Entenda a discussão
Dando seguimento à nota anterior sobre o início do julgamento de repercussão geral da constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet (“MCI”) — dispositivo que condiciona a responsabilidade civil dos provedores de aplicações de internet (popularmente chamados de “plataformas digitais”) à existência de ordem judicial específica para a remoção de conteúdo – informamos que o julgamento foi concluído na última quinta-feira, 26 de junho de 2025.
Trata-se de discussão de grande relevância jurídica, política e social, com efeitos vinculantes e impacto direto na estrutura de responsabilização civil dos provedores de aplicações de internet por conteúdos gerados por terceiros.
Por maioria dos votos, o Supremo Tribunal Federal (“STF”) reconheceu a inconstitucionalidade parcial do art. 19 do MCI (Lei 12.965/14). A situação foi julgada nos Recursos Extraordinários (REs) 1.037.396 – Tema 987, e 1.057.258 – Tema 533, interpostos, respectivamente, por Facebook Serviços Online do Brasil Ltda. e Google Brasil Internet S/A, ambos versando sobre a responsabilidade civil de plataformas digitais por danos decorrentes de conteúdos gerados por terceiros.
O Marco Civil da Internet foi instituído pela Lei nº 12.965/2014 e estabeleceu princípios, direitos, deveres e garantias para o uso da internet no país. Configurando um marco normativo essencial para a governança da internet no país, pois até então não havia legislação específica sobre a internet no Brasil, o legislador consolidou no marco civil os princípios fundamentais como neutralidade da rede, liberdade de expressão e a proteção da privacidade dos usuários.
Importante registrar que o MCI trata da governança da internet no país e o julgamento do STF não se limita à regulação de redes sociais, mas alcança todos os provedores de aplicações de internet.
Os provedores de aplicações de internet são ambientes que facilitam a interação, troca de informações e realização de atividades entre usuários, empresas, entidades, utilizando a internet como meio de comunicação e atuando, assim, como intermediárias, conectando diferentes grupos de usuários. São exemplos as plataformas digitais: marketplaces, chatbots, buscadores, redes sociais e aplicativos (app) em geral.
Dito isso, tem-se que o art. 19 estipulava, até então, que o provedor de aplicações de internet somente poderia ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros caso descumprisse ordem judicial específica determinando a indisponibilização do referido conteúdo:
“Art. 19. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário.”
A regra anterior, portanto, condicionava a responsabilidade civil à inércia do provedor diante de ordem judicial expressa no sentido de tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente.
Prevista no art. 21, regra específica estipulava que a mera notificação extrajudicial atraía a responsabilização das plataformas digitais subsidiariamente pela violação da intimidade decorrente da divulgação não autorizada de imagens de nudez ou de atos sexuais de caráter privado:
“Art. 21. O provedor de aplicações de internet que disponibilize conteúdo gerado por terceiros será responsabilizado subsidiariamente pela violação da intimidade decorrente da divulgação, sem autorização de seus participantes, de imagens, de vídeos ou de outros materiais contendo cenas de nudez ou de atos sexuais de caráter privado quando, após o recebimento de notificação pelo participante ou seu representante legal, deixar de promover, de forma diligente, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço, a indisponibilização desse conteúdo.”
Apesar das disposições constantes no MCI, a remoção de conteúdo das plataformas digitais não dependia, exclusivamente, de ordem judicial ou notificação, pois o próprio provedor de aplicações de internet poderia remover determinado conteúdo caso entendesse que violava os seus termos de uso.
Agora, finalizado o julgamento dos Recursos Extraordinários (REs) 1.037.396 – Tema 987, e 1.057.258 – Tema 533 - veja como cada ministro votou, clicando aqui - o STF entendeu que o modelo adotado pelo artigo 19 do MCI não garantia de forma plena e eficiente a proteção dos direitos fundamentais, diante da ampla disseminação de conteúdos considerados ilícitos no ambiente digital.
As mudanças trazidas pela decisão do STF
Com o julgamento, a principal mudança é a ampliação da responsabilidade dos provedores de aplicações de internet sobre conteúdos publicados nas redes. O STF concluiu que as empresas terão presunção de responsabilidade. Firmou-se a tese de que o art. 21 passa a ter sua interpretação ampliada, de forma que há responsabilidade civil da plataforma, além dos casos já previstos, a partir do não atendimento da solicitação por meio de notificação extrajudicial nos casos de:
1) contas denunciadas como inautênticas;
2) crimes ou ato ilícitos, em geral, como atos antidemocráticos; terrorismo; indução ao suicídio ou automutilação; discurso de ódio racial, religioso, sexual, de gênero ou contra mulheres; pornografia infantil, crimes sexuais contra vulneráveis, e tráfico de pessoas.
Segundo a decisão, nesses casos, as plataformas devem remover os conteúdos, sob pena de responderem civilmente.
O artigo 19, por sua vez, continuará a ser aplicado em situações específicas, diante do julgamento de inconstitucionalidade parcial. Portanto, nos casos de crimes contra a honra (calúnia, difamação e injúria), ainda se exige, como regra, a existência de ordem judicial para remoção do conteúdo e a eventual responsabilização civil do provedor de aplicações de internet. No entanto, admitiu-se, de forma complementar, a possibilidade de remoção extrajudicial do conteúdo mediante notificação.
Além disso, nos casos de reiteração de conteúdos já declarados ilícitos por decisão judicial anterior, as plataformas poderão ser compelidas a removê-los a partir do simples recebimento de nova notificação extrajudicial, independentemente de nova ordem judicial.
A pessoa responsável pela publicação poderá requerer, judicialmente, a reativação do conteúdo excluído, desde que comprove que a postagem não configurou conduta ilícita.
A responsabilidade dos provedores de aplicações de internet foi ampliada para evitar difusão massiva de conteúdos classificados como ilícitos de maior gravidade. Embora já incluídos no rol de crimes e atos ilícitos de forma geral, o STF definiu um rol de conteúdos ilícitos graves de forma taxativa, e para os quais determinou o dever de cuidado que independe de notificação extrajudicial. São eles atos ou manifestações antidemocráticas tipificadas em lei, terrorismo, induzimento ou auxílio ao suicídio ou à automutilação, incitação à discriminação, crimes contra a mulher, infrações de natureza sexual contra vulneráveis e pornografia infantil, crimes graves contra crianças e adolescentes e tráfico de pessoas. Nesses casos, os provedores de aplicações de internet devem dispor de medidas sistêmicas, no estado da técnica, como garantia da retirada imediata do conteúdo ilícito, salvo conteúdos ilícitos isolados, sobre os quais incide o regime do art. 21.
Os provedores de e-mail, reuniões privadas e mensageria pessoal se sujeitam à regra do art. 19, exigindo a decisão judicial para remoção do conteúdo, por envolverem comunicações privadas protegidas constitucionalmente.
Quanto aos provedores de aplicações de internet cujo formato se enquadra como marketplaces, foi sedimentado o entendimento da aplicação do Código de Defesa do Consumidor, sem, contudo, se aplicar a responsabilidade objetiva.
Ressalte-se que diante do entendimento do STF pela presunção de responsabilidade civil das plataformas em casos de conteúdos ilícitos na forma de anúncios e impulsionamentos pagos, bem como na utilização de redes artificiais de distribuição, como robôs, a responsabilização independe de notificação ou decisão judicial prévia, e endereça para a plataforma o encargo de demonstrar sua conduta diligente para remover o conteúdo.
No que concerne à necessidade de autorregulação dos provedores de aplicações de internet, o Supremo decidiu que eles deverão instituir mecanismos próprios que assegurem um sistema de notificações, garantias de devido processo e, também, a elaboração de relatórios anuais de transparência, abrangendo notificações extrajudiciais, anúncios e impulsionamentos.
A decisão resultou na criação de vários deveres adicionais às plataformas para disponibilização de canais de atendimento acessíveis e amplamente divulgados ao público; criação de sistemas para facilitar o envio de notificações sobre possíveis atos ilícitos; e a divulgação de relatórios anuais com dados referentes ao tema. Além de constituir e manter sede e representante no Brasil.
Quanto à aplicação e modulação da decisão, firmou-se que somente se aplicará prospectivamente, ressalvadas as decisões já transitadas em julgado.
O julgamento proferido pelo Supremo Tribunal Federal, como visto, aplicou uma regulação ampla, não apenas sobre a responsabilidade civil decorrente das relações digitais, mas com a imposição de deveres e obrigações gerais aos provedores de aplicações de internet.
Embora a decisão tenha sido proferida no contexto de resolver uma controvérsia, fatalmente a aplicação da decisão na prática, tal como ocorreu com a própria lei, poderá ser objeto de novas discussões cujos desfechos só o tempo nos revelará. Inclusive, ainda no âmbito do mesmo caso é esperada a oposição de embargos declaratórios com o objetivo de elucidar os termos da decisão.
Por fim, destacamos que este conteúdo tem caráter informativo sobre decisão judicial sem qualquer crítica aos votos dos Ministros ou posicionamentos de teses específicas. Nosso foco permanece restrito à análise técnico-jurídica do debate sobre o Marco Civil da Internet, em especial quanto à decisão de inconstitucionalidade parcial do artigo 19.
*coautoria de Mariana Nery Rabelo e contribuições de Ingrid Santos, Isabella Santana e Pierro Sellan.