Breves comentários à Lei de Liberdade Econômica


Breves comentários à Lei de Liberdade Econômica


Por Alessandra Souza e Natasha Hinata

Como advogadas atuantes em direito empresarial, escolhemos analisar a lei mais recente a prometer tocar em temas importante e urgentes ao ambiente de negócios no Brasil, tais como a necessária diminuição burocrática e a facilitação dos instrumentos de que dispõe o nosso empresariado: a Lei Federal n. 13.874, de 20 de setembro de 2019, chamada de “Lei de Liberdade Econômica”.

Passados 6 meses da edição da Lei de Liberdade Econômica, e ultrapassados 3 meses da promulgação do Decreto n. 10.178, de 18 de dezembro de 2019, que a regulamentou, é possível avaliarmos de maneira mais clara os seus reflexos para o ambiente empresarial.

Com a premissa de proteger a livre iniciativa e o livre exercício de atividade econômica, essa lei não se limitou a tratar de temas de direito societário, mas sim do que chamamos, de forma ampla, do direito econômico: uma intersecção entre direito civil, societário, regulatório e trabalhista (ficando de fora o direito tributário, como a própria lei indica).

Possivelmente, seus maiores reflexos, do ponto de vista societário, decorrem da previsão da possibilidade de constituição de sociedade limitada com um único sócio. Embora a figura de uma sociedade individual com responsabilidade limitada já existisse desde 2011, quando foi criada a Empresa Individual de Responsabilidade Limitada – EIRELI, a autorização trazida pela Lei da Liberdade Econômica apresentou dois grandes diferenciais, a saber, a ausência de capital social mínimo e o limite quanto ao número de sociedades com esta característica que uma pessoa, física ou jurídica, poderá deter.

Essas limitações buscavam a proteção de terceiros que viessem a fazer negócios com as sociedades deste tipo, a partir de um capital mínimo que garantisse suas atividades, e a mitigação da possibilidade de utilização das múltiplas sociedades como instrumento de fraude (por exemplo, a constituição de várias EIRELIs por uma mesma pessoa visando exclusivamente à segregação patrimonial e à limitação de sua responsabilidade perante terceiros). 

A ausência de previsões neste sentido para a sociedade limitada unipessoal trazida pela Lei de Liberdade Econômica acabou sendo vista como um facilitador para a criação de sociedades com um único sócio. E, apesar das previsões iniciais, essa autorização da sociedade limitada unipessoal parece não ter inibido ou desincentivado a utilização da EIRELI como instrumento para desenvolvimento de novos empreendimentos. Em consulta na base de dados da Junta Comercial do Estado de São Paulo, foi possível identificar a constituição de mais de 25 mil novas EIRELIs no Estado de São Paulo durante o período de vigência da Lei da Liberdade Econômica1. Isso representaria, segundo a base de dados da autarquia, 10% das EIRELIs constituídas desde a criação do instrumento, em 2011.

Infelizmente, não é possível fazer um quadro comparativo com relação à quantidade de novas sociedades limitadas unipessoais (constituídas ou convertidas), uma vez que a base de dados da JUCESP não traz essa informação de forma segregada. Ainda assim, esse dado isolado nos permite concluir que a possibilidade de haver uma sociedade limitada com apenas um sócio não “matou” a EIRELI.

Por outro lado, a sociedade limitada unipessoal acabou resolvendo questões das famosas sociedades com sócios com uma única quota, ou das sociedades que passaram a ter um único sócio por morte ou retirada dos demais, além de efetivamente permitir a sua utilização como o instrumento de empreendedorismo buscado quando da criação da EIRELI.

A Lei, entretanto, falhou ao não adequar a redação do Código Civil que determina que a falta de recomposição da pluralidade de sócios em 180 dias ocasionará a dissolução da sociedade limitada, ressalva corretamente feita para o caso das EIRELIs. Em outras palavras, poderíamos estar em um cenário em que apenas as sociedades constituídas originalmente como unipessoais poderiam existir, ao passo que aquelas já existentes que passassem a ter um único sócio poderiam ser dissolvidas caso ultrapassado o prazo de 180 dias sem a alteração da condição de unipessoais.

Para esclarecer esse ponto, o Departamento de Registro de Empresarial e de Integração (DREI) publicou instrução normativa garantindo a possibilidade de unipessoalidade em sociedades limitadas a partir de constituição originária, saída de sócios da sociedade por meio de alteração contratual, bem como de transformação, fusão, cisão, conversão etc.

Esse entendimento vem sendo confirmado em nossas experiências recentes com registros perante a Junta Comercial do Estado de São Paulo.

De forma geral, o restante da norma apresentou uma grande leva de princípios sobre o desenvolvimento e o crescimento econômicos do País e a garantia da proteção à livre iniciativa e ao livre exercício de atividade econômica, sem, entretanto, trazer efetivas alterações ou inovações sobre os temas nela constantes. A ideia da redução da burocracia envolvida na constituição e manutenção da atividade empresarial prometida por esta lei é urgente e aceita de maneira quase unânime. Entretanto, ainda hoje, 6 meses depois de sua edição, olhamos para o lado e lá está ela!

Observamos, assim, que, ainda que trate de uma série de anseios do mercado, a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica não trouxe – por enquanto – grandes reflexos práticos para o ambiente empresarial, e sua aplicabilidade, em verdade, ficou pendente de implementação de diversas ações específicas.

A questão que gostaríamos de deixar para reflexão, ao cabo desses breves comentários, é se essa lei, embora carregada de princípios que são caros ao desenvolvimento de um ambiente empresarial saudável, surte o efeito prático que dela se espera. No nosso entender, ainda que ela (a lei) contribua positivamente (vide a simplificação que a sociedade limitada unipessoal trouxe), o ambiente empresarial e empreendedor parece precisar de mais prática. Mais ferramentas, menos papel, por assim dizer. Faltam, nos parece, instrumentos como boa estrutura de tecnologia, treinamento técnico dos agentes públicos, entre outras ferramentas que ajudem os empresários, grandes, médios e pequenos, a gastar menos tempo com a forma e poder gastá-lo com a essência: movimentar nossa economia.

1 Fonte: Junta Comercial do Estado de São Paulo. Pesquisa no banco de dados do órgão realizada em 25.03.2020.