“Futebol, a coisa mais importante das menos importantes” – A responsabilidade da SAF pelos créditos anteriores à sua constituição e repasse de recursos para a associação


“Futebol, a coisa mais importante das menos importantes” – A responsabilidade da SAF pelos créditos anteriores à sua constituição e repasse de recursos para a associação


A célebre frase de Arrigo Sacchi, título do presente artigo, é apenas uma singela demonstração da importância do esporte para o ex-técnico italiano. Para o brasileiro, de maneira geral, o sentimento parece ser o mesmo, o maior esporte do mundo ultrapassa os limites da racionalidade, é paixão nacional, torna-se folclórico e exerce, até mesmo, importante função social.

Contudo, se afastado o amor dos torcedores, permanecem as associações civis, principal regime jurídico adotado pelos clubes de futebol no Brasil, pelo menos por enquanto. Com a Lei n. 14.193/2021 (“Lei da SAF”), a Sociedade Anônima do futebol (“SAF”) finalmente saiu do papel, entrou em campo e ganhou contornos de maior seriedade e profissionalismo. 

A SAF pode ser constituída de diferentes maneiras, nos termos dos incisos do artigo 2º da Lei da SAF: (i) pela transformação do clube ou pessoa jurídica original em SAF; (ii) pela cisão do departamento de futebol do clube ou pessoa jurídica original e transferência do seu patrimônio relacionado à atividade futebol; e, ainda, (iii) pela iniciativa de pessoa natural ou jurídica ou de fundo de investimento. Por fim, nos termos do artigo 3º da Lei da SAF, o clube ou pessoa jurídica original, poderá transferir à nova companhia os seus ativos para integralização do capital social da SAF, tornando-se acionista (dropdown).

Como consequência da forma de constituição da SAF, a única hipótese na qual não há que se falar em credores anteriores é a prevista no inciso III do artigo 2º, ou seja, quando a SAF não está vinculada a um clube ou pessoa jurídica originária. Nos outros casos – de transformação, de cisão ou de dropdown do departamento de futebol – um dos temas mais sensíveis, e que sem dúvida fomentará diversas discussões no mundo jurídico, é justamente o tratamento que os credores prévios receberão.

Isto porque, a Lei n. 14.193/2021 prevê o chamado Regime Centralizado de Execuções (“RCE”) em seus artigos 14 a 24, e, ainda, admite expressamente a possibilidade de recuperação judicial dos clubes de futebol, abrangendo inclusive aqueles constituídos na forma de associação civil. 

Embora a adoção de regimes diferenciados para os clubes não seja uma novidade, como ocorre, por exemplo, no Plano Especial de Pagamento Trabalhista – PEPT, que já previa a centralização de execuções no âmbito da Justiça do Trabalho, nenhuma lei foi tão abrangente quanto a Lei da SAF.

Com base nos artigos 9º e 10º da Lei da SAF, ficou estabelecido que (i) a SAF não responde pelas obrigações do clube ou pessoa jurídica original que a constituiu, anteriores ou posteriores à data de sua constituição; e (ii) o clube ou a pessoa jurídica original é responsável pelas obrigações anteriores à constituição da SAF, por meio de receitas próprias, mas, principalmente, por destinação de 20% das receitas correntes mensais auferidas pela SAF e por destinação de 50% dos dividendos, dos juros sobre o capital próprio ou de outra remuneração recebida da SAF, na condição de acionista. 

Aliado à essa forma de tratamento das obrigações da SAF e do clube ou pessoa jurídica originária, desde que os artigos anteriormente citados sejam respeitados, a Sociedade Anônima do Futebol não poderá ter seus bens bloqueados com relação às obrigações anteriores à sua constituição, nos termos do artigo 12 da referida lei. Essa disposição visa conferir segurança jurídica, diferenciando e protegendo o patrimônio da SAF e do clube. Trata-se de questão fundamental para o modelo se tornar atrativo a investidores. 

O RCE consiste em concentrar, no juízo centralizador das execuções, as receitas e os valores arrecadados da SAF na forma do art. 10, bem como distribui-los aos credores em concurso e de forma ordenada. A principal vantagem do regime é a possibilidade de dilatar o prazo da dívida em 6 anos, prorrogáveis por mais 4, caso o clube ou a pessoa jurídica originária comprove a adimplência de 60% do seu passivo original. Inclusive, nesta prorrogação, o interessado poderá pedir a redução de 20% da vinculação das receitas correntes mensais da SAF para 15%. Além disso, somente após o decurso do prazo previsto no artigo 15, a SAF passará a ter responsabilidade subsidiária pelo cumprimento das obrigações civis e trabalhistas anteriormente constituídas pelo clube (inteligência do artigo 24 c/c artigo 15 da mesma Lei).

A lei ainda faculta às partes a possibilidade de realizar acordo por meio de negociação coletiva, estabelecendo plano de pagamento de forma diversa, nos termos do artigo 19. Contudo, essa possibilidade carece de maior regulamentação, uma vez que, por exemplo, não foi definido o quórum de aprovação. Portanto, ainda será necessário observar como os tribunais enfrentarão as controvérsias decorrentes da negociação coletiva no âmbito da SAF.

Apesar deste regime especial, o clube ou pessoa jurídica originária poderá optar pela recuperação judicial nos termos da Lei n. 11.101/2005, opção esta que, apesar de não contar, a princípio, com o prazo de 6 anos, prorrogáveis por mais 4 do RCE, possui maior estabilidade. Isso porque, o procedimento de recuperação judicial já foi amplamente experimentado ao longo dos mais de quinze anos de vigência da lei. E, justamente por ser um regime mais testado, com controvérsias já superadas pelos tribunais e por contar com maior familiaridade dos operadores do direito, pode atrair muitos interessados.

Outro aspecto interessante surge no que tange o inciso II, do artigo 10, da Lei da SAF, quando o legislador vincula a destinação de 50% dos juros sobre o capital próprio (“JCP”), dentre outras remunerações recebidas da SAF pelos acionistas, ao pagamento das dívidas do clube ou da pessoa jurídica original. É que, apesar de nos parecer não ser um instituto atraente para uma sociedade sujeita ao regime de tributação do tipo simplificado, o TEF (Regime de Tributação Específica do Futebol), no qual a dedução de despesas, tal como o JCP, não tem repercussão favorável na carga tributária da empresa, sua distribuição não é vedada. Acreditamos que o intuído do legislador foi de proteção aos credores, evitando que o pagamento de JCP fosse um canal de remuneração ao clube ou à pessoa jurídica original, na condição de acionista, que pudesse ser integralmente destinada a outros fins que não a liquidação das dívidas mantidas no clube ou na pessoa jurídica original. 

Sob outro enfoque, mas ainda tratando dos repasses financeiros que a Lei da SAF prevê, não podemos deixar de comentar sobre o tratamento tributário em relação às tais novas fontes de receita dos clubes que constituírem suas SAFs, conforme previsto no artigo 10 da Lei da SAF, já que poderá ser atraída a velha discussão acerca da tributação de receitas que não são derivadas de suas atividades próprias com vistas à (im)possibilidade de isenção da Cofins, uma vez que, já na constituição da SAF, o objeto social vinculado ao futebol será subtraído do clube e atribuído à SAF, restando ao clube apenas as atividades residuais. 

Seja qual for a escolha do clube ou da pessoa jurídica originária, percebe-se que a Lei da SAF traz um leque de opções para flexibilização do pagamento das dívidas, possibilitando não apenas uma restruturação, mas que o clube se torne atrativo para investidores que venham a se utilizar da Sociedade Anônima do Futebol para assumir o árduo trabalho de fazer uma gestão de futebol profissional. 

Apesar das críticas endereçadas à flexibilização do pagamento das dívidas e à blindagem patrimonial da SAF, é imprescindível enfrentar a realidade de alto endividamento do futebol brasileiro, sem que os credores sejam “jogados para escanteio”. 

A Lei da SAF tem, portanto, o nobre intuito de auxiliar na profissionalização da gestão do futebol, deixando a paixão para os torcedores, e servindo como ferramenta para ajudar a transformar o negócio do futebol em cases rentáveis e economicamente atrativos. Neste cenário, o papel dos tribunais será fundamental para estabelecer os limites da blindagem patrimonial da SAF a fim de promover a sua viabilidade, sem prejuízo dos credores. 

Destaca-se que o desafio para lidar com estas mudanças em evidência já foi lançado, o que pode ser observado em casos como o da SAF do Cruzeiro, que vem sendo demandada em juízo por dívidas do clube associação. No âmbito dessas ações, o Cruzeiro SAF foi condenado pelo Tribunal Regional de Minas Gerais a pagar uma dívida de R$45.000,00 ao ex-treinador de goleiros do time, Fábio Anderson Fagundes, mas em outra decisão mais recente, a mesma sociedade anônima de futebol teve resultado satisfatório e não foi condenada pela dívida cobrada pelo ex-fisiologista do clube Emerson Garcia1. Portanto, a aparente divergência nas decisões demonstra que a estrutura de alocação das responsabilidades, ainda incipiente, não conta com entendimento consolidado nos tribunais.

Nesse sentido, não há como olvidar que a Lei da SAF, como toda legislação nova, será bastante testada na prática, discutida pela doutrina e decidida pelos operadores do direito nos tribunais, conferindo a ela contorno e interpretação própria da nova modalidade societária envolvendo os clubes de futebol. O tempo dirá se a legislação foi, de fato, um “gol de placa” do legislador nacional.  

Bibliografia

1 Disponível em https://www.uol.com.br/esporte/colunas/lei-em-campo/2022/05/03/saf-decisoes-da-justica-sobre-responsabilidade-mostram-incerteza-juridica.htm. Acesso em 27 jul. 2022.