Série Saneamento Básico | Análise da ADI interposta pelo PDT


Série Saneamento Básico | Análise da ADI interposta pelo PDT


O Partido Democrático Trabalhista – PDT ajuizou a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n. 6492 perante o Supremo Tribunal Federal para questionar alguns dispositivos do Novo Marco do Saneamento Básico, a Lei Federal n. 14.026/2020, recentemente promulgada. 

A nova legislação foi amplamente bem recebida porque há uma justa expectativa de que, enfim, possa favorecer a universalização dos serviços de saneamento no Brasil, incentivando novos investimentos públicos e privados, além de aumentar a segurança jurídica e eficiência do setor. 

Levantando-se, porém, contra esta medida, o PDT argui a eventual inconstitucionalidade de alguns de seus dispositivos. Em suma, veja-se abaixo quais seriam, na ótica da ADI, as inconstitucionalidades do Novo Marco do Saneamento, acompanhadas de uma breve análise de nossa autoria sobre o fundamento jurídico do alegado:

  • Violação aos princípios da universalização e modicidade tarifária dos serviços públicos. A divisão por blocos não garantiria que municípios deficitários receberiam os serviços ou que existiriam incentivos para a prestação nessas localidades. Quanto à modicidade, alega-se que a garantia do equilíbrio econômico-financeiro em contratos de concessão visaria resguardar o lucro em detrimento do valor das tarifas. Pede-se interpretação para determinar que as tarifas “subam de acordo com o salário mínimo”.

Análise: A universalização e modicidade tarifária são objetivos centrais do Novo Marco. E caberá aos Estados e Municípios organizarem os serviços de saneamento de forma a atingir esses objetivos, inclusive prevendo a adequada inclusão de municípios deficitários em estruturas regionais. O mesmo se dá para a modicidade tarifária, visto que o equilíbrio contratual é direito de quem contrata com a Administração Pública, o qual deve ser harmonizado pelo Poder Concedente com o valor das tarifas. Não há, portanto, desvirtuamento dessas finalidades, ainda que sua concretização deva ser buscada diuturnamente pela Administração.

  • Confisco de bens das empresas estatais. Enriquecimento ilícito das novas empresas concessionárias. Violação a ato jurídico perfeito. Com o veto presidencial ao artigo 16, que possibilitava a renovação de contratos de programa por mais 30 anos, os contratos vigentes seriam descontinuados e perderiam seu valor (perda do fluxo de caixa futuro). Soma-se isso ao fato de que os bens vinculados aos serviços pertencem aos municípios, de forma que as empresas estatais seriam despojadas dos investimentos feitos com base em contratos de programa válidos. Posteriormente, estes bens seriam incorporados pelas novas empresas concessionárias privadas, com enriquecimento ilícito. 

Análise: Há previsão expressa no Novo Marco para que os contratos de programa regulares hoje vigentes sejam mantidos até seu termo (art. 10, §3º), de sorte que não seriam interrompidos como afirma a ação. Ademais, quanto aos bens não amortizados, também há previsão de que sejam indenizados às empresas estatais (art. 42, §5º). Assim, não haveria de se falar em confisco de bens das empresas estatais. Por sua vez, quando incorporados em novas concessões, os bens não enriquecerão empresas privadas, mas servirão à própria prestação de serviços, como todos os demais bens reversíveis. A existência desses bens poderá, inclusive, reduzir o volume de investimentos a serem feitos e propiciar a modicidade tarifária em novas concessões – ao final das quais serão novamente revertidos ao município. 

  • Violação à autonomia federativa. Argumenta-se que a competência do artigo 21, XX da Constituição não daria à União o poder de legislar exaustivamente sobre saneamento básico sem espaço de autonomia para estados e municípios, como teria sido feito pelo Novo Marco. Em especial, as normas de referência a serem elaboradas pela Agência Nacional de Águas (ANA) teriam verdadeiro caráter regulamentador e coercitivo, e não seriam apenas diretrizes, vez que imporiam condicionamentos à obtenção de financiamentos pela União.

Análise: O estabelecimento, pela União, de normas gerais nos parece o legítimo exercício de sua competência. Exemplo tem-se nas “normas gerais” da Lei Federal n. 8.666 que, como sabemos, são bastante detalhadas e já foram tidas como constitucionais. Ademais, a existência de diretrizes nacionais para o setor e a instituição de normas de referência para a regulação dos serviços públicos de saneamento básico pela ANA será bastante benéfica à qualidade regulatória e à segurança jurídica. O exercício dessa competência pela ANA não seria vinculante às entidades reguladoras locais, embora haja benefícios à adesão às normas de referência. Na verdade, é a União impondo autolimites para apoio a Estados e Municípios, muito similar a diversas outras normas, como, por exemplo, a Lei de Responsabilidade Fiscal (arts. 11, 23, 25, 31, 40 e 51)

  • Violação à finalidade constitucional da redução das desigualdades. Segundo o PDT, as normas do Novo Marco legal permitiriam o “lucro exacerbado das empresas de saneamento”, prejudicariam municípios de menor porte e privilegiariam empresas privadas em detrimento de empresas públicas, o que violaria a redução das desigualdades sociais e regionais.

Análise: A redução da desigualdade é uma finalidade constitucional que pode ser efetivada por diversos meios e por diversos atores. Há escolha política e de governo quanto às suas formas de concretização. No caso do Novo Marco do Saneamento, após décadas de um modelo voltado ao monopólio e ao investimento público, optou-se por uma “mudança de rota” com favorecimento da concorrência e de investimentos privados como forma de amenizar as desigualdades sociais que não conseguiram ser endereçadas pelo modelo antigo. Como bem pontuou o presidente de um outro partido de esquerda: “Esse modelo está aí há décadas e deixou 100 milhões sem tratamento de esgoto e 35 milhões sem água potável”1. Novamente, caberá aos governos adotar políticas e organizar os serviços de saneamento para que estes objetivos constitucionais sejam atingidos. “A nova lei não privatiza nem estatiza. Ela estabelece metas e faz cobrança pelos resultados. Cria concorrência. Se a empresa é privada ou estatal, deverá ser cobrada pelo seu serviço. O fato de uma empresa ser estatal não garante que ela serve ao interesse da sociedade. Essa é uma discussão atrasada, ideológica, que vem impedindo o Brasil de avançar2”. 

  • Violação formal ao devido processo legislativo. Conforme consta do art. 113 das disposições constitucionais transitórias (ADCT), o projeto de lei do Novo Marco do Saneamento, por ensejar aumento de despesas com a criação de novos cargos na ANA, deveria conter estimativa de impacto orçamentário. 

Análise: Não há jurisprudência firmada pelo STF a respeito dos critérios que devem ser usados na análise de eventual inconstitucionalidade com base neste fundamento. Nos parece um alargamento indevido da medida. Porém, em caso de provimento, seria declarada formalmente inconstitucional a criação desses cargos, apenas, e não de toda lei.

  • Violação ao art. 241 da Constituição a respeito de consórcios públicos. A proibição de contratos de programa esvaziaria a disposição constitucional de interação entre os entes federativos por meio de consórcios e convênios, os quais são recorrentemente utilizados por estados e municípios para implementar políticas no setor de saneamento.

Análise: O Novo Marco do Saneamento valoriza e incentiva estruturas regionais de prestação dos serviços, especialmente consórcios e convênios públicos. Por mais que os contratos de programa sejam instrumentos muito utilizados por essas estruturas, o que a Constituição prevê são os consórcios e convênios, e não os contratos. Essas estruturas regionais continuarão a existir e, conforme o Novo Marco, deverão se valer de licitação (outro preceito constitucional) e de contratos de concessão para a implementação dos serviços de saneamento. Fica garantida, assim, a interação federativa, alterando-se apenas o instrumento pelos quais consórcios e convênios contratam. 

De todo o exposto, mantemos uma perspectiva favorável ao Novo Marco do Saneamento. Conforme já expusemos em nossa Série Saneamento Básico (link), a nova legislação tem excelentes pontos positivos e capacidade de estruturar o setor em torno da qualidade e universalização dos serviços. As críticas à constitucionalidade da lei, como vimos, ao nosso juízo, não procedem. As argumentações apresentadas, assim, fazem parte do jogo democrático e institucional, mas privilegiam uma posição política favorável ao antigo modelo de prestação dos serviços, mesmo diante de seus resultados históricos falhos.

1 e 2 Roberto Freire, presidente nacional do Cidadania (antigo PCB e PPS), em25 de junho de 2020. Vide: https://cidadania23.org.br/2020/06/25/freire-votacao-do-novo-marco-regulatorio-do-saneamento-mostra-atraso-da-esquerda-pre-muro-de-berlim/.