Quem é o trabalhador hipersuficiente?


Quem é o trabalhador hipersuficiente?


Por Bruna Rievers de Assis, Izabela Cristina Silva Pinto e Roza Maria Almeida Martins 

Historicamente, dada a caracterização do empregador como aquele que assume os riscos da atividade econômica (artigo 2º da Consolidação das Leis do Trabalho - CLT), o trabalhador sempre foi considerado a parte hipossuficiente da relação de emprego.

Em contraponto, a Reforma Trabalhista (Lei Nº 13.467/2017) trouxe importante modernização às relações de trabalho ao regulamentar, por meio de seu artigo 444, parágrafo único, a figura do trabalhador alcunhado pela doutrina e jurisprudência de hipersuficiente.

A legislação trouxe dois requisitos para a caracterização desse trabalhador atípico, quais sejam: (1º) portar diploma de nível superior; (2º) perceber salário mensal igual ou superior a duas vezes o limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social (R$14.174,44, em 2022). Atendidas essas condições, presume-se que o trabalhador possui maior capacidade para se impor e negociar seu contrato de trabalho, já que detentor de diferenciada capacidade intelectual e financeira. 

Art. 444 - As relações contratuais de trabalho podem ser objeto de livre estipulação das partes interessadas em tudo quanto não contravenha às disposições de proteção ao trabalho, aos contratos coletivos que lhes sejam aplicáveis e às decisões das autoridades competentes.

Parágrafo único.  A livre estipulação a que se refere o caput deste artigo aplica-se às hipóteses previstas no art. 611-A [1] desta Consolidação, com a mesma eficácia legal e preponderância sobre os instrumentos coletivos, no caso de empregado portador de diploma de nível superior e que perceba salário mensal igual ou superior a duas vezes o limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social.

Ao trabalhador hipersuficiente foi reconhecido o direito de pactuar diretamente com o empregador algumas condições de trabalho tais como jornada de trabalho (observadas as limitações constitucionais), banco de horas, teletrabalho, enquadramento do grau de insalubridade, dentre outras, com a mesma eficácia legal dos instrumentos coletivos, tendo, inclusive, preponderância sobre estes, desde que respeitadas as disposições de ordem pública de proteção ao trabalho. 

É importante ressaltar que esta pactuação entre trabalhador e empregador deve observar o princípio da boa-fé contratual     e os demais requisitos de validade do negócio jurídico  (i. agente capaz; ii. objeto lícito, possível, determinado ou determinável; e iii. forma prescrita ou não defesa em lei), previstos no Código Civil e de aplicação subsidiária às relações de trabalho .

Logo, as negociações somente serão válidas se evidenciada a ausência de vício de vontade, ou seja, efetivo interesse das partes na celebração do ajuste.

Formou-se, portanto, um rico debate jurídico acerca da hipersuficiência do trabalhador, instituto que foi recebido com resistência por alguns juristas mais conservadores e dogmáticos, que entendem ser inviável flexibilizar ou afastar os princípios de proteção ao trabalhador, especialmente quanto à indisponibilidade e irrenunciabilidade de direitos.

Desde a publicação da referida reforma legal, há julgados que entendem que a  figura atípica do trabalhador hipersuficiente viola preceitos constitucionais da isonomia (artigo 5º da Constituição Federal - CF) e da “proteção social ao trabalho subordinado (art. 7º, I, CF), em face da situação de fragilidade não apenas econômica do trabalhador, mas também de sua vulnerabilidade volitiva no enlace com o poder econômico” (trecho de acórdão da lavra do Desembargador Francisco Ferreira Jorge de Neto, nos autos do processo n. 10004392920175020709, publicado em 10/09/2018).

Noutro norte, alguns julgadores, mais adstritos ao texto firme da lei, determinam a aplicação de seus efeitos, indicando que “não se pode desconsiderar que trabalhadores altamente qualificados têm plenas condições de avaliar a conveniência de prestar serviços a outrem fora dos moldes da típica relação de emprego”, entendendo por anacrônico o entendimento adotado em sentido contrário (trecho extraído do acórdão do Desembargador Ricardo Marcelo da Silva, nos autos do processo n. 0010771-62.2018.5.03.0110, publicado em 19/02/2020).

Há, ainda, entendimentos que relativizam os requisitos legais, indicando que “O art. 444, parágrafo único, da CLT estipula uma categoria de empregado hipersuficiente, mas não exclui outras formas de hipersuficiência [...] Assim, mesmo que não seja portador de diploma de nível superior, ele será hipersuficiente quando caracterizada a mitigação significativa da subordinação jurídica” (Ementa do acórdão publicado em 15/10/2020, da lavra da Desembargadora Gisele de Cássia Vieira Dias Macedo no processo n. 0010636-07.2019.5.03.0113).

A questão ainda não foi analisada de forma direta pelo Supremo Tribunal Federal - STF, mas já há julgados que sugerem como será o entendimento de alguns Ministros da Corte sobre a questão.

Exemplificando, na decisão liminar proferida na Ação Direta de Inconstitucionalidade 6.363, ao analisar a constitucionalidade da Medida Provisória n. 936/2020, que trazia previsão similar ao parágrafo único do artigo 444 da CLT, o ministro Ricardo Lewandowski não indicou a existência de inadequação constitucional ou afastamento da eficácia da disposição legal replicada pelo poder executivo.

Ainda mais recente, a Primeira Turma do STF, em decisão não unânime no Agravo da Reclamação n. 47.843, cujo acórdão ainda não foi publicado, entendeu que médicos, profissionais que sabidamente possuem alto nível de formação e recebem remuneração elevada, podem ser contratados através de pessoas jurídicas, evidenciando um olhar diferenciado para o trabalhador hipersuficiente.

Resta evidente que a questão ainda será pauta de intensos debates jurisprudenciais e doutrinários, uma vez que a disposição legal que outorga maior autonomia ao trabalhador traz importante mudança de paradigma, já que este foi tratado como hipossuficiente pela legislação trabalhista  por 74 anos.

Não há como se negar a necessidade de um novo olhar acerca da eficácia dos negócios jurídicos firmados por trabalhadores hipersuficientes que, por sua própria condição, são conhecedores das consequências legais dos ajustes que livremente pactuaram.


[1] Art. 611-A.  A convenção coletiva e o acordo coletivo de trabalho têm prevalência sobre a lei quando, entre outros, dispuserem sobre:             

I - pacto quanto à jornada de trabalho, observados os limites constitucionais;

II - banco de horas anual;

III - intervalo intrajornada, respeitado o limite mínimo de trinta minutos para jornadas superiores a seis horas;                       

IV - adesão ao Programa Seguro-Emprego (PSE), de que trata a Lei no 13.189, de 19 de novembro de 2015;                        

V - plano de cargos, salários e funções compatíveis com a condição pessoal do empregado, bem como identificação dos cargos que se enquadram como funções de confiança;                 

VI - regulamento empresarial;

VII - representante dos trabalhadores no local de trabalho;

VIII - teletrabalho, regime de sobreaviso, e trabalho intermitente;

IX - remuneração por produtividade, incluídas as gorjetas percebidas pelo empregado, e remuneração por desempenho individual;

X - modalidade de registro de jornada de trabalho;

XI - troca do dia de feriado;

XII - enquadramento do grau de insalubridade;

XIII - prorrogação de jornada em ambientes insalubres, sem licença prévia das autoridades competentes do Ministério do Trabalho;                  

XIV - prêmios de incentivo em bens ou serviços, eventualmente concedidos em programas de incentivo;                  

XV - participação nos lucros ou resultados da empresa.

[2]  Código Civil. Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.

[3]  Código Civil. Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.

[4]  Código Civil. Art. 104. A validade do negócio jurídico requer:

I - agente capaz;

II - objeto lícito, possível, determinado ou determinável;

III - forma prescrita ou não defesa em lei.

[5]  CLT. Art. 8º - (...)

§ 1º  O direito comum será fonte subsidiária do direito do trabalho.