimônio via integralização de capital pelo credor original. 

Justamente por criar esta tríade que envolve figura diversa do devedor e do credor, a possibilidade de conversão da dívida em participação depende de alguns aspectos relevantes, sendo o primeiro deles a necessidade de previsão estatutária na SAF. Neste ponto, o esclarecimento necessário é que apenas a previsão estatutária não implica na conversão automática da dívida, e nem obriga a SAF a operar a conversão, servindo apenas como uma opção eventual para o credor, a qual será oportunamente deliberada pelos acionistas da SAF. Nesse sentido, nem mesmo a própria previsão estatutária da conversão é obrigatória, não sendo uma exigência para a constituição da SAF.

Caso esta possibilidade de conversão não esteja prevista no estatuto desde a constituição da SAF, em referência à Lei nº 6.404/76 (“Lei das S.A.”) – aplicável subsidiariamente - é possível promover a reforma do estatuto, a qual deverá ser deliberada em assembleia geral extraordinária, com a observância dos procedimentos indicados na Lei e no estatuto social vigente da SAF1

Existente a previsão estatutária, passamos ao segundo ponto em foco: a faculdade do credor e a vontade dos acionistas da SAF. Em relação à vontade do credor, a disposição legislativa é clara e literal ao usar a palavra “facultada”, não havendo margem para dúvida neste ponto. O que importa é entender que caso tenha esse interesse, o credor deverá negociar tal conversão com a SAF e seus acionistas, para que, em assembleia geral da SAF, esses possam deliberar se aceitam ou não o ingresso do credor como acionista, acarretando uma diluição da participação dos acionistas da SAF.

Sendo assim, o aumento de capital decorrente da conversão não poderá acontecer sem que os acionistas da SAF sejam devidamente convocados e deliberem favoravelmente a tal conversão, respeitando as regras e critérios previstos na Lei das S.A. Afinal, ninguém pode ser compelido a associar-se a outro, nos termos da Constituição Federal2

E qual o poder do clube ou da pessoa jurídica original em relação à conversão? Retomando o conceito da relação entre três partes distintas, dentre elas, o clube/pessoa jurídica original, na condição de devedor, é a parte que tem menos meios de resistência para a operação. Isto porque, caso o credor e a SAF (mediante deliberação de seus acionistas) entendam que a conversão é o melhor caminho e adotem as providências para tal, caberá ao clube acatar a decisão. Esse entendimento é construído a partir de uma interpretação conjunta da Lei da SAF e das disposições de cessão de crédito previstas no Código Civil Brasileiro. Apesar disso, vale dizer que, também nos termos do Código Civil Brasileiro, a depender da natureza da obrigação e da convenção com o devedor, podem existir restrições para a cessão do crédito.  

Lembra-se também que no contexto acima mencionado, o clube ou a pessoa jurídica original estão sendo entendidos como devedores da obrigação. Ocorre que, na maioria das vezes, ainda que em um momento inicial, o clube ou a pessoa jurídica original seriam também os acionistas majoritários da SAF, tendo poder de influenciar nas decisões a serem tomadas.  

Por outro lado, destaca-se que nos casos em que o clube ou pessoa jurídica original não forem os detentores da maioria da participação societária na SAF, a necessidade de aprovação pelos acionistas majoritários da SAF na conversão do crédito de terceiro em ações desta sociedade certamente será um fator determinante para a ocorrência ou não do fato na prática. Tais acionistas devem considerar que, nesse modelo, a diluição de sua participação estaria vinculada a um incremento patrimonial da SAF dependente da capacidade do clube de honrar com o pagamento de tal dívida. 

Sendo assim, como já mencionado, esse mecanismo depende fortemente da interação e negociação entre as partes envolvidas na criação de uma SAF, incluindo, até mesmo, eventual investidor que possa estar participando na constituição da nova sociedade. Nessa análise devem ser considerados fatores corriqueiros na relação entre acionistas, como a elaboração de um acordo de acionistas, regulação dos direitos de voto, dentre outros. Destaca-se, inclusive, que mesmo que a parcela de conversão do credor não seja suficiente para alteração de controle da SAF, a conversão pode representar uma mudança no cenário de governança, já que os direitos e interesses dos acionistas minoritários também deverão ser levados em consideração. Por se tratar de uma SAF, não se pode esquecer, ainda, das ações ordinárias classe A, que representam direitos adicionais para o clube ou pessoa jurídica original, aos quais são garantidos votos afirmativos em determinadas matérias, a depender do percentual de ações ordinárias classe A por eles detidas. 

Além da modalidade de conversão prevista expressamente no artigo 20 da Lei da SAF, não se deve descartar a avaliação de outras modalidades de conversão de dívida em capital social da SAF, nos termos da legislação societária, como (i) a integralização de capital da SAF pelo clube ou pessoa jurídica original com versão de um acervo líquido positivo, no qual estaria inserido a dívida do clube ou da pessoa jurídica original, seguida da conversão da dívida em participação societária; ou (ii) o pagamento de dívidas pelo clube ou pela pessoa jurídica original mediante dação em pagamento com as ações que esses detenham na SAF. 

Na primeira hipótese, vale destacar que mediante transferência de uma dívida para a SAF, o credor deixaria de ser credor do clube e passaria a ser um credor da própria SAF, o que viabilizaria, em um segundo momento, a conversão desse crédito em capital social da SAF. Ou seja, a conversão aqui teria como consequência o recebimento da participação societária da sociedade que viria a ser a devedora, extinguindo a dívida do clube por completo. Tal fato também ocorre na segunda hipótese de dação em pagamento, quando o clube ou pessoa jurídica reduziriam sua participação societária na SAF em contrapartida ao pagamento da dívida com o credor.  

Em relação a tais hipóteses adicionais, destaca-se que para implementá-las também seria necessário um alinhamento de interesses entre devedor e credor, os quais dependeriam também do aval de um eventual investidor, ao qual podem ter sido salvaguardados certos direitos em acordo de acionistas, como, por exemplo, o direito de preferência na transferência de participação societária. 

Em todos os casos, contudo, é importante destacar que o credor do clube, que passar à condição de acionista da SAF, não poderá subscrever ações classe A, que carregam direitos inerentes à pessoa do constituinte enquanto clube ou pessoa jurídica original. Portanto, a conversão de crédito detido por terceiro, em capital da SAF, somente ocorrerá mediante a emissão de ações ordinárias ou preferenciais, nos termos da lei 6.404/76 – aplicada subsidiariamente. 

Além disso, faz-se um aparte para ressaltar que é necessário ter cautela para analisar se os movimentos de conversão eventualmente almejados não poderiam ser questionados diante do contexto global dos credores do clube ou da pessoa jurídica original, até mesmo considerando os demais mecanismos de pagamento porventura implementados ou desejados.  

Em conclusão, ao trazer a proposta de conversão dos débitos em participação societária da SAF, nos termos do art. 20, ainda que (corretamente) dependente de profundo alinhamento de vontade das partes em cada caso, a Lei da SAF prevê mais uma forma de solução para as dívidas dos clubes, provando seu propósito de soerguer o desenvolvimento da atividade futebolística no Brasil. Além disso, entendemos que, se utilizada, tal conversão tende a ser mais atrativa em relação a credores que concentrem dívidas relevantes, na medida em que a conversão impacta diretamente na composição e gestão da base acionária da SAF3

Bibliografia

1 CASTRO, R. M., A conversão de créditos contra o clube em capital da SAF. Disponível em https://www.migalhas.com.br/coluna/meio-de-campo/352732/a-conversao-de-creditos-contra-o-clube-em-capital-da-saf. Acesso em 17ago2022.

2 CASTRO, R. M. et al. Comentários à Lei da Sociedade Anônima do Futebol Lei nº 14.193/2021. São Paulo: Quartier Latin do Brasil, 2021. p. 217.

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