Em primeiro lugar, ressaltamos que o presente trabalho não se propõe a uma análise crítica do voto deste ou daquele Ministro, muito menos nos propomos a tomar partido de qualquer posicionamento ou tese, resumindo a nossa apreciação às questões eminentemente técnicas e jurídicas sobre o debate do Marco Civil da Internet e a constitucionalidade do artigo 19 do referido regramento.
Dito isso, tem-se que o Supremo Tribunal Federal (STF) tem sido palco de reflexões sobre a aplicação e a constitucionalidade de aspectos do Marco Civil da Internet – “MCI” (Lei nº 12.965/2014), especialmente o artigo 19, que regulamenta a responsabilidade dos provedores de internet por conteúdos gerados por terceiros.
O Plenário Virtual do STF reconheceu a repercussão geral da matéria, considerando que o artigo 19 do MCI exige ordem judicial específica para a exclusão de conteúdo como condição para a responsabilização civil do provedor de aplicações de internet.
O julgamento, que será realizado pelos 11 Ministros do STF, terá efeito vinculante, afetando casos semelhantes e criando parâmetros claros para ações de remoção de conteúdo na internet no judiciário brasileiro.
Qual o recurso cuja repercussão geral da matéria foi reconhecida?
Trata-se de Recurso Extraordinário (RE) 1037396 – Tema 987, interposto pelo Facebook Serviços Online do Brasil Ltda.
O caso originou-se de uma ação em que a parte autora demandava do Facebook a remoção de um perfil falso na plataforma, objetivava o fornecimento de dados do usuário criador do perfil e indenização por danos morais.
A sentença determinou a exclusão do perfil e o fornecimento de informações, mas afastou a condenação em danos morais com base no artigo 19 do MCI, que estabelece a responsabilidade dos provedores apenas após descumprimento de ordem judicial.
Em grau recursal, o artigo 19 do MCI foi declarado inconstitucional, aplicando-se as normas do Código de Defesa do Consumidor (CDC) e impondo responsabilidade objetiva ao provedor, independentemente de ordem judicial.
O Facebook interpôs então o recurso extraordinário objeto do debate para questionar a decisão de inconstitucionalidade do artigo 19, sustentando que: i) a norma é do MCI é constitucional, pois protege a liberdade de expressão e impede a censura privada; ii) a responsabilização do provedor somente deve ocorrer após ordem judicial específica, conforme previsto no Marco Civil da Internet; iii) a aplicação do Código de Defesa do Consumidor de forma genérica contraria o princípio da especialidade, pois o MCI regula de forma específica a responsabilização no contexto digital.
Como os tribunais interpretavam a responsabilidade civil por conteúdos online antes e depois do Marco Civil da Internet?
É importante entender o contexto prévio e o vigente, com a publicação, em 23.06.2014, do Marco Civil da Internet (“MCI”).
Antes da entrada em vigor do Marco Civil da Internet (MCI), as decisões judiciais sobre a responsabilidade de provedores de aplicações de internet eram marcadas por inconsistências, reflexo da ausência de uma legislação específica sobre o tema.
De um lado, havia entendimentos que eximiam os provedores de aplicações de internet de qualquer responsabilidade pelo conteúdo publicado por terceiros, fundamentados na impossibilidade técnica de exercer controle sobre o que era exibido ou postado em suas plataformas. Por outro lado, decisões conflitantes imputavam aos sites responsabilidade objetiva, ou seja, independente da comprovação de culpa, aplicando, de forma ampla, os dispositivos e princípios do Código de Defesa do Consumidor.
Nesse sentido, trazemos a título exemplificativo duas ementas de julgamentos, de Tribunais Estaduais distintos, sobre a mesma matéria, havidos antes da publicação do MCI:
“O prestador do serviço facebook responde de forma objetiva pelo conteúdo difamatório de mensagens veiculadas em páginas de sua responsabilidade.” (TJ-MG - AC: 10435120001951001 MG, Relator: Saldanha da Fonseca, Data de Julgamento: 11/09/2013, Câmaras Cíveis / 12ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 20/09/2013)
“A fiscalização prévia, pelo provedor de conteúdo, in casu, o Facebook, do teor das informações postadas na web por cada usuário não é atividade intrínseca ao serviço prestado, de modo que não se pode reputar defeituoso, nos termos do art. 14 do CDC, o site que não examina e filtra os dados e imagens nele inseridos.” (TJ-GO - AC: 02288935220118090051 GOIANIA, Relator: Maria das Graças Carneiro Requi, Data de Julgamento: 07/08/2012, 1ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 17/08/2012)
A partir daí, as decisões e as discussões sobre o tema tomaram outros rumos para que a responsabilidade dos sites só seria aplicada acaso ele fosse notificado pelo interessado, suposto lesado, e se recusasse a retirar os conteúdos das redes.
Apesar disso, com a maturação da temática, percebeu-se que essa modalidade não resolvia a celeuma, já que permitia que o notificante / lesado se tornasse juiz do seu próprio caso. É dizer que, naquela época, bastava que alguém se sentisse prejudicado ou ofendido para notificar o site e potencialmente remover o conteúdo da internet, sem que pudesse existir um juízo de valor sobre o próprio conteúdo em si e a liberdade de expressão, fomentando uma espécie de censura privada.
Foi, então, que o legislador optou por uma outra via que, mediante o regime de notificação, também trabalha em certa medida com a responsabilidade subjetiva, mas com uma grande preocupação com a liberdade de expressão. Tanto é que o MCI trouxe a liberdade de expressão em diversos artigos do MCI (artigos 2º, 3º, 8º, 19º).
O professor CARLOS AFFONSO DE SOUZA contextualiza a preocupação do legislador com a liberdade expressão ensinado que: “A liberdade de expressão recebeu um tratamento destacado no Marco Civil da Internet (Lei 12965/2014). Ao redor das cinco menções à proteção desse direito, temas de natureza prática emergem em ações judiciais que buscam definir a abrangência da tutela conferida pela lei à manifestação do pensamento na rede. Do questionamento sobre o discurso anônimo aos desafios de implementação da responsabilidade civil por conteúdos de terceiros, o artigo passa em revista o tratamento dado ao tema pelo Marco Civil da Internet.”¹.
Como regra para a retirada de conteúdo ofensivo e responsabilização do provedor de aplicações de internet no país, o Marco Civil da Internet trouxe na redação do artigo 19 o seguinte:
Art. 19. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário. (original sem grifos).
Portanto, com o Marco Civil da Internet, o legislador optou pela responsabilidade civil por omissão do provedor que, após ordem judicial específica, não retira das redes conteúdo tido como ofensivo.
O artigo 19 do MCI também deixou claro que a notificação extrajudicial para remoção de conteúdo, excetuadas as situações mais graves previstas no art. 21, não gera o dever de retirada, ficando o Poder Judiciário como a instância legítima para analisar e definir a ilicitude do conteúdo postado nas redes.
É importante também destacar que a remoção de conteúdo da internet não depende exclusivamente de ordem judicial ou notificação, podendo o provedor de aplicações de internet, por sua conta e risco, optar por remover determinado conteúdo, notadamente quando entender que uma publicação, postagem, manifestação, etc., viola os termos de uso do provedor.
Por que a constitucionalidade do artigo 19 do MCI está sendo discutida?
O Marco Civil da Internet adotou um modelo de responsabilidade civil, que pode ser chamado de responsabilidade civil subjetiva por omissão, uma vez que os provedores de aplicações de internet (redes sociais, plataformas de conteúdo, etc) só poderão ser responsabilizados por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se: a) houver uma ordem judicial específica determinando a remoção do conteúdo e b) o provedor não cumprir essa ordem judicial.
A partir daí, surgiram discussões a respeito de dois princípios constitucionais brasileiros, de igual importância e relevância, quais sejam, a liberdade de expressão e a proteção aos direitos da personalidade (honra, imagem, intimidade, vida privada e dignidade da pessoa humana).
De maneira bastante objetiva, defendem os favoráveis a constitucionalidade do artigo 19 do MCI que ele protege a liberdade de expressão e repele a censura prévia e particular, evitando que provedores de aplicações na internet sejam obrigados a remover conteúdos com base em mera notificação extrajudicial. Para esta corrente de pensamento, a exigência de ordem judicial garante que o conteúdo tido como ilícito seja analisado previamente pelo Poder Judiciário antes de qualquer remoção, garantindo-se o direito ao contraditório e à ampla defesa.
Em sentido oposto, aqueles que defendem a inconstitucionalidade do artigo 19 do MCI, também de maneira bastante objetiva, entendem que o modelo atual dificulta a proteção de vítimas de conteúdos ofensivos, colocando em risco o direito da personalidade, já que exige que elas enfrentem o tempo e os custos de uma ação judicial para obter a remoção de materiais ilícitos, muitas vezes causando danos irreparáveis.
Para esta corrente, há limites para a liberdade de expressão, especialmente quando ela entra em conflito com outros direitos fundamentais, de igual importância, como a dignidade humana. A demora na remoção de conteúdos ofensivos pode agravar os danos à honra, imagem e privacidade da vítima, sendo que a exigência do artigo 19 do MCI inviabiliza uma resposta rápida e eficaz contra conteúdos prejudiciais, violando os direitos da personalidade protegidos pela Constituição Federal.
Por que a decisão do Supremo Tribunal Federal é importante?
Como dito, o julgamento do tema pelo STF terá efeito vinculante, afetando todos os casos semelhantes no Poder Judiciário, devendo todos os juízes, em regra, seguir os parâmetros definidos pela Suprema Corte, pois a decisão vinculará as instâncias inferiores ao entendimento do STF.
A decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a constitucionalidade do artigo 19 é de grande relevância, pois deverá i) definir o papel dos provedores de internet na moderação de conteúdos; ii) estabelecer limites para a liberdade de expressão no ambiente digital; e iii) afetar a forma como vítimas de conteúdos ofensivos buscam reparação e proteção no Judiciário.
A decisão poderá influenciar o comportamento das plataformas digitais no país, as estratégias das vítimas para proteger seus direitos e a forma como a internet será regulada no Brasil.
Como votou o Relator – Ministro Dias Tofolli?
O Ministro Dias Toffoli propôs a instituição de regime híbrido, subjetivo e objetivo, a depender da situação ou gravidade do conteúdo postado nas plataformas de internet.
Na leitura e exposição de seu voto, que aconteceu entre as sessões do dia 28 de novembro e 5 de dezembro deste ano, Dias Toffoli criticou o artigo 19 da Lei nº 12.965/2014.
O Ministro argumentou que o artigo 19 do Marco Civil da Internet impõe burocracia excessiva, beneficiando plataformas e prejudicando vítimas de crimes digitais, como cyberbullying e disseminação de desinformação.
Como regra geral, Toffoli propôs a substituição do ditame do artigo 19 pelo artigo 21² do Marco Civil da Internet, ampliando sua aplicação para além das situações relacionadas à dignidade sexual, previstas originalmente no texto.
Essa interpretação permitiria que a notificação direta pelo usuário à plataforma seja suficiente para marcar o início da responsabilidade civil do provedor, desde que a plataforma não tome providências em um prazo razoável, o que o Ministro Relator chama de “Notice and Analysis”.
O Ministro Relator definiu ainda que o conteúdo infringente, apto a ser retirado por notificação, é aquele conteúdo ilícito ou ofensivo.
Além disso, o Ministro Dias Toffoli destacou os impactos contemporâneos das notícias fraudulentas, ou fake news, classificando-as como ilegais e sujeitas ao novo regime proposto.:
“Esclarece-se que também se considera ilícito o material inequivocamente desinformativo, a notícia fraudulenta, assim compreendida aquela que seja integral ou parcialmente inverídica que tenha aptidão para ludibriar o receptor, influenciando o seu comportamento com a finalidade de alcançar vantagem específica e indevida.”
O voto do Ministro Relator também introduziu hipóteses de responsabilidade objetiva para provedores de internet, independentemente de notificação, em situações de maior gravidade. Essas situações incluem i) a propagação exacerbada de conteúdos ilícitos por meio de algoritmos; ii) a omissão em moderar conteúdos evidentemente ofensivos; e iii) a manutenção de contas inautênticas.
Toffoli ainda listou hipóteses taxativas de responsabilidade objetiva para os provedores, tais como:
1. Crimes contra o Estado Democrático de Direito.
2. Atos de terrorismo.
3. Crimes de induzimento ou instigação ao suicídio.
4. Racismo.
5. Violência contra mulheres.
6. Infrações sanitárias.
7. Tráfico de pessoas e incitação à violência física ou sexual.
8. Divulgação de fake news com potencial de incitar violência ou causar dano eleitoral.
Além das hipóteses taxativas acima propostas, o Ministro defendeu que o provedor de aplicativos de internet deve responder de maneira objetiva por danos causados por conta / perfis de usuários não autênticos.
O voto do Ministro Relator também delimitou situações em que as plataformas digitais não serão responsabilizadas pelo conteúdo publicado por terceiros, afastando-as da regra geral proposta para o artigo 21 da Lei nº 12.965/2014. Tais hipóteses, segundo o Ministro, visam preservar o equilíbrio entre a liberdade de inovação e a proteção contra abusos digitais.
Entre as exclusões, destacam-se:
1. Serviços de e-mail;
2. Serviços de reuniões fechadas por vídeo e voz;
3. Mensageria privada e comunicações interpessoais;
Contudo, a presunção de exclusão de responsabilidade não se aplica em casos de funcionalidades mistas, como grupos públicos que permitam alcançar um número indeterminado de pessoas.
O voto do Relator ainda trouxe orientações específicas sobre marketplaces, destacando que plataformas que viabilizam transações de compra e venda poderão ser responsabilizadas nas situações de comercialização de produtos ilegais, proibidos ou que não atendam às exigências de certificação ou regulamentação.
Atualmente, porém, os provedores de aplicações de internet só respondem subsidiariamente por danos gerados em decorrência de conteúdo publicado por terceiro, e apenas após o desatendimento de uma ordem judicial específica, conforme dispõe o artigo 19 do Marco Civil da Internet (MCI).
A jurisprudência atual entende que não é possível impor aos sites de intermediação a responsabilidade de realizar a prévia fiscalização sobre a origem de todos os produtos. Os provedores de aplicações de internet não têm a obrigação de excluir publicações realizadas por terceiros em suas páginas, por violação aos termos de uso, devido a existência de requerimento extrajudicial. (STJ. REsp n. 2.088.236/PR, julgado em 23/04/2024.
O julgamento no STF inaugura uma nova fase no debate sobre constitucionalidade da responsabilização de conteúdos publicados na internet brasileira, a forma de atuação dos provedores de aplicações de internet e a todos usuários destas plataformas no país. Assim, diante da relevância do tema, estamos acompanhando o desfecho da questão na Suprema Corte.
¹ SOUZA, Carlos Affonso Pereira de. As Cinco Faces da Proteção à Liberdade de Expressão no Marco Civil da Internet. Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS), Disponível em: https://itsrio.org/wp-content/uploads/2018/06/as_cinco_faces.pdf Acesso em: 11 dez. 2024.
² Art. 21. O provedor de aplicações de internet que disponibilize conteúdo gerado por terceiros será responsabilizado subsidiariamente pela violação da intimidade decorrente da divulgação, sem autorização de seus participantes, de imagens, de vídeos ou de outros materiais contendo cenas de nudez ou de atos sexuais de caráter privado quando, após o recebimento de notificação pelo participante ou seu representante legal, deixar de promover, de forma diligente, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço, a indisponibilização desse conteúdo.
Parágrafo único. A notificação prevista no caput deverá conter, sob pena de nulidade, elementos que permitam a identificação específica do material apontado como violador da intimidade do participante e a verificação da legitimidade para apresentação do pedido.