A Lei 14.754/23, como noticiado em outros comunicados, representou um marco na tributação de ativos offshore e trouxe, pela primeira vez, regramento de tributação específico para os Trusts.
É nesse contexto que a Receita Federal do Brasil – RFB , através da Solução de Consulta COSIT nº 75/2025, publicada em 6 de maio, analisa os efeitos fiscais do regime estabelecido aos Trusts irrevogáveis e discricionários no exterior.
O Consulente em questão é menor de idade representado por seu pai, que foi informado por Trustee da sua condição de possível beneficiário de Trust existente sob as leis estrangeiras, o qual foi instituído pelo próprio Trustee através de um instrumento denominado Declaration.
O caso
Envolve um Trust criado por um Trustee por meio de contribuição de patrimônio efetuado por pessoa jurídica domiciliada no exterior, da qual era acionista outra pessoa jurídica igualmente domiciliada no exterior, por sua vez acionista indireta de pessoa jurídica domiciliada no Brasil. Ainda conforme a Solução de Consulta, as pessoas jurídicas no exterior foram extintas e o Trust, instituído em 2008, através de um documento denominado Declaration, teria vigência de 150 anos.
Em nenhum momento foi informado quem seria o ou os acionistas da pessoa jurídica domiciliada no exterior que fez a contribuição de patrimônio para o Trust e que detinha participação em pessoa jurídica domiciliada no Brasil.
Pelo que consta do contexto fornecido pela Cosit, o objetivo do Trust é a manutenção de um patrimônio destinado a salvaguarda dos descendentes de um dos acionistas da empresa brasileira para utilização apenas em situações de extrema necessidade e mediante cumprimento de determinada condições, conforme constou da Letter of Whishes (“carta de desejos”) do acionista.
O referido acionista foi excluído do rol de benificiários e da gestão dos ativos do Trust, o que equivale a ter abdicado em caráter irrevogável do patrimônio transferido e atribuído ao Trustee a administração e guarda do patrimônio. Foi também pontuado pelo consulente que o acionista nunca foi titular dos ativos contribuídos ao Trust. Há ainda um Protector Committee que pode realizar recomendações ao Trustee, mas não o obriga a implementá-las.
O Trust foi instituído como discricionário, isto é, estando nos poderes do Trustee, à sua inteira e exclusiva discrição, recusar toda e qualquer solicitação de entrega de dinheiro a qualquer descendente presente ou futuro do acionista ou a quem quer que seja. Exatamente por se tratar de Trust discricionário, não existiria uma pessoa que poderia ser considerada beneficiária do Trust, porque qualquer direito de receber algum benefício dependeria da superveniência de condições suspensivas determinadas no instrumento de instituição.
Entendimento da Consulente: não aplicação da Lei 14.754/2023
Na situação analisada, a Consulente argumentou e concluiu não ser possível aplicar os dispositivos da Lei 14.754/2023 ao caso em questão pelos seguintes motivos:
Não há pessoa física no Brasil que tenha sido titular do patrimônio transferido ao Trust, logo não há Instituidor no Brasil. Portanto não haveria para o instituidor qualquer obrigação de declaração no Brasil;
Por se tratar de Trust discricionário, a existência e indicação de beneficiário residente no Brasil é evento futuro e incerto dependente do livre arbítrio do Trustee;
Não ocorreu falecimento do Instituidor, até porque é uma pessoa jurídica, nem qualquer evento de distribuição e/ou liquidação do Trust em favor de beneficiário pessoa física residente no Brasil.
Sendo assim, o Consulente formulou as seguintes questões:
• 6.1. Está correto o seu entendimento de que não existe atualmente qualquer beneficiário do trust ou pessoa que esteja sujeita às obrigações tributárias principais e acessórias instituídas pela nº 14.754, de 2023, nos termos definidos pelos arts. 10, 11 e 12 da referida Lei?
• 6.2. Se for afirmativa a resposta ao primeiro quesito, também é correto o entendimento de que as obrigações tributárias principais e acessórias previstas na Lei nº 14.754 somente serão da responsabilidade de pessoas físicas residentes do País que recebam a distribuição de bens e benefícios pelo trustee, por terem sido implementadas, em relação a eles, as condições suspensivas para serem titulares de benefícios (isto é, beneficiários nos termos da lei)? Ou, se decorrer o prazo de cento e cinquenta anos de vigência do trust sem que tais condições tenham sido implementadas, as mesmas obrigações somente se imporão sobre pessoas físicas residentes no Brasil que acaso, naquela data, recebam a transferência de recursos do trust?
• 6.3. Em caráter subsidiário, na hipótese eventual de resposta negativa às questões anteriores, está correto o entendimento de que, não havendo settlor residente no Brasil, ou qualquer residente no País que esteja enquadrado na definição de instituidor do art. 12, as obrigações tributárias originadas da Lei nº 14.754 poderão ser cumpridas pelo Consulente, tão-somente por ser um dos primeiros possíveis e eventuais beneficiários vivos e residentes no País?
Resposta da Receita Federal do Brasil
Diante deste contexto e, questionada sobre a assertividade dos entendimentos do Consulente, após sumariar as regras prevista na Lei 14.754/2023, pertinente aos Trust no Exterior, os argumentos para a resposta da presente Cosit são como segue:
17.5. Durante o prazo de vigência do trust, os rendimentos e os ganhos de capital relativos aos bens e direitos objeto do trust serão tributados na pessoa que for considerada como titular na data do fato gerador. No caso de trusts irrevogáveis, essa pessoa será o beneficiário (art. 10, § 1º, da Lei nº 14.754, de 2023). (destacamos)
Nosso entendimento sobre posição da Receita Federal
Em relação à aplicação das regras da Lei 14.754/2023 ao instituidor pessoa jurídica, inicialmente, a Cosit afirma que, no entendimento do Consulente, tendo o Trust sido criado por meio de patrimônio de pessoa jurídica no exterior, o Trust não teria um instituidor ou o instituidor deveria ser considerado o próprio Trustee, residente no exterior.
Não nos parece ter sido esse o entendimento do Consulente, de fato. O entendimento parece ter sido que, tendo o Trust sido criado por instituidor pessoa jurídica domiciliada no exterior, essa situação não teria sido alcançada pela previsão legal em questão, uma vez que a Lei delimita como instituidor a pessoa física que, por meio da escritura do Trust, destina bens e direitos de sua titularidade para formação do patrimônio do Trust. Vê-se aqui 2 (duas) condições cumulativas, sendo: (i) ser pessoa física e (ii) destinar bens ao Trust por meio de escritura. Logo, não é que não há instituidor, é que esse sendo uma pessoa jurídica, não estaria alcançado pela previsão da Lei 14.754/2023.
De toda forma, a Cosit rechaçou os argumentos trazidos sob a alegação de que os admitir seria esvaziar qualquer eficácia das disposições da Lei nº 14.754/2023 referentes ao instituidor. Concluiu, assim, que é necessário investigar a cadeia patrimonial dos bens e direitos objeto do Trust para encontrar a pessoa física que, em última instância, seja titular do patrimônio utilizado para sua criação.
Em outras palavras: há potencial de que a Cosit tenha extrapolado o que a própria Lei determina ao dizer que se faz necessário configurar o “efetivo” instituidor, apesar deste não constar da escritura do Trust. Seguindo esse racional, apesar de ressalvar a falta de clareza dos fatos em relação à criação do Trust, julga ser possível concluir que o efetivo instituidor seria a pessoa mencionada como acionista.
A Cosit segue pontuando que, em se tratando de Trust irrevogável, e como o instituidor não reservou qualquer direito sobre o patrimônio do Trust, os bens e direitos do Trust devem ser considerados de titularidade dos beneficiários, assim entendidos como “uma ou mais pessoas indicadas para receber do trustee os bens e direitos objetos do trust, acrescidos dos seus frutos, de acordo com as regras estabelecidas na escritura do trust e, se existente, na carta de desejos”, nos termos da Lei nº 14.754/2023.
No caso analisado, em que pese que o direito ao recebimento do patrimônio do Trust estar sujeito a condição suspensiva ainda não implementada, a Cosit refutou o argumento do Consulente nesse sentido, concluindo que a condição de beneficiário não depende da existência de um direito adquirido ao patrimônio do Trust. A expectativa de direito ao patrimônio do Trust seria suficiente para a caracterização da condição de beneficiário.
Completou esclarecendo que a Lei 14.754/2023 não endereçou a questão dos Trusts discricionários e que as pessoas “indicadas” pelo instituidor tem o direito de exigir do Trustee que atue conforme a carta de desejos e que isso bastaria para caracterizá-las como beneficiárias. Ou seja: podendo os possíveis beneficiários exigirem que o Trustee atue conforme a carta de desejos, a possibilidade de benefício se revestiria de uma possível liquidez e certeza, tornando os possíveis beneficiários em beneficiários efetivos aos olhos da RFB, estando obrigados, assim, a declarar em nome próprio e tributar os rendimentos dos ativos subjacentes do Trust.
Adicionalmente, a Cosit também afirmou que essas pessoas têm a expectativa de direito à distribuição futura do patrimônio ou dos rendimentos do Trust, uma vez implementada a condição suspensiva.
No entendimento da Receita Federal do Brasil, através da Cosit, a condição suspensiva não é para se adquirir a condição de beneficiário, mas, apenas, para se ter direito à distribuição futura do patrimônio ou dos rendimentos do Trust. Assim, a mera indicação de pessoa como beneficiário na carta de desejos do Trust já é suficiente para haver sujeição ao regime estabelecido pela Lei nº 14.754/2023, mesmo que não possua e não se possa afirmar que um dia possuirá direito adquirido ou controle sobre os ativos mediante futura distribuição.
Para além do efetivo alinhamento do entendimento da Cosit em relação aos direitos das pessoas indicadas na carta de desejos frente a um Trustee que tenha prerrogativas discricionárias, o referido entendimento, provavelmente, irá suscitar reflexões à luz da existência de disponibilidade jurídica e econômica de quem tem mera expectativa de direto, rendendo argumentos para futuras controvérsias.
Conclusão
Esse entendimento inédito externado pela Cosit, assim como a própria Lei 14.754/2023, não nos parece suficiente para acomodar situações usuais em Trusts discricionários, tais como a existência de ordem e classes de múltiplos beneficiários potenciais do Trust, a inexistência de percentuais definidos e a possibilidade de que não venham a ser efetivamente beneficiados em parte ou no total do patrimônio e frutos do Trust.
De toda forma, o entendimento externado sinaliza o racional que a Receita Federal aplicará a situações envolvendo Trusts discricionários, constituídos por instituidor pessoa jurídica, nos quais o Instituidor tenha abdicado em caráter irrevogável, do direito sobre parcela do patrimônio do Trust.
A equipe do Azevedo Sette continua atenta às notícias e possíveis intepretações com atenção especial aos eventuais impactos para planejamentos sucessórios e reestruturações societárias que se utilizam do veículo Trust no Exterior.