No dia 05/06/2024, foi apresentado à Câmara dos Deputados o Projeto de Lei Complementar – PLP nº 108/2024, visando regulamentar aspectos da Reforma Tributária não tratados no PLP nº 68/2024, entre outros.
Basicamente, quatro grandes temas foram abordados: (i) O Comitê Gestor do IBS, sua estrutura organizacional, competências e diretrizes; (ii) O processo administrativo tributário do IBS; (iii) Disposições relativas à transição do ICMS, no que se refere à operacionalização da utilização do saldo credor de ICMS e da utilização do ICMS-ST relativo à mercadorias em estoque em 31/12/2032, e (iv) alterações nas regulamentações do Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação – ITCMD, bem como do Imposto sobre Transmissão Inter Vivos, por ato oneroso, de Bens Imóveis e de direitos a eles associados – ITBI.
A regulamentação dos aspectos inerentes ao Comitê Gestor, ao processo administrativo do IBS, e à transição do ICMS já era esperada, mas as alterações relativas ao ITCMD e o ITBI, visando atender pleitos do Estados e Municípios, foram muito além do que seria o decorrente da Emenda Constitucional - EC nº 132/2023.
Vamos abordar as principais alterações em dois momentos. Nesse material, trataremos do ITCMD e do ITBI, e em seguida trataremos da transição do ICMS.
Em relação ao ITCMD, suprindo a lacuna de regulamentação específica e forçada acomodação ao contexto dos artigos do Código Tributário Nacional – CTN que não tratavam da transmissão não onerosa de bens móveis, o projeto trouxe uma regulamentação geral, além da esperada revisitação dos aspectos relativos à incidência nas doações realizadas por doadores com residência ou domicílio no exterior, nas transmissões de bens situados no exterior a título de herança, e aspectos relativos às transferências patrimoniais nas estruturas envolvendo os Trusts.
Entre as principais novidades relativas à regulamentação do ITCMD, pode-se destacar:
a) Conceito alargado de doação: Introduziu definição alargada do conceito de doação, abrangendo transmissões, entre pessoas vinculadas, decorrentes de atos societários que resultem em benefícios desproporcionais para sócios ou acionistas por liberalidade e sem justificativa negocial passível de comprovação, incluindo a distribuição de dividendos e a cisão desproporcionais e o aumento ou redução de capital a preços diferenciados. Foi também expressamente incluído nesse conceito, positivando entendimentos já adotados pela maior parte dos Estados: (i) o perdão de dívida por liberalidade e sem justificativa negocial; (ii) o excesso de meação ou de quinhão, na divisão de patrimônio comum, na partilha ou na adjudicação, em que houver atribuição a um dos cônjuges/companheiros ou a qualquer herdeiro patrimônio superior a fração ideal a qual faz jus; e (iii) a transferência pelo usufrutuário, a título gratuito, para o nu-proprietário de frutos não usufruídos;
Vale relembrar que o art. 110 do CTN estabelece que a legislação não pode alterar os conceitos e definições de institutos de direito privado utilizados na Constituição para delimitar competências tributárias (como o conceito de doação, utilizado na outorga de competência para instituição do ITCMD). Essa regra vem sendo aplicada pela jurisprudência para afastar tentativas de se elastecer o significado de determinadas operações com o intuito de enquadrá-las como fato gerador de tributos.
b) Extinção de usufruto: Positivou que o ITCMD não incide na extinção do usufruto ou de qualquer outro direito real que resulte na consolidação da propriedade plena pelo seu instituidor.
c) Contratos de risco: Deixou fora do conceito de transmissão causa mortis o benefício devido em razão de contrato de risco de caráter aleatório, em relação ao qual não se pode assegurar ao titular ou eventual beneficiário, retorno proporcional em relação aos montantes pagos ou se não houver qualquer retorno, nem que os montantes vertidos à entidade responsável pelo pagamento de benefício sejam suficientes para fazer face à contraprestação devida;
d) Trust e fidúcia: Em relação às estruturas de Trust, previu a incidência do ITCMD: (i) no momento da distribuição pelo Trust aos beneficiários o do falecimento do instituidor, o que ocorrer primeiro, no caso de Trust revogável; e (ii) no momento de instituição do Trust, no caso do Trust irrevogável. Adotou a definição de Trust prevista na legislação do imposto de renda, Lei nº 14.754/2023, e estendeu as mesmas regras aos contratos no exterior com características similares às do Trust, e aos contratos de fidúcia no Brasil instituídos com características similares às do Trust;
e) Base de cálculo - Ações e quotas não negociadas em mercado de capitais: Previu que nestes casos, a base de cálculo deve corresponder a no mínimo ao valor patrimonial ajustado pela avaliação de ativos e passivos a valor de mercado, acrescido do valor de mercado do fundo de comércio, conforme estabelecido na legislação do ente tributante, indo além da atual prática dos chamados “balanços de determinação” adotados por alguns Estados;
A regra tende a manter as controvérsias sobre a legitimidade de se reavaliar a mercado bens integrantes do patrimônio, já adotada em vários Estados, em detrimento do uso do valor patrimonial contábil das ações e quotas, sob o argumento de ser esse segundo parâmetro mais adequado para a hipótese de inexistência de negociação das quotas/ações em mercado de capitais.
f) Base de cálculo – Dedução de dívidas: Permitiu a dedução de dívidas do falecido cuja origem, autenticidade e preexistência à morte sejam comprovadas. Esta dedução era acatada por alguns Estados apenas, tais como Minas Gerais. O Estado de São Paulo não aceitava referida dedução;
g) Conceito de domicílio: (i) Para pessoas físicas – introduziu conceito levando em consideração o local da habitação permanente e, no caso de existir mais de uma ou nenhuma, o local onde possui relações econômicas mais relevantes, conforme informado no Cadastro de Pessoas Físicas – CPF; (ii) Para Pessoas jurídicas - o local do estabelecimento principal, entendido como o local onde suas relações econômicas são mais relevantes, observada a legislação do IBS e da CBS;
h) Reporte semestral pelos TJs e Convênio: Previu obrigação dos Tribunais de Justiça - TJs encaminharem às administrações tributárias estaduais, informações sobre instauração e conclusão de processos que envolvam inventário, separação judicial, divórcio, dissolução de união estável, e qualquer outro processo envolvendo transmissão causa mortis ou doação; bem como previu a possibilidade de convênio entre Conselho Nacional de Justiça, TJs e autoridades tributárias estaduais. Determinou que a Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil - SERFB deve disponibilizar, mediante convênio, o acesso aos servidores das administrações tributárias dos Estados e Distrito Federal, das informações econômico-fiscais de pessoas físicas e jurídicas relacionadas a transmissões causa mortis e doações, de forma ampla e rastreável;
i) Prazo de decadência: Determinou que o prazo de decadência será contado a partir da data do conhecimento do ato ou negócio jurídico pela administração tributária estadual ou distrital, nos casos em que não houver a devida formalização do ato ou negócio jurídico, e da entrega da declaração nos casos sujeitos a lançamento por homologação.
Nesse ponto, a regra do PLP busca contornar o que decidido pelo STJ no Tema Repetitivo nº 1048, quando firmado o entendimento de que, mesmo se tratando de doação não declarada pelo contribuinte, o prazo decadencial contra o Fisco “tem início no primeiro dia do exercício seguinte àquele em que o lançamento poderia ter sido efetuado, observado o fato gerador”, na forma do CTN, “sendo irrelevante a data em que o fisco teve conhecimento da ocorrência do fato gerador.”
Chama a atenção ainda que se pretende estabelecer uma regra de contagem de prazo decadencial para lançamento específica para o ITCMD, divergindo daquela estabelecida no CTN e aplicável de forma geral a todos os tributos.
j) Retenção ITCMD: Determinou a retenção do imposto pelas Instituições Financeiras e equiparadas na hipótese de transmissão causa mortis ou de doação de bem ou direito sob sua administração ou custódia, como já ocorre no caso de pagamento de benefício de previdência privada em Minas Gerais. Faculta a retenção pelos responsáveis solidários conforme a legislação do ente tributante determinar.
Por fim, em linha com as modificações introduzidas pela EC nº 132/23, foi corroborado que a alíquota será progressiva em razão do valor do quinhão, do legado ou da doação, devendo observar a alíquota máxima fixada pelo Senado que hoje é de 8%, e as seguintes hipóteses de sujeição ativa em relação as doações feitas por doadores com residência ou domicílio no exterior, e aos bens herdados situados no exterior:
Situação: | Ente tributante do: |
Bem imóvel no exterior – Falecido ou doador no Brasil | Domicílio do De Cujus ou doador |
Bem imóvel no exterior – De Cujus ou doador no exterior | Domicílio do sucessor ou donatário |
Bem móvel – Transmissão causa mortis – De Cujus no exterior | Domicílio do sucessor |
Bem móvel – Doação – Doador no exterior | Domicílio do donatário |
Bem móvel – De Cujus/doador e sucessor/donatário no exterior | Localização do bem móvel no Brasil |
Quanto ao ITBI, as principais mudanças foram:
(i) a possibilidade das prefeituras e Distrito Federal realizarem a cobrança do tributo em momento anterior à transferência, na assinatura da escritura - A validade da exigência do imposto nesse momento é objeto de debate no STF, que chegou a decidir em 2021 pela inconstitucionalidade do critério, mas voltou atrás em 2022, optando por postergar a análise da matéria (julgamento ainda não realizado);
(ii) determinação do valor venal a ser considerado como base de cálculo, estabelecendo que deverá ser o valor de referência (a ser fixado anualmente, através de metodologia específica para estimar o valor de mercado dos bens imóveis, nos termos de legislação municipal ou distrital) ou o valor da transmissão, o que for maior. É importante destacar que, de forma diversa, o STJ decidiu, no julgamento do Tema Repetitivo nº 1.113 ocorrido em 2022, que, na aferição do valor venal para fins de ITBI, o valor da transação atribuído pelo contribuinte goza de presunção de conformidade com o valor de mercado e, portanto, só pode ser afastado pelo Fisco Municipal após regular processo administrativo que busque aferir as particularidades e especificidades do imóvel.
Observa-se que o PLP nº 108/2024 foi além da necessária regulamentação dos aspectos tratados na EC nº 132/2023 e, para acomodar e compensar pleito dos Estados e Municípios, propõem-se que alguns aspectos que outrora representaram êxitos a favor dos contribuintes por ausência de legislação, passem a ser positivados.
É importante ressaltar que após votação e aprovação pela Câmara Dos Deputados e pelo Senado Federal, bem como promulgação da Lei Complementar, as legislações Estaduais deverão ser também alteradas, produzindo efeitos no ano seguinte, observado ainda o prazo de 90 dias após a publicação.