O “antes e depois”: quais os limites das publicações?


O “antes e depois”: quais os limites das publicações?


Por Camilla Chicaroni, Isabella Santana, Laís Litran e Carolina Perdomo

O Brasil é um dos países que mais realiza procedimentos estéticos no mundo e nem mesmo a pandemia do coronavírus (COVID-19) afetou esse status. A Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (“SBCP”) constatou que a procura por procedimentos estéticos aumentou em 390% nos últimos anos. Procedimentos como Botox®, preenchimento nos lábios, olheiras, contorno do rosto e remoção de excesso de pele nas pálpebras foram os mais procurados pelos brasileiros nos últimos meses. 

Em que pese a suspensão de cirurgias eletivas durante a pandemia, a Academia Americana de Cirurgia Plástica e Reconstrutiva Facial (“AAFPRS”) constatou que a procura por procedimentos tem alcançado níveis nunca antes vistos. Além da comodidade de grande parte da população estar em home office, com mais tempo de se recuperar sem precisar deslocar-se ao local de trabalho, as redes sociais possuem grande responsabilidade pelo aumento dos números, considerando sua exposição e publicidade, como posts com tráfego direcionado e influenciadores digitais. 

Em fevereiro de 2021, a AAFPRS divulgou pesquisa focada nos impactos da COVID-19 e as tendências de cirurgias plásticas. O estudo demonstrou que o aumento da procura por realização de procedimentos estéticos está atrelado à utilização ilimitada da Internet, visto que, em média, o brasileiro passa 3 horas e 31 minutos por dia em redes sociais. O estudo da AAFPRS também evidenciou que o constante bombardeio com imagens de corpos e rostos padronizados, incluindo os influenciadores digitais e filtros que prometem um padrão estético inalcançável, foi responsável pela mudança na autopercepção do indivíduo, popularizando e, algumas vezes, banalizando procedimentos estéticos. 

A situação toma contornos ainda mais complexos quando tais procedimentos passam a ser expostos nas redes sociais não só dos pacientes, mas, principalmente, dos consultórios dermatológicos, odontológicos e clínicas de estética, fazendo surgir questionamentos sobre o cumprimento das regras de proteção de dados e, também, dos regulamentos específicos de cada categoria profissional. Questiona-se: seriam tais publicações adequadas do ponto de vista legal?

De início, é necessário relembrar a aplicação da LGPD às organizações supracitadas. Em vigor desde setembro de 2020, alcançando a vigência plena em agosto de 2021, a Lei Geral de Proteção de Dados (Lei 13.709/2018 – “LGPD”) tipificou regras e diretrizes para o tratamento de dados pessoais, na finalidade de garantir direito à privacidade e à autodeterminação dos titulares de dados. 

Evidencia-se, pelo descrito até então, a importância dos agentes de tratamento que fornecem e/ou estão ligados à realização de procedimentos estéticos em atentar no cumprimento da LGPD. Postagens de “antes e depois” dos procedimentos estéticos são bastante corriqueiras em redes sociais e sites, como uma forma de incentivo e publicidade, sendo alvo de inúmeras discussões entre os profissionais da saúde/de estética. Na seara da privacidade, tais imagens podem ser capazes de demonstrar uma condição de saúde do paciente, como obesidade, vitiligo, psoríase, lábio leporino, entre outros, enquadrando-se como dado pessoal sensível, que merece cautela em seu processamento, conforme analisado a seguir. 

De acordo com a LGPD, consideram-se dados pessoais sensíveis todo dado pessoal sobre origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou a organização de caráter religioso, filosófico ou político, dado referente à saúde ou à vida sexual, dado genético ou biométrico, quando vinculado a uma pessoa natural. São dados que, uma vez processados e, neste caso, expostos, podem vir a gerar algum tipo de discriminação e/ou dano ao titular, aos seus direitos e liberdades fundamentais. 

Mas não é só isso. A postagem de imagens de “antes e depois” de procedimentos estéticos tem sido objeto de discussões controversas entre os profissionais também sob o prisma regulatório e ético.

Para os profissionais de estética, seu Código de Ética não prevê proibições dos posts de “antes e depois”. No entanto, seu artigo 6º estabelece que é vedado ao esteticista divulgar resultados e métodos de pesquisa que não foram realizados por si próprio, além de proibir a propaganda falsa. O Código vai além e proíbe, também, a divulgação de produtos que não estejam cientificamente comprovados.  

Já para os cirurgiões-dentistas, o Conselho Federal de Odontologia (CFO), através da Resolução CFO 196/2019, regulamentou a prática e autorizou a divulgação de imagens relativas ao diagnóstico e resultados finais de tratamentos odontológicos, desde que o paciente autorize formalmente por escrito. Entretanto, as postagens de “antes e depois” não estão completamente liberadas para serem utilizadas indiscriminadamente. Devem existir alguns cuidados com as postagens, tais como (i) a elaboração de um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE); (ii) a indicação da inscrição no Conselho Regional de Odontologia na publicação; (iii) que a publicação não contenha um passo a passo do procedimento realizado; (iv) que o profissional esteja devidamente identificado como sendo o responsável pelo procedimento; (v) que cada paciente possui características individuais, não servindo a fotografia como uma referência genérica ou exata.

Com relação aos médicos, seu Código de Ética, no capítulo dedicado ao sigilo profissional, é bastante claro ao prever que é vedado ao profissional da área exibir fotografias dos seus pacientes em anúncios profissionais ou através de divulgação em qualquer meio, ainda que com autorização do paciente. Nota-se, portanto, um maior rigor por parte do Conselho Federal de Medicina. E não para aí. Há, também, a Resolução CFM 1974/2011, que em seu bojo reiterou que a publicidade médica deve respeitar os princípios éticos, com foco na orientação educativa, sendo vedado o anúncio de aparelhos e, principalmente, a exposição do paciente como forma de divulgação da técnica empregada ou do resultado obtido. Por fim, diante do intenso movimento de migração da publicidade para as redes sociais, o CFM emitiu a Resolução CFM 2126, em 2015, deliberando, expressamente, ser vedada a publicação de imagens de “antes e depois”. O ato foi além e mencionou, ainda, que a publicação reiterada por parte de pacientes ou terceiros deve ser investigada pelos Conselhos Regionais de Medicina. 

Há que se observar que o posicionamento do CFM tem sido mantido pelos tribunais do País, como é o caso da Apelação Cível nº 5002355-04.2019.4.04.7203, julgada no ano de 2020 pelo Tribunal Regional Federal da 4° Região, que negou provimento ao recurso interposto por profissional da área médica, referente a publicação de imagens de “antes e depois”. O caso tratava de um Mandado de Segurança cujo objeto era tornar nula ou inaplicável a Resolução CFM 1974/11, de modo a permitir que a impetrante realizasse publicações de “antes e depois” em suas redes sociais. Como argumento, a profissional médica alegava possuir o consentimento do paciente, e que este não seria identificado. Os pedidos foram negados em primeira e segunda instância. 

Assim, para as clínicas estéticas, consultórios médicos e odontológicos que estão em busca de uma atuação pautada nas regras de seus conselhos específicos, é necessário o contínuo estudo e aprimoramento de suas rotinas, de forma a permanecerem atualizadas. A atenção aos regulamentos e resoluções dos conselhos de cada área será imprescindível, assim como a adoção dos documentos necessários a cada procedimento. A criação de uma Política Interna que estabeleça as regras para publicação em redes sociais também trará segurança à organização, aliada aos treinamentos constantes sobre o assunto. 

No mais, do ponto de vista da conformidade, ou compliance, com a LGPD, vale ressaltar a necessária adoção de uma Política de Privacidade, além da implementação de uma estrutura de governança de dados pessoais, tanto para pequenas quanto para grandes empresas. Ser transparente com os titulares, adotar medidas de segurança da informação e mitigar riscos envolve, sim, investimento. Mas a mudança do comportamento já representa grande parte do caminho a ser percorrido, buscando evitar, assim, danos reputacionais, operacionais e pecuniários às organizações empresariais aqui mencionadas.