Novo Marco do Saneamento Básico: Terceira ADI, mesmas improcedências


Novo Marco do Saneamento Básico: Terceira ADI, mesmas improcedências


Recentemente foi apresentada a terceira ação direta de inconstitucionalidade em face do novo marco do saneamento básico (Lei Federal 14.026/2020), dessa vez ajuizada pela associação nacional dos serviços municipais de saneamento (ASSEMAE), e que recebeu a referência de ADI n. 6583. Essa ADI se soma à outras duas ações apresentadas contra o novo marco, de autoria do Partido Democrático Trabalhista e do Partido Comunista do Brasil, cujo conteúdo analisamos em outros artigos desta série. Em todas as três ações as argumentações e os pedidos são bastante semelhantes e retratam certo inconformismo de seus autores quanto aos novos termos da regulação setorial, ao mesmo tempo em que buscam reestabelecer o marco legal anterior. 

A primeira alegação trazida pela ASSEMAE é tocante à convergência regulatória em torno da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), inovação aguardada e trazida pelo novo marco legal. Argumenta-se que as “normas de referência” editadas pela agência seriam, de fato, obrigatórias e impostas coercitivamente aos municípios, em violação à sua autonomia administrativa. Fundamentalmente, a ASSEMAE se insurge contra a busca de uniformização da regulação do setor, um dos pilares do novo marco, por entender que ela eliminaria a autonomia municipal de organizar e regular seus serviços públicos.

A queixa é a mesma já veiculada nas demais ADIs e entendemos que também não prospera. Embora o intuito da nova legislação seja de uniformizar a regulação, verifica-se que (i) não foi criada qualquer obrigação aos municípios para aderirem à regulação nacional, (ii) não existe qualquer previsão de nulidade da regulação municipal que divergir da regulação editada pela ANA, (iii) os municípios deverão complementar e aplicar a regulação em referência (caso optem por a ela aderir), e (iv) sequer existem inexistem sanções a serem impostas contra aqueles que preferirem adotar sistema regulatório distinto. O novo marco, então, foi bastante cuidadoso em proteger a autonomia municipal ao mesmo tempo em que favorece a uniformização da regulação.

Assim, o instrumento adotado pelo novo marco para incentivar a adesão dos municípios às normas de referência da ANA não foi a sanção punitiva, mas a previsão de incentivos financeiros aos municípios aderentes, mediante a viabilização de acesso a recursos federais ou administrados pela União.

A ADI também busca invalidar outro pilar do novo marco que é a regionalização da prestação dos serviços. Em suma, aduz a ASSEMAE que a criação de “unidades regionais de saneamento básico” extrapola as competências constitucionalmente atribuídas ao estado para instituir regiões metropolitanas ou aglomerações urbanas, o que também violaria a autonomia dos municípios.

A esse respeito, cabe pontuar que a unidade regional de saneamento básico é instituto diferente da região metropolitana e que, por isso, terão diferentes regras aplicáveis, sem que necessariamente haja um paralelismo entre ambas. A constitucionalidade da unidade regional de saneamento básico, por sua vez, é garantida na medida em que a lei expressamente prevê que os municípios poderão optar por aderir ou não à unidade para participarem da prestação regionalizada dos serviços.

Ainda visando defender a autonomia municipal, a ADI vislumbra que o novo marco do saneamento viola a disposição do artigo 241 da Constituição Federal que prevê a possibilidade de gestão compartilhada de serviços públicos por municípios mediante a instituição de consórcios públicos ou convênios de cooperação. 

Em suma, são argumentadas quatro violações ao referido artigo. Primeiro, porque a lei limita a prestação de serviços aos municípios integrantes do consórcio, sendo a Constituição não faz tal limitação. Segundo, porque o novo marco determina a formação de autarquias intermunicipais pelos consórcios, vedando a constituição de empresas estatais. Terceiro, porque a lei impede a participação do estado em consórcios intermunicipais. E, quarto, porque a lei impede a formalização de contratos de programa pelos consórcios

Em que pese a força dos argumentos lançados, aqui, não se vê inconstitucionalidade, vez que cabe justamente à legislação ordinária apontar e detalhar o regime jurídico aplicável aos institutos criados pela Constituição. Nesse tema em particular, parece-nos que as restrições e condicionamentos feitos à figura dos consórcios públicos não viola o núcleo do dispositivo constitucional do artigo 241, mas apenas elabora detalhamentos para seu funcionamento. 

Ao fim do dia, o que o novo marco pretende é impedir que os municípios formem consórcios públicos com o exclusivo intuito de delegar a prestação de serviços à empresa estatal de saneamento básico sem o devido procedimento licitatório. E, a nosso ver, o artigo 241 da Constituição não visa assegurar esse comportamento pelos municípios. Em todo caso, está resguardado aos municípios o direito de constituírem consórcio e prestarem os serviços para cada município integrante, quando os serviços são de interesse local, mediante concessão ou prestação direta por autarquia intermunicipal. 

Cabe ressaltar, ainda, uma última das alegações trazidas pela ASSEMAE, em que se aduz que o novo marco violaria ato jurídico perfeito ao prever novas condições de validade para contratos para prestação de serviços de saneamento que estão em vigor. Essas alterações visam incluir em todos os contratos vigentes o cumprimento de metas de universalização dos serviços.

Perceba-se, porém, que a legislação indica que os contratos deverão ser alterados – e não prontamente invalidados –, o que é possível em contratos de concessão e contratos de programa, resguardado o equilíbrio econômico-financeiro. É da própria característica de contratos administrativos como esses que eles possam ser alterados pela Administração Pública como vistas a que sua execução se amolde ao interesse público. A proteção ao contrato legitimamente formado está em que essa alteração se dê com devido procedimento de reequilíbrio. Por outro lado, essa proteção constitucional não pode ser estendida a contratos irregulares e precários, visto que não foram constituídos com a observância dos critérios legais.

Diante dessa exposição sobre as principais alegações dessa nova ADI, reiteramos mais uma vez nosso entendimento pela constitucionalidade do novo marco do saneamento. A construção da nova legislação se deu de forma bastante estratégica e assim pode conciliar as inovações do marco regulatório com o respeito a preceitos constitucionais fundamentais, como a autonomia municipal, o federalismo cooperativo e a segurança jurídica.