Tributação das Pessoas Jurídicas na prestação de serviços intelectuais


Tributação das Pessoas Jurídicas na prestação de serviços intelectuais


Por Clarissa Viana e Julia Maurizi

Em 21 de novembro de 2005, foi publicada a Lei nº 11.196/05, fruto da conversão da chamada "MP do Bem" (MP nº 252/2004), que, dentre outras questões, regularizou expressamente a prestação de serviços realizada por profissionais liberais, mediante a constituição de pessoa jurídica, conforme se depreende do seu artigo 129, que assim prevê:

Art. 129. Para fins fiscais e previdenciários, a prestação de serviços intelectuais, inclusive os de natureza científica, artística ou cultural, em caráter personalíssimo ou não, com ou sem a designação de quaisquer obrigações a sócios ou empregados da sociedade prestadora de serviços, quando por esta realizada, se sujeita tão-somente à legislação aplicável às pessoas jurídicas, sem prejuízo da observância do disposto no art. 50 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil. - Destacamos


Pela regra acima, os serviços intelectuais, ainda que executados em caráter personalíssimo - como exige a natureza de diversos serviços realizados por profissionais liberais que optam pela constituição de pessoa jurídica para a consecução de seus trabalhos -, quando prestados por pessoa jurídica, sujeitam-se às regras de tributação desta, regularmente.

Também é possível observar, pela leitura do art. 129 da Lei nº 11.196/05, que o legislador ordinário condicionou a tributação dos serviços de caráter intelectual, conforme as regras aplicáveis à pessoa jurídica, apenas à observância do art. 50 do Código Civil1, que só admite a desconsideração da personalidade jurídica, para fins de se alcançar os bens de seus administradores ou sócios, quando demonstrado que: (i) a sociedade foi constituída com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos (desvio de finalidade) ou (ii) não havia separação entre o patrimônio do sócio ou do administrador e o da pessoa jurídica (confusão patrimonial). 

O art. 129 da Lei nº 11.196/05 surgiu em um cenário em que a Receita Federal vinha constantemente contestando a contratação de serviços prestados por pessoas jurídicas, ao entendimento de que se tratava de uma maneira de driblar o pagamento de tributos (eis que a tributação sobre as pessoas físicas supera à incidente sobre a pessoa jurídica), além de disfarçar a existência de vínculos empregatícios (e, consequentemente, reduzir a arrecadação de contribuições sociais).

No intuito de (i) pacificar tais discussões acerca do regime tributário aplicável às sociedades constituídas para a prestação de serviços de caráter pessoal, (ii) externar a validade de criação e tributação via pessoa jurídica e, ainda, (iii) inibir as ações fiscais acerca do assunto, editou-se o art. 129 da Lei nº 11.196/05.

E, de fato, desde então, autuações com este enfoque diminuíram substancialmente.

No entanto, desde o final do ano de 2019, diversas pessoas físicas foram surpreendidas com o recebimento de autuações visando à cobrança de Imposto de Renda, ao argumento de que os serviços formalmente prestados pelas pessoas jurídicas das quais faziam parte decorriam, sob a ótica da fiscalização, de uma simulação contratual, não sendo apresentado, no entanto, qualquer lastro probatório de tal alegação.

Em outras palavras, as autoridades fiscais, sem apresentar quaisquer evidências de fraude nos negócios jurídicos firmados com as pessoas jurídicas, simplesmente os desconsideram, de forma a estender a obrigação tributária à pessoa diversa daquela que praticou o negócio pactuado e, consequentemente, desconsiderar a personalidade jurídica das prestadoras de serviços, para atribuir a obrigação tributária à pessoa física administradora ou sócia da sociedade prestadora do serviço.

No entanto, é preciso apontar que a simples acusação de simulação, isolada e destituída de prova, não é suficiente para que o fisco ultrapasse a existência da pessoa jurídica e atinja o patrimônio da pessoa física. Este entendimento já é consagrado nos Tribunais Pátrios de há muito.

O artigo 50 do Código Civil - única ressalva feita pelo art. 129 da Lei nº 11.196/05 para invalidar a contratação da pessoa jurídica para prestação de serviços intelectuais - elenca procedimento específico visando à desconsideração da personalidade jurídica, o qual precisa estar instruído com prova cabal dos requisitos autorizadores.

Entretanto, as autuações mais recentes sequer mencionam o artigo 50 do Código Civil, fundamentando a cobrança na suposta simulação do negócio jurídico, nos termos do art. 167 do mesmo Códex2. O trabalho fiscal não tem apresentado prova nem mesmo dos requisitos que configuram a ocorrência de simulação de um negócio jurídico, elencados taxativamente no próprio dispositivo usado para fundamentar a ação fiscal. 

E pior: em alguns casos sequer são deduzidos, da cobrança, os tributos já recolhidos pela pessoa jurídica em decorrência dos mesmos fatos geradores então lançados à pessoa física, o que reforça o completo disparate da ação fazendária em tais exigências.

A conclusão a que se chega é a de que o fisco federal, em sua ânsia arrecadatória e na contramão da livre iniciativa, constitucionalmente prevista, bem como da filosofia norteadora da Lei da Liberdade Econômica3, ao lavrar autos de infração no formato acima descrito, tem (i) desqualificado pessoas jurídicas validamente constituídas; (ii) ignorado negócios jurídicos regularmente firmados, visando à prestação de serviços por pessoas jurídicas; e (iii) violado o regime de tributação legalmente permitido pelo art. 129 da Lei nº 11.196/05, para exigir tributo severamente das pessoas físicas, sem qualquer comprovação de fraude ou simulação na relação celebrada entre os particulares.

O ponto positivo que se pode extrair dessa questão é que, pela análise dos poucos julgados do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF) e do Poder Judiciário sobre a matéria, nos casos em que não restem configurados os requisitos do art. 50 do Código Civil, a expectativa é de que haja o cancelamento das autuações, com ganho de causa pelas pessoas físicas.


1 Art. 50.  Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso.

2 Art. 167. É nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissimulou, se válido for na substância e na forma.

§ 1 o Haverá simulação nos negócios jurídicos quando:

I - aparentarem conferir ou transmitir direitos a pessoas diversas daquelas às quais realmente se conferem, ou transmitem;

II - contiverem declaração, confissão, condição ou cláusula não verdadeira;

III - os instrumentos particulares forem antedatados, ou pós-datados.

3 Lei nº 13.874/19, que, inclusive, aprimorou a redação do artigo 50 do Código Civil, citado acima.