O sistema de registros públicos imobiliários no Brasil, intrinsecamente ligado à segurança jurídica e à dinâmica econômica, tem sido alvo de contínuo debate quanto à sua eficiência e desburocratização.
Em um movimento decisivo, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), por meio de deliberação de seu Plenário, proferida no Procedimento de Controle Administrativo n. 0001611-12.2023.2.00.0000, estabeleceu um marco relevante ao proibir a exigência de certidões negativas de débitos (CNDs) de qualquer natureza como condição para o registro de títulos nos serviços registrais imobiliários.
Essa medida não apenas simplifica o processo transacional, mas também clarifica as atribuições do registrador, harmonizando-as com a função precípua do registro público.
O Cenário Precedente: Complexidade Documental e Desvirtuamento Funcional
Até a recente intervenção do CNJ, o registro de títulos imobiliários era frequentemente condicionado à apresentação de uma vasta gama de certidões negativas. Era praxe a solicitação de documentos como a Certidão Negativa de Débitos Relativos aos Tributos Federais e à Dívida Ativa da União (CND/DAU), a Certidão Negativa de Débitos Trabalhistas (CNDT), e diversas certidões fiscais em âmbitos municipal e estadual. A justificativa subjacente a tais exigências, ainda que pautada na intenção de proteção do erário e prevenção de fraudes, criava um complexo emaranhado burocrático.
Os problemas decorrentes dessa prática eram multifacetados:
- Morosidade e Custo Elevado: A necessidade de obtenção e análise de múltiplas certidões prolongava significativamente o tempo necessário para a efetivação dos registros, aumentando os custos operacionais e transacionais.
- Desestímulo a Investimentos: A complexidade e a imprevisibilidade documental desestimulavam investimentos no setor imobiliário, impondo uma barreira adicional à fluidez dos negócios.
- Distorção da Função Registral: A atuação do registrador imobiliário, cuja finalidade primária é conferir autenticidade, publicidade, segurança e eficácia aos atos jurídicos conforme estabelecido na Lei nº 6.015/73 (Lei de Registros Públicos) e na Lei nº 8.935/94 (Lei dos Notários e Registradores), era desvirtuada para uma função quase fiscalizatória. Tal desvio contrariava o princípio da legalidade estrita e da especialidade objetiva, que limitam a qualificação registral à conformidade do título com a lei.
Essa prática gerava, portanto, uma série de problemáticas substanciais e um oneroso "custo Brasil". A burocracia inerente à obtenção e validação dessas certidões implicava em significativo prolongamento dos prazos para a efetivação dos registros – muitas vezes dias ou semanas adicionais –, elevando os custos operacionais e desestimulando investimentos. Mais do que isso, a exigência deturpava a própria finalidade institucional dos serviços de registro de imóveis.
Conforme o Art. 1º da Lei nº 8.935/94 (Lei dos Notários e Registradores) e o Art. 1º da Lei nº 6.015/73 (Lei de Registros Públicos), a essência do registro público reside em garantir a autenticidade, a publicidade, a segurança e a eficácia dos atos jurídicos, e não em funcionar como um braço fiscalizador ou arrecadador do Estado. A atuação do registrador passava a ser desvirtuada para uma função alheia à sua competência originária, criando uma insegurança jurídica paradoxal ao impedir a concretização de negócios jurídicos válidos por razões extrínsecas à substância do ato, contrariando princípios como o da legalidade estrita e o da especialidade objetiva.
A Deliberação do CNJ: A Afirmação dos Princípios Registrais
A decisão proferida no PCA n. 0001611-12.2023.2.00.0000 é inequívoca: o registro ou a averbação de um título não pode ser negado sob o fundamento da ausência de certidão negativa de débitos. O CNJ reafirmou que a pendência de obrigações fiscais ou trabalhistas não possui o condão de invalidar o negócio jurídico subjacente nem de justificar a recusa ou o sobrestamento do registro.
A fundamentação da deliberação ancora-se em pilares essenciais do direito registral e privado:
- Autonomia do Negócio Jurídico: A validade e a eficácia do negócio jurídico que dá ensejo ao registro (e.g., compra e venda) são independentes da situação fiscal ou creditícia das partes. A quitação de tributos e outras obrigações é uma relação jurídica autônoma, de direito público, que não se confunde com a substância e a perfeição do ato de disposição patrimonial entre particulares.
- Limites da Qualificação Registral: A função do registrador se restringe à análise da conformidade formal e material do título com a lei, sem adentrar na esfera da fiscalização tributária ou previdenciária. O oficial de registro deve ater-se à legalidade intrínseca do título, não lhe cabendo imiscuir-se nas relações obrigacionais entre os envolvidos na transação e o Fisco ou outros credores. O papel do registrador não é atuar como agente arrecadador ou fiscalizador do Estado.
- Mecanismos Próprios de Cobrança da Fazenda Pública: A Fazenda Pública e os demais credores dispõem de instrumentos legais e processuais específicos e eficazes para a cobrança de seus créditos, tais como a execução fiscal, a penhora, a hipoteca judicial e a decretação de indisponibilidade de bens (inclusive por meio da Central Nacional de Indisponibilidade de Bens - CNIB). O registro público não deve servir como sucedâneo ou condicionante para essas finalidades, sob pena de desvirtuar sua vocação fundamental.
Impactos e Vantagens da Nova Orientação
A proibição da exigência de CNDs para o registro imobiliário projeta uma série de benefícios para o mercado e a segurança jurídica, tais como:
- Desburocratização e Celeridade: A eliminação de uma etapa documental complexa agilizará significativamente as transações imobiliárias, desde a fase de negociação até a efetivação da transferência da propriedade, reduzindo prazos e custos.
- Reforço da Segurança Jurídica: Ao delimitar as atribuições do registrador e afastar interpretações discricionárias, a decisão confere maior previsibilidade e certeza aos atos registrais. Isso fortalece o princípio da fé pública registral e o princípio da concentração dos atos na matrícula, tornando a informação registral mais confiável e completa.
- Estímulo ao Mercado Imobiliário: Um ambiente regulatório mais enxuto e célere tende a fomentar novos investimentos e dinamizar as transações, contribuindo para o crescimento econômico do setor, geração de empregos e atração de capital, nacional e estrangeiro, ao reduzir o risco percebido nas operações.
- Foco na Essência da Função Registral: Os serviços de registro poderão dedicar-se integralmente à sua missão constitucional de garantir a publicidade, a autenticidade e a eficácia dos atos jurídicos, por meio de uma qualificação registral focada na legalidade e na regularidade formal e material dos títulos.
Conclusão: Modernização e Racionalização do Sistema Registral
A decisão do CNJ no PCA n. 0001611-12.2023.2.00.0000 transcende a mera desburocratização; representa uma medida estratégica de modernização do sistema de registros públicos, alinhando-o às melhores práticas de segurança jurídica e eficiência econômica.
Ao estabelecer uma distinção clara entre o ato de registro e a fiscalização de débitos, o CNJ contribui para um direito imobiliário mais transparente, ágil e, não obstante, mais seguro. Essa nova diretriz reafirma os princípios que governam a atividade registral, colocando-a a serviço da efetivação dos direitos reais.
Para advogados especializados e operadores do direito, essa orientação impõe uma atualização da prática e da consultoria, abrindo caminho para um mercado imobiliário mais dinâmico e menos onerado por formalidades desproporcionais, pavimentando a concretização de transações mais fluidas e previsíveis e, em última instância, beneficiando toda a sociedade por meio da simplificação do acesso à propriedade e à segurança jurídica.
