A compra de vacinas pelo setor privado: cenário atual e perspectivas legais


A compra de vacinas pelo setor privado: cenário atual e perspectivas legais


Em 10 de março deste ano, o presidente da República sancionou a Lei nº 14.124/2021 e a Lei nº 14.125/2021, que, no âmbito da estratégia de imunização contra a Covid-19 no Brasil, entre outras coisas, abordam a possibilidade de compra de vacinas pelo setor privado.

Em suma, as referidas leis estabelecem medidas excepcionais relativas à aquisição de vacinas e de insumos, bem como condições para aquisição e comercialização de vacinas por pessoas jurídicas de direito privado.

Especificamente com relação à compra de vacinas por empresas privadas, a Lei nº 14.125/2021 autorizou expressamente tal medida. Todavia, num primeiro momento, conforme previsto em seu artigo 2º, essas empresas só poderão adquirir diretamente vacinas contra a Covid-19 aprovadas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para que sejam integralmente doadas ao Sistema Único de Saúde (SUS), a fim de serem utilizadas no âmbito do Programa Nacional de Imunizações (PNI).

Somente após o término da imunização dos grupos de risco prioritários, conforme definido pelo Ministério da Saúde no Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação (PNOV), o setor privado poderá (atendidos os requisitos legais e sanitários) adquirir, distribuir e administrar vacinas, desde que pelo menos 50% das doses sejam, obrigatoriamente, doadas ao SUS e as demais sejam utilizadas de forma gratuita.

Sem prejuízo do disposto, importante ressaltar que a atual legislação autoriza expressamente que a União, os estados, o Distrito Federal e os munícipios assumam a responsabilidade civil decorrente de eventos adversos pós-vacinação contra a Covid-19, desde que tais produtos estejam devidamente autorizados pela Anvisa. A Lei nº 14.125/2021 ainda diz que os referidos entes federativos poderão constituir garantias ou contratar seguro privado, nacional ou internacional, em uma ou mais apólices, para a cobertura dos riscos decorrentes de eventos adversos das vacinas contra a Covid-19.

No entanto, a mesma Lei nº 14.125/2021 fala expressamente que essa assunção de riscos relativos à responsabilidade civil decorrente de eventos adversos pós-vacinação contra a Covid-19 restringe-se às aquisições feitas pelo respectivo ente público. Fica então a dúvida: será que o setor privado poderá/conseguirá adquirir vacinas se não assumir esse mesmo tipo de responsabilidade?

Perspectivas legais
Em primeiro lugar, cumpre ressaltar que a própria Lei nº 14.124/2021, antes de ser sancionada, teve alguns de seus dispositivos vetados pelo presidente da República. Esses vetos aguardam apreciação do Congresso mas, de modo geral, não devem interferir na eventual compra de vacinas pelo setor privado, pois tratam da aquisição de imunizantes por entes federativos.

Embora vigente, a Lei nº 14.125 foi matéria de discussão em decisão recente proferida pelo juiz federal Rolando Spanholo, da 21ª Vara Federal Cível do Distrito Federal, no Processo nº 1013225-55.2021.4.01.3400. O juiz declarou ser inconstitucional parte do referido artigo 2º da lei em questão: o dispositivo que obriga as entidades de direito privado a doarem integralmente as doses das vacinas adquiridas ao SUS e o dispositivo que prevê que somente após concluída a imunização dos grupos prioritários, as entidades de direito privado estariam autorizadas a adquirir e distribuir vacinas, desde que fossem doadas ao menos 50% das doses ao SUS.

A decisão foi proferida no dia 25 de março, e o magistrado deferiu a liminar pleiteada por três entidades autorizando a imediata importação das vacinas, a fim de declarar a inconstitucionalidade parcial do artigo 2º da referida lei, e total do artigo 1°. Em sua decisão, o magistrado afirmou que "(...) de fato, procede o argumento de que, em termos práticos, por via indireta, a Lei 14.125/21, ao invés de flexibilizar e permitir a participação da iniciativa privada, acabou "estatizando" completamente todo o processo de imunização da Covid-19 em solo brasileiro".

No entanto, no último dia 17 de abril, diante do agravo de instrumento interposto pela Anvisa em face da decisão mencionada acima, o desembargador Souza Prudente deu provimento ao recurso a fim de sobrestar a decisão agravada até pronunciamento definitivo da turma julgadora.

Além disso, apesar da recente sanção da Lei nº 14.124/2021 e da Lei nº 14.125/2021, já tramita no Congresso o Projeto de Lei nº 948 de 2021 (PL nº 948/2021), de autoria do deputado Hildo Rocha do MDB-MA, apresentado com o objetivo de alterar a Lei nº 14.125/2021.

O PL nº 948/2021 pretende alterar justamente a redação do artigo 2º da Lei nº 14.125/21, que já previa a aquisição e distribuição de doses da vacina do Covid-19 pelo setor privado. O novo texto dispensa a obrigatoriedade do aval de autorização pela Anvisa, se as vacinas adquiridas possuírem a autorização de agências reconhecidas pela Organização Mundial da Saúde (OMS).

O referido projeto prevê também que as entidades de direito privado contratem estabelecimentos de saúde que tenham autorização para importar vacinas, entre eles hospitais, clínicas particulares e farmácias. A relatora do projeto, deputada Celina Leão (PP-DF), ainda incluiu que a imunização dos empregados deve seguir os critérios estabelecidos pelo Programa Nacional de Imunizações (PNI), sob pena de multa estipulada em dez vezes o valor da compra das vacinas, além das sanções penais e administrativas previstas pelo descumprimento.

Ademais, o PL nº 948/2021 autoriza que funcionários e empregados das empresas que adquiriram as vacinas também sejam imunizados, além de trabalhadores sob o regime de contrato de trabalho temporário ou terceirizado de forma gratuita. O intuito do novo projeto é buscar uma colaboração entre o setor privado e o setor público, a fim de unir esforços no combate contra o vírus da Covid-19, "de modo que tal medida visa permitir que a iniciativa privada possa arcar com os custos da vacinação daqueles que estão a ela vinculados", na redação da proposta elaborada pelo deputado Hildo Rocha.

Apesar de ter sofrido algumas críticas na Câmara dos Deputados, o PL nº 948/2021 foi aprovado em sessão deliberativa extraordinária no dia 7 de abril, com algumas alterações no Plenário referentes às Emendas de nº 1 a 17, e 9 a 22, rejeitadas pelas Comissões Permanentes da Câmara, e aprovação parcial da Emenda nº 18. Na sequência, foi encaminhado ao Senado Federal para apreciação com a redação final da relatora deputada Celina Leão.

Entre as emendas apresentadas, destacam-se as Emendas nºs 1 e 2, referentes aos gastos suportados pelas empresas na aquisição e aplicação das vacinas, sendo proposta a vedação de qualquer isenção tributária sobre os valores gastos e abatimento no Imposto de Renda dos entes privados. Ademais, foram apresentadas as Emendas nºs 7, 12, 13 e 14, que pretendiam ampliar os grupos prioritários de vacinação.

As demais emendas versam mais especificamente sobre a questão da doação das vacinas adquiridas pelo setor privado ao SUS, sendo o entendimento majoritário, a permissão para aquisição, aplicação e distribuição de vacinas pelo setor privado somente após imunização total ou parcial dos grupos prioritários previsto pelo Plano Nacional de Imunização, e a conseguinte doação de 50% das doses de vacinas adquiridas pelas empresas ao setor público de saúde.

A Emenda nº 18, apresentada pelo deputado Lucas Vergilio (Solidariedade-GO), parcialmente acatada no Plenário, prevê que as associações para fins não econômicos possam repassar o custo de aquisição das vacinas para seus associados, a fim de facilitar a aquisição das vacinas por associações, sindicatos e cooperativas.

Atualmente, o projeto de lei teve sua apreciação concluída pela Câmara dos Deputados e segue aguardando apreciação pelo Senado Federal, que decidirá sobre a aprovação do projeto ou eventuais emendas necessárias.

Tendo em vista todo o exposto, a compra de vacinas contra a Covid-19 pelo setor privado permanece incerta. Além da legislação aplicável estar em debate, tanto no Congresso como no Poder Judiciário, há de se considerar os aspectos práticos da aquisição.

No passado, o governo teve dificuldades para negociar a responsabilidade das fabricantes de vacinas e agora está com dificuldades de implementar o plano de imunização nacional de grupos de risco prioritários por conta da quantidade insuficiente de vacinas no mercado. Assim, ainda que os textos legais possibilitem a compra de imunizantes pelo setor privado, não se pode afirmar que as empresas interessadas terão acesso às vacinas ou que haverá um consenso acerca da responsabilização em caso de eventual efeito adverso do imunizante no mercado privado.

* A estagiária Gabriela Soares Mussallam contribui com a autoria desse artigo.

Publicado no Conjur.